texto e fotos: Leonardo Fernandes
Fica difícil não se distrair na Avenida Paulista aos domingos. Todo último dia da semana, um dos principais centros financeiros da cidade de São Paulo fica fechado para o trânsito, permitindo que as pessoas possam circular livremente ao longo dos 2,7 quilômetros de suas largas pistas. Além dos museus, cinemas e shoppings que já fazem parte da paisagem do cartão-postal, o final de semana ainda atrai inúmeros vendedores ambulantes, artistas de rua e feirantes, por exemplo. Todos na esperança de conquistar nem que seja um pouquinho da atenção dos que passeiam pelo calçadão de asfalto improvisado.
No último dia 2, um grupo de cientistas conseguiu a façanha de destacar-se em meio à multidão. Formado em sua maioria por pós-graduandos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cerca de meia dúzia de alunas reuniram-se próximo à saída do metrô Trianon-Masp munidas de alguns cartazes e muita boa vontade para encarar a garoa que insistia em cair naquela tarde. Espremidas embaixo de uma marquise, logo elas despertaram a curiosidade do público com o convite inusitado pregado pelo abrigo feito no improviso: Pergunte sobre a minha pesquisa!
“A nossa pesquisa é feita com dinheiro publico, nada mais justo do que levar o que fazemos pra fora dos muros da Universidade. É uma das formas de prestar contas pra população. O evento também foi pensado com o objetivo de desmistificar um pouco o nosso trabalho, mostrar que a ciência não é algo restrito ao laboratório. Os nossos estudos são voltados para a solução de problemas reais e produzem resultados que melhoram a vida da nossa sociedade”, explica Paula Sumaran, 22 anos, mestranda em psicobiologia pela Unifesp.
Seu estudo sobre o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) é uma prova desse importante trabalho desenvolvido pela universidade pública. O distúrbio de ansiedade manifesta-se quando o paciente sofre uma experiência traumática, como sobreviventes de catástrofes naturais ou violência urbana, por exemplo. Quando se recorda do fato, a pessoa revive o episódio com a mesma sensação de dor e sofrimento. Isso acaba afetando profundamente o cotidiano desses indivíduos, que passam a ser acometidos por um medo exacerbado. Utilizando ratos como cobaias, a cientista tenta entender como o estresse desencadeia alterações neurofisiológicas e mentais nos animais e utiliza esses resultados como modelo para contribuir no desenvolvimento de novas medicações para seres humanos.
Em sua primeira edição, o evento realizado na Paulista foi organizado de forma independente pelas universitárias, sem vínculos oficiais com a instituição de ensino que frequentam. O que as motivou a botar a cara no sol (ou na chuva, pra ser mais exato) foram as recentes manifestações em defesa da educação pública, instigadas pelo anúncio do governo federal de congelamento de 30% das despesas não obrigatórias das universidades federais.
O bate-papo nas ruas é mais uma das ações organizadas pelo Comitê de Mobilização – Unifesp Campus SP, que contou na semana passada com uma série de aulas públicas no campus da Federal com o intuito de debater a atual conjuntura política, dentre outros assuntos. “Se não nos posicionarmos, fica muito mais fácil a sociedade engolir esse discurso de que a universidade só serve pra dar despesa, de que os universitários só servem para fazer ‘balburdia’”, pondera Sumaran, com uma pontada de ironia.
“Balbúrdia” foi o termo que o ministro da Educação, Abraham Weintraubm, usou ao anunciar os cortes no dia 30 de abril e acabou sendo adotado como bandeira de luta dos estudantes durante os protestos organizados nos dias 15 e 30 de maio, que tomaram as ruas de diversas capitais do país.
Inclusive, os cortes de verbas na educação não são novidades. Eles só vêm se agravando desde o dia 29 de março, quando o Governo Federal publicou o decreto Nº 9.741, informando o congelamento de R$ 5,8 bilhões do orçamento do Ministério da Educação (MEC), que semanas depois chegou a R$ 7,3 bilhões. O valor representa 4,9% do orçamento do ministério, de R$ 149,7 bilhões para 2019. Isso sem contar o cancelamento de mais de 3.000 bolsas de pesquisa anunciados no fim de abril, número que depois diminuiu um pouco e, na terça-feira, 4 de junho, chegou a cerca de 6800 bolsas.
