Paleontóloga de 38 anos é professora na UFES desde 2011
Quem de nós não se encantou, em diferentes tempos e idades, com as imagens fascinantes, às vezes apavorantes, de gigantescos répteis em carreira desabalada ou em velozes voos rasantes, vindas do mundo intensamente verde e úmido de Jurassic Park? E quem, entre as gerações mais novas, talvez sentado no chão em algum canto quieto da própria casa, não alinhou e organizou miniaturas talvez de famílias inteiras de dinos e pterossauros, sonhando com um universo que, de tão remoto, era quase pura fantasia?
Agora, pense em quem se valeu desse fascínio para projetar e efetivamente moldar seu modo de estar e atuar no mundo. Você aí encontrará, entre outros possíveis felizardos, a jovem cientista Taissa Rodrigues Marques da Silva, paleontóloga, 38 anos, e já há 10 anos professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), lugar onde desde 2011 desenvolve “atividades de ensino, pesquisa, extensão e administração”, como ela resume em seu currículo Lattes. Onde também orienta mestrandos e doutorandos em biologia animal dentro do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas, em pesquisas as mais diversas sobre mamíferos, insetos, jacarés, alimentação dos povos antigos e relação com animais, etc.
Ah, sim, está incluído entre tanto trabalho coletar e examinar fósseis de seus adorados pterossauros, estudar a fundo esses animais extintos há milhões de anos, sua presença no Brasil e em outros territórios, sua ecologia, e tirar conclusões sobre grupos e família que eles integram.
A par de tudo isso, Taissa Rodrigues milita ativamente contra o contrabando de fósseis da biodiversidade brasileira, prática que vem de muitas décadas no país, e está engajada em movimentos pelo reconhecimento e valorização das mulheres na atividade científica. Esse compromisso inclui ajudar a criar espaços institucionais e de debate, verdadeiras redes femininas, para acolher e tornar públicas dolorosas denúncias de assédio de todo tipo contra cientistas por razões de gênero.
Mas vamos por seu trajeto sob certa ordem. Taissa cursou o bacharelado em zoologia dos vertebrados e se graduou em ciências biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2004. O mestrado e o doutorado, também em ciências biológicas, no campo da zoologia, concluídos respectivamente em 2007 e 2011, aconteceram na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com um período sanduíche de um ano no doutorado, em Munique, na Baviera, no Bayerische Staatssammlung für Paläontologie und Geologie, ou seja, o Museu de Paleontologia e Geologia da Alemanha.
Curioso é que pouquinho menos de um mês antes da defesa da tese, “Revisão taxonômica e análise cladística das espécies atribuídas a Anhangueridae e formas afins (Pterosauria: Pterodactyloidea)”, título complicado, mas esclarecido adiante, Taissa já estava fazendo o concurso para professora na UFES. Vale dizer que desde o mestrado, o foco principal de sua pesquisa tem sido a anatomia e sistemática de pterossauros e a evolução da biota do Cretáceo. E, sem dúvida, a consistência de seu percurso científico tem tudo a ver com ter se tornado no ano passado membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências e membro do Comitê de Assuntos Governamentais da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados dos Estados Unidos.
Carioca, embora criada em Belo Horizonte desde os três anos de idade, filha mais velha de uma jornalista, hoje com 62 anos, e de um engenheiro elétrico já falecido, irmã de uma também professora da área de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF) e de um profissional em ciências da computação, Taissa teve na infância e adolescência formação típica de uma família de classe média letrada e com um gosto especial por ciência.
Fez o fundamental e o ensino médio no Colégio Padre Eustáquio, particular, na Cidade Jardim, perto de onde morava, no bairro de Luxemburgo, e do Museu Histórico, que ela frequentava graças à família e à própria escola. Era boa leitora e no começo dos anos 1990, conta, dispunha da assinatura da revista Globo Ciência, em casa. “Meu pai, além de engenheiro, dava aula de ciências, e isso teve influência em nossa formação. Belo Horizonte não tinha tantos museus, como São Paulo ou Rio, mas tinha o Histórico, com uma parte de história natural, perto de minha casa, e tínhamos também o Zoológico da cidade, que era ótimo”
“Desde criança eu dizia que queria ser bióloga, eu sabia que seria, e fiz vestibular em mais de uma universidade só para bacharelado ou licenciatura nas biológicas”, diz. Passou na UFRJ e se mudou para o Rio.
Já na universidade, antes de qualquer iniciação científica, sua primeira bolsa foi num projeto de extensão, “Caminhadas Ecológicas”. Era essencialmente um encontro de estudantes de graduação com alunos de ensino fundamental e médio, e eventualmente até infantil, para caminhadas, conversas sobre plantas, assistir vídeos etc. Era a interação social em torno da importância do meio ambiente e da proteção ambiental que mais importava.
Já na iniciação científica, no ano seguinte, conseguiu “enveredar pela zoologia”. O estágio no laboratório de Aracnologia duraria três anos, tempo em que trabalhou com taxonomia das espécies coletadas, às vezes em lugares distantes da universidade, como o Parque Nacional da Serra do Cipó.
