Sexta pesquisadora destacada na série dedica-se à pedagogia hacker
Uma pesquisadora criativa, um tanto rebelde aos rigores metodológicos estritos e mais tradicionais da pesquisa científica e com algumas intermitências em seu percurso acadêmico, naturalmente leva um susto se recebe a informação de que, em sua área, sua tese de doutorado recebeu o maior prêmio nacional para esse tipo de trabalho, ou seja, o da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes).
Foi exatamente o que aconteceu com Karina Moreira Menezes, ela conta, quando lhe comunicaram oficialmente, em 2019, que “Pirâmide da pedagogia hacker =[vivências do (in) possível]”, orientada pelo professor Nelson Pretto e defendida no ano anterior no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced-UFBA), fora a tese vencedora em Educação. “Era difícil de acreditar, dados os questionamentos, no momento da qualificação, ao meu modo de escrever e estruturar a tese”, ela diz. Entretanto, seu orientador lhe assegurava liberdade e tranquilidade para prosseguir no caminho, acrescenta.
O feito não é mesmo pequeno, ainda mais considerando o tema e o tratamento um tanto estranhos a uma certa sisudez que cerca a pesquisa em pedagogia. Naquele ano, o Prêmio Capes de Tese teve 1.140 inscrições e distinguiu trabalhos científicos com vencedores e menções honrosas em 49 áreas de avaliação.
“A tese reforça esses espaços [espaços hackers] como o encontro de mundos que são vistos como inconciliáveis”, diz reportagem do Edgardigital , o informativo eletrônico de divulgação científica da UFBA, em reportagem publicada em 26 de novembro de 2019. “Parafraseando o filme Alice no País das Maravilhas, na versão criada por Tim Burton sobre a obra de Lewis Carrol – prossegue , a autora diz que fazer parte de um hackerspace é acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã: 1. Adultos aprendem brincando; 2. Trabalho e diversão não se separam; 3. Afeto e objetividade caminham juntos; 4. Diferença e igualdade são inseparáveis; 5. Ser hacker é um estado de espírito; 6. Tudo é possível dentro da P2H, a Pirâmide da pedagogia hacker.”
Instigante, não? E assim é também a conversa de Karina, 42 anos, professora da Faced, quando ela narra seus trajetos desde sua Belo Horizonte da origem, com passagens por Brasília e Timor Leste até aportar em Salvador e se apaixonar para sempre pela cidade. “Eu hoje sou muito baiana”, diz, deixando escapar curvas mineiríssimas no falar.
Nesse momento ela está em Salvador mergulhada numa pesquisa de pós doutorado, supervisionado à distância pela professora Analise Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e cujo tema foi reorientado em razão da pandemia. “Meu projeto original era aprofundar o estudo das trocas hackerianas”, diz. Com esse tema ela já tinha uma vivência direta desde quatro anos antes de iniciar o doutorado. “Mas com a pandemia, decidi modificá-lo para estudar ‘Redes de tecnologia de mitigação aos efeitos da pandemia em grupos vulneráveis’. Não podia ficar alheia ao que estamos vivendo. E em paralelo estruturei o programa de extensão ‘Nós não estamos sós’, primeiro conectando, em escala piloto, sete profissionais de educação e sete crianças em experiências de aprendizado à distância para, na sequência, ampliá-lo a 50 famílias e 50 estudantes de graduação, focando o trabalho na pedagogia”.
Karina descobriu-se, na graduação em educação na UFMG, mais afeita aos projetos de extensão que aos de pesquisa stricto sensu, e foi assim que teve sua primeira experiência com educação num projeto voltado ao ensino de jovens e adultos de uma comunidade indígena Pataxó em Carmésia. Só no mestrado iria convencer-se da necessidade de fazer pesquisa em termos estritamente acadêmicos. Mas bastante água rolaria antes desse momento.
Segunda dos cinco filhos do casal Dirceu Menezes, torneiro mecânico, hoje aposentado, 69 anos, e da contadora Valéria Moreira, 66 anos, Karina estudou a vida inteira em escola pública, e na maior parte dos anos escolares até concluir o ensino médio foi aluna da Escola Estadual Sagrada Família. Morava perto do colégio, no próprio bairro da Sagrada Família e, adiante, no Horto. Concluído o ensino médio, ela que já trabalhava como ofice-girl com a mãe desde os 12 anos, partiu para trabalhar com informática e vendas. Mas entretinha-se tanto com manutenção das máquinas, que a parte de vendas não funcionava.
Só quase quatro anos após a conclusão do ensino médio ela prestou vestibular para educação. Achava que computação exigia cálculo demais, o que não era a sua praia, enquanto “a educação estava em cada lugar de atividade humana, o que permitia a quem a tomava como profissão estar em qualquer lugar”.
Foi assim que, pouco tempo depois da graduação, um concurso para o Ministério da Educação começou a delinear seus percursos. O currículo Lattes informa que foi assessora técnico-pedagógica dos programas Proformação e Proinfantil no MEC e tutora na Universidade Aberta do Brasil. Experiente em formação de professores para atuação na educação a distância (EAD), participou de uma missão na República Democrática de São Tomé e Principe com esse objetivo. Coordenou o projeto social “Ciclo do Livro” e implantou a Biblioteca Canguru, projeto que visa a disseminar a literatura infantil em regiões periféricas do Distrito Federal.
Especializada em administração da educação pela Universidade de Brasília (UnB), morou no Timor-Leste durante um ano, trabalhando como professora formadora do Programa de Formação de Professores uma cooperação internacional fomentada pela Capes. