Projeto de lei diminuiria em 30% o orçamento da fundação para 2021
Descartado, graças à mobilização e intensas pressões da comunidade científica e seus numerosos aliados, o artigo do Projeto de Lei 529/2020 que subtrairia como “sobras financeiras”, ainda neste ano, aproximadamente R$ 1 bilhão das universidades estaduais e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o governo Doria volta a atacar violentamente a agência paulista de fomento à pesquisa. Sem maiores cerimônias para com o direito da fundação, garantido pela constituição estadual, a 1% das receitas tributárias do estado – e a sua livre administração –, dessa vez, estão na mira do governador cerca de R$450 milhões, aproximadamente 30% do orçamento da fundação para 2021.
Parênteses, só para lembrar que um outro governador paulista um dia disse: “Se me fosse dado destacar alguma das realizações da minha despretensiosa vida pública, não hesitaria em eleger a Fapesp como uma das mais significativas para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país”. Era Carlos Alberto de Carvalho Pinto, aquele que, em 18 de outubro de 1960, ou seja, quase exatos 60 anos atrás, promulgou a Lei Orgânica número 5918, que autorizava o poder executivo a instituir a Fundação.
De volta ao presente. A retirada de recursos da Fapesp se daria pela aplicação da “Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios (Drem) ao repasse dos recursos do Tesouro estadual à Fapesp no Projeto de Lei nº 627, de 30 de setembro de 2020, enviado pelo Governo à Assembleia Legislativa de São Paulo”, como dito na nota oficial do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) divulgada na segunda-feira, 26 de outubro.
No dia seguinte, 27, um editorial da Folha de S. Paulo sob o título “Preservar a Fapesp”, e com a linha fina “Instituição paulista de pesquisa deve manter fluxo de recursos ameaçado por proposta de Doria”, explicava que o projeto de orçamento estadual para 2021 “estipula a desvinculação de 30% das verbas previstas para a Fapesp”. Detalhava a informação ao dizer que “a previsão constitucional resultaria em R$1,52 bilhão, porém a medida permitiria um corte de R$455 milhões”.
Esse montante, observa o comunicado do Cruesp liberado na véspera, “deixará de ser investido no ambiente científico-tecnológico de São Paulo e do Brasil, com efeitos negativos principalmente para a sociedade paulista”. O documento dos reitores também observa que “o investimento em ciência e tecnologia sempre colocou o Estado de São Paulo na vanguarda da produção científica e tecnológica brasileira e impulsionou, direta ou indiretamente, o desenvolvimento econômico de nossas comunidades. Por isso, retirar receitas da Fapesp é, além de alterar preceitos constitucionais consolidados, produzir um retrocesso sem precedentes no mais avançado e bem sucedido sistema de financiamento à pesquisa do país.”
Insensibilidade política
Tanto o comunicado Cruesp número 11/2020 [https://jornal.usp.br/institucional/cruesp-divulga-comunicado-em-defesa-da-manutencao-dos-recursos-do-governo-para-a-fapesp/] quanto o editorial da Folha e outros manifestos já divulgados contra o mais novo ataque do governo Doria ao sistema de ciência e tecnologia do estado de São Paulo começam pela referência à constituição. Faz muito sentido, porque é justamente do peso desse documento legal e, ao mesmo tempo, do enorme significado da inscrição da Fapesp na constituição paulista para a força singular do sistema de produção de conhecimento científico de São Paulo que o atual governador paulista parece não se dar conta.
“Um dos principais diferenciais da Constituição Estadual de São Paulo, que tem contribuído para o desenvolvimento do estado, é o seu Artigo 271, que destina o mínimo de 1% da receita tributária estadual à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp, para ‘aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico’. Em vigor desde 1989, este artigo foi determinante para o protagonismo do Estado de São Paulo na ciência e tecnologia produzida no país”, diz o comunicado dos reitores.
Na verdade, a Fapesp foi prevista na constituição paulista de 1947, muito antes, portanto, de sua criação, quando o documento legal estabelecia que à fundação de amparo à pesquisa a ser criada caberia 0,5% das receitas tributárias do estado, percentual que foi alterado no documento de 1989.
E foi com base nesse dispositivo legal que a Fapesp, diz ainda o documento do Cruesp, “conseguiu, ao longo das últimas décadas, amparar nossos cientistas com centenas de milhares de auxílios e bolsas para pesquisa e manter investimentos de porte que contribuíram de forma decisiva para a estruturação das nossas universidades, em especial das instituições públicas paulistas, estaduais e federais, reconhecidas no cenário nacional por sua excelência como universidades de ensino e de pesquisa”. Foi também graças ao mesmo dispositivo que a fundação pôs em marcha “estratégias bem sucedidas para o desenvolvimento de projetos de pesquisa, de longo prazo, envolvendo parcerias entre universidades e empresas, com resultados expressivos para a incorporação de novas tecnologias e na formação de pesquisadores dentro do ambiente das empresas”.
Em trabalho recente, eu observava que o artigo 123 da Constituição de 1947 é o atestado do pioneirismo de São Paulo no reconhecimento institucional à importância da pesquisa no processo de desenvolvimento do estado, quatro anos antes da criação do Conselho Nacional de Pesquisa, o CNPq, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior, a Capes, que marcariam a entrada do governo federal no ordenamento do sistema de ciência e tecnologia no país.
Também propunha, no mesmo trabalho, que a inclusão na constituição de 1947 e a criação da Fapesp em 1960, depois de um movimento contínuo de avanços e recuos nos debates parlamentares sobre os objetivos e a natureza dessa fundação, ampliaram de forma notável o lugar e a importância da pesquisa científica nas políticas públicas do estado de São Paulo. E está justamente aí um dos fatores responsáveis pela profunda distinção do sistema paulista de produção de ciência no cenário estadual.
O que será que turva a visão do atual governador de São Paulo para os dados dessa história?