O bacharelado lhe deu a oportunidade de um treinamento formal intenso, a partir do sexto período, em zoologia de vertebrados. “As disciplinas dessa área eram obrigatórias e as de invertebrados optativas. Fiz todas. E terminei fazendo no trabalho de conclusão de curso uma monografia sobre a diversidade de aranhas em uma área de proteção ambiental, o Parque Estadual do Rio Doce. Comparei métodos de coleta”, Taissa conta.
E afinal, quando chegam os pterossauros ao seu caminho? “Eu queria trabalhar com paleontologia e procurei um orientador, Alexander Wilhelm Armin Kellner, ligado à pós-graduação de zoologia que ficava no Museu Nacional”, Taissa conta, observando que metade dos estudantes que vão em busca desse programa quer estudar dinossauros (Alexander e a própria Taissa foram mencionados de passagem nesta reportagem do Ciência na rua).
Ela queria se dedicar aos pterossauros, que também são répteis do Mesozoico, mas não são dinossauros. “O Brasil é um dos melhores lugares para estudá-los, fazer taxonomia, revisão de gênero, seus fósseis são abundantemente encontrados no país, na região em que hoje é a Chapada do Araripe no sul do Ceará”.
Mas é justamente ao estudá-los que não dá, segundo ela, para ficar alheia à importante questão do tráfico desses fósseis. “É um problema internacional. Tive que ir para a Alemanha, depois Itália, Holanda, Estados Unidos, para estudar fósseis do Brasil, tudo levado ilegalmente”, reclama.
Já no mestrado ela se dedicou ao gênero Anhangueridae, dedicação que no doutorado estenderia para a família Anhangueride (e assim deixa de ser misterioso o título de sua tese). Esses pterossauros eram animais de grande porte, com 5 metros em média de envergadura das asas (a espécie Tropeognathus chegava aos 8 metros de envergadura), e é plausível que, voando, tivessem se espalhado por vastas áreas do extinto continente de Gondwana. Entretanto, verifica-se uma distribuição geográfica mais restrita de determinadas espécies e mesmo de gêneros.
“Fui estudar os diferentes gêneros na família, alguns já estudados na Inglaterra no século XIX, restringimos depois nosso foco a dois gêneros e criamos um nome para um grupo maior, com vários gêneros, em vários lugares, os Anhangueria”, ela relata, explicando depois qual foi o principal achado desse investimento na pesquisa dos pterossauros.
“Entendo que foi a reorganização dos gêneros nosso principal achado científico. Espécies idênticas estavam sendo colocadas em gêneros diferentes no Brasil, e espécies muito diferentes de outros países estavam sendo postas no grupo do Brasil. É muito importante limpar, arrumar a casa, para depois estudar outros animais e sua evolução”, prossegue.
Nesse mergulho, Taissa estudou mais de 20 espécies, definiu um grupo de pterossauros típico do Brasil, outras típicas da Inglaterra e outras ainda bastante espalhadas por terras que estiveram juntas em Gondwana. O resultado está bem descrito num artigo tão extenso que se tornou uma monografia, publicada pela primeira vez em 2013 como volume único “Taxonomic review of the Ornithocheirus complex (Pterosauria) from the Cretaceous of England”.
Taissa conta que antes de ir para o campus de Vitória da UFES, por cinco anos trabalhou em Alegre, no sul do estado. Nessa ocasião, colegas do departamento estavam abrindo um pequeno museu de história natural, com áreas de parasitologia, botânica, e zoologia na cidade. Ela se juntou a um colega da geologia que já estava no projeto e juntos montaram uma área de paleontologia. “Era uma coisa pequena que teve um impacto enorme. Tínhamos alguns fósseis da Geologia, tínhamos réplicas de pterossauros que eu havia comprado, e havia desde o crânio de um pterossauro do Brasil, até grandes conchas, um grande pedaço de amonita do Brasil, outro menor da Alemanha, a réplica de um tiranossauro rex etc”. O museu existe ainda, é credenciado no Ibram e está agora fechado em razão da pandemia.
A jovem paleontóloga está certa de que fazer divulgação científica em sua área é algo muito facilitado pelo fato de dinossauros e pterossauros estarem, paradoxalmente, muito presentes na vida das pessoas em geral. “São filmes, games, todo um entretenimento ligado ao fascínio que exerce saber que nosso mundo já foi totalmente diferente. Não é um outro mundo, é esse em que estamos, e imaginar esse ambiente do passado remoto é algo extraordinário, surreal, diria”.
A par desse passado remoto, os grandes répteis do Mesozoico também apontam para o futuro, Taissa propõe. “A biomecânica de pterossauros tem muito a contar. Como o pescoço dele se movimentava para se alimentar? Já sabemos que eram na maioria piscívoros. Entender isso, como suas enormes vértebras se organizam etc. guarda um grande potencial de inspiração para maquinários diversos, guindastes, enfim, as chamadas estruturas biomiméticas”.
Já do ponto de vista estritamente acadêmico, se conseguir vencer a dramática situação de hoje de falta de recursos para pesquisa e de postos de trabalho, de falta de proteção ao patrimônio fossilífero, a paleontologia, na visão da pesquisadora, tem muito para crescer. “O Brasil tem uma pré-história riquíssima, desde o passado dos trilobitas aos dinossauros, e até os grandes mamíferos da era do gelo”.