A atual crise pode afetar anos de trabalho árduo de quem se dedica com afinco a desenvolver ciência no Brasil. Como é o caso de Bianca Campinelli, 28 anos, aluna de doutorado da Unifesp. Por quase uma década, ela tem se dedicado ao estudo da paracoccidioidomicose (PCM), conhecida popularmente como a doença do paracoco. Causada por um fungo, a infecção é responsável pelo maior índice de mortalidade dentre as micoses sistêmicas no Brasil.
Apesar do nome incomum, a doença não é rara. Prevalente em diversos países da América Latina, a maior incidência de casos é no Brasil, onde se concentram 80% dos doentes – principalmente nas regiões Sul e Sudeste. O grupo mais afetado são os agricultores, que acabam respirando o fungo ao trabalhar no solo contaminado. Uma vez instalada no pulmão, a micose se reproduz e causa fibrose, o que faz com que o paciente desenvolva insuficiência respiratória.
Todavia, no começo ela é difícil de diagnosticar. A pessoa tem febre e tosse, sintomas muito parecidos com o da tuberculose, o que acaba dificultando o tratamento correto. No estágio mais crônico, ela se espalha pelo corpo, causando imensas feridas na pele e nas mucosas. O tratamento demora dois anos e tem um problema muito grande de acordo com a profissional de saúde: o remédio é forte e atinge diretamente o fígado, daí as chances de abandono são maiores.
Campinelli está estudando os primeiros estágios da doença, tentando entender a interação do fungo com as células do pulmão. A esperança é de que as futuras descobertas possam ajudar outros pesquisadores a desenvolverem diagnósticos mais precisos, já que a doença pode ficar até 20 anos dormente no corpo do hospedeiro.
“Estamos falando de uma doença tropical, que atinge principalmente brasileiros pobres. Você acha que se não fosse o esforço dos pesquisadores brasileiros essa doença seria estudada? Existiria investimento em desenvolvimento de tratamentos? Porque pesquisadores dos Estados Unidos iram fazer uma pesquisa sobre isso se lá não tem? A mobilização tem que acontecer daqui dentro do país. E não precisamos buscar lá fora, nós temos excelência pra isso. Só precisamos ser reconhecidos e ter um investimento maior”, defende a cientista.
Nem a chuva, nem tampouco o quadro repleto de órgãos ulcerados acometidos pela doença do paracoco foram o suficiente para espantar o metroviário Jefferson Mendes do evento. Era um dos mais engajados naquela aula ao céu aberto. Escutou cada uma das apresentações atentamente. Sempre curioso, não importava se o assunto era distúrbio do sono ou poluição. Na verdade, era um homem com uma missão. Ele também é pesquisador, dedica-se ao estudo da teoria matemática da computação voltada pra sistemas complexos. Estava ali atrás de dicas para o seu próximo evento.
“Um amigo me contou do encontro e vim aqui dar uma força. Esse encontro é o tipo de coisa que quero fazer. Mostrar concretamente o que a ciência está fazendo agora pra melhorar as condições de vida das pessoas, pra entender as coisas que a gente lida todos os dias. Eu acho que é um momento crítico para a ciência, mas eu também estou bastante feliz de ver iniciativas como essa e tantas outras que fazem justamente esse caminho: de ir atrás da curiosidade das pessoas, de tirar as duvidas sobre o que o pesquisador faz, o que o cientista faz. A sociedade precisa nesse momento construir alianças”, aponta.
A jovem Ana Lívia, 12 anos, chegou um pouco tímida acompanhada do pai e da irmã mais nova. A família de Campinas estava a passeio e não sabia ao certo o que esperar. Foi conquistada pelo resultado da pesquisa da Natália Simionato, que estuda em seu mestrado a relação entre a redução das horas de sono com transtornos emocionais durante a adolescência. Na pesquisa com ratos, foi notado que a falta de uma boa noite de sono está ligada a várias doenças, em alguns casos crônicas, podendo até mesmo levar ao desenvolvimento de depressão e de ansiedade. A recomendação da cientista? Que o horário das escolas não começasse tão cedo e que os alunos pudessem dormir até um pouquinho mais tarde. “Eu concordo com ela. Precisa mesmo”, conclui Ana, em meio a risos.
Serviço:
Para acompanhar as próximas reuniões, siga a fanpage do Comitê de mobilização – Unifesp Campus SP