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Normalização de mortes violentas está ligada à cultura política da sociedade

Seminário organizado pela Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), em comemoração aos 60 anos da Fapesp, debateu razões da exacerbação da violência no país

(com Agência Fapesp – Maria Fernanda Ziegler )

Foto Senado

Um estudo do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública da Fundação Getúlio Vargas (CCAS-FGV) demonstrou que o uso de câmeras nos uniformes de policiais militares de São Paulo reduziu em 57% o número de mortes resultantes de ações da PM, em relação à média de igual período anterior ao uso dessa tecnologia. Nos 14 meses que se seguiram à Implantação da medida, evitaram-se 104 mortes por intervenções da polícia na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)

Esses dados já tinham sido oficialmente apresentados na primeira semana de dezembro, mas, ao destacá-los no seminário “Violência e Radicalização, a coordenadora da pesquisa, Joana Monteiro, observou que embora o uso das câmeras possa ser um debate meramente tecnológico na segurança pública, “sua implantação na Polícia Militar de São Paulo trouxe à tona questões importantes sobre radicalização e violência”. Entre elas, a discussão sobre “se o uso excessivo da força é um problema público ou não”,

“Chegou-se a um tal extremo de radicalização e de normalização da violência no país que uma parcela enorme da sociedade naturaliza o uso excessivo da força policial, dizendo que matar faz parte do trabalho, que intervenções podem gerar a morte de pessoas e que quem morreu não era cidadão de bem”, ressaltou Monteiro.

O seminário tinha por objetivo a apresentação e discussão do  sétimo capítulo do livro Fapesp 60 anos: a ciência no desenvolvimento nacional, obra elaborada por iniciativa da Aciesp no âmbito das comemorações das seis décadas de existência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, completados em 23 de maio deste ano. Foi organizado por Sergio Adorno e escrito em parceria com Maria Hermínia Tavares  Almeida, Renato Janine Ribeiro, Marcos Nobre, Roberto Kant de Lima e Joana da Costa Martins Monteiro, que estavam presentes no evento.

Os pesquisadores destacaram, entre outros pontos, que a naturalização hoje tão exacerbada do tratamento desigual na aplicação da lei e na garantia dos direitos fundamentais, baseada na  suposta divisão entre “pessoas de bem” e “pessoas de mal”, não é exatamente uma novidade.

“A tradição jurídica liberal tem um paradoxo: o mercado atua de forma inevitável desigualando materialmente os cidadãos de acordo com seus méritos e, por outro lado, o direito os iguala formalmente, atribuindo um mínimo de direitos comuns a todos os cidadãos para minimizar a desigualdade necessariamente imposta pelo mercado”, argumentou Roberto Kant de Lima, pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (UFF). . Nesse sentido, acrescentou, “a desigualdade econômica é um fator natural da teoria liberal”.

Ele lembrou que as instituições de segurança pública foram implantadas no Brasil com a vinda da família real portuguesa em 1808 e, “até hoje, a polícia se considera descendente da guarda real” que, a propósito, não era polícia, mas instrumento de controle social de um rei absoluto à frente de uma monarquia. “Aqui no Rio de Janeiro, a flâmula da polícia é ainda a coroa do rei Dom João VI”, observou.

Kant de Lima ressaltou também o impacto da escravidão nessa divisão duradoura. “Os escravos eram semoventes no direito civil, mas sujeitos no direito penal e isso tudo cria um cenário de controle social repressivo e juridicamente desigual.” No Brasil, diferentemente da tradição anglo-saxã, não há propriamente um sistema de justiça criminal. O inquérito policial é atribuição da agência policial e, com isso, o inquérito acaba por separar as agências policiais da justiça”, disse.

Sergio Adorno, professor da Universidade de São Paulo (USP) e organizador do capítulo debatido no seminário, ressaltou que a narrativa de igualitarismo judicial justifica uma desigualdade de direitos que está na raiz da violência de uns contra os outros e em sua normalização.

“Violência e radicalização são temas complexos, que não se reduzem a um problema de lei e ordem, repressão, ou apenas a um problema de aplicação de novas tecnologias de controle” disse. Para Adorno, são temas que têm a ver com as questões de controle da ordem pública, mas também com a cultura política da sociedade e de como ela lida com a vida. “Nós aprendemos nas sociedades modernas que a vida é um patrimônio de todos, independentemente das diferenças de raça, classe, cor, propriedade e poder. Porém, na prática, o que vemos é que a vida de uns não tem o mesmo valor que a de outros”, observou.

 

Negacionismo

A normalização da violência, no olhar dos palestrantes, vem também de uma cisão na sociedade e do crescimento da radicalização política que leva, entre outras ações, a um descrédito na ciência.

O estudo com as câmeras de segurança, por exemplo, embora bem aceito pela polícia, teve repercussão negativa entre alguns policiais, a ponto de um deles ter enviado a uma das autoras da pesquisa um e-mail questionando e desqualificando o trabalho, relatou Monteiro.

“Segurança pública é a área do governo que menos usa a ciência. Trabalho com esse tema desde 2015 e é impressionante a diferença de lá pra cá. Há uma normalização da violência [morte de pessoas] e um discurso de radicalização muito fortes. As críticas levantadas ao estudo – de que ele só poderia ter sido feito por policiais e que os policiais não poderiam ser hiperfiscalizados – mostram, inclusive, um desconhecimento muito grande sobre o que é ciência e seu papel”, disse ela.

 

Renato Janine Ribeiro, professor de ética da USP e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), também destacou os ataques a cientistas. “Não é fortuito que a extrema direita tenha escolhido como alvos principais os cientistas e os jornalistas, pois são as duas áreas que mais expressam aquilo que eles mais se recusam a aceitar: os fatos. O problema é que perdemos esse ponto comum. Perdemos essa possibilidade, pois existem pessoas que negam sistematicamente os fatos, seja os resultados de uma eleição, seja um problema orçamentário”, afirmou.

 

Marcos Nobre, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), afirmou que outro aspecto dessa mudança está na maneira de se informar, ou consumir mídia e entretenimento. “A ampliação do leque de escolha de mídias e de opções de fonte de informação levou a um grau mais rarefeito de informação política. Isso é paradoxal e constatado nos estudos empíricos o tempo todo.”

O pesquisador propôs que se deixasse de lado a expressão polarização para descrever o problema atual. “O que temos hoje, não só no Brasil, mas em nível global, é uma divisão entre dois mundos. A polarização envolve posições diferentes em um mesmo campo magnético, por exemplo. Porém, a situação atual envolve posições políticas que não se situam no mesmo campo”. O que se tem hoje, de fato, “é uma divisão de dois campos que não aceitam mais as mesmas regras de convivência social, não é só do jogo democrático. No caso específico da democracia, quem perde eleição não aceita a legitimidade de quem ganhou. E isso é essencial para uma democracia”, declarou Nobre.

Isso configura uma situação grave, na qual, em lugar de ter uma guerra civil declarada entre duas partes que se batem no terreno militar, o confronto  acontece no terreno político. “É, portanto, uma situação-limite, pois a ascensão da extrema direita em várias partes do mundo ameaça o solo comum, que é a democracia como regra de convivência social”. Para Nobre, “a globalização dessa divisão política é um fato incontornável e muitos países já tomaram o caminho do autoritarismo”

O pesquisador enumerou alguns aspectos e dimensões da mudança política radical, entre eles, o colapso dos sistemas partidários tal como  funcionaram até os anos 1990, o desaparecimento da centralidade da informação em órgãos de mídia, a perda de legitimidade das eleições em intervalos regulares. Além disso, acrescentou, não existe a possibilidade de ignorar a política, “pois ela se tornou um mediador social de enorme relevância para muitos âmbitos da vida. Por fim, é preciso levar em conta que as campanhas políticas mudaram radicalmente”, enumerou.

 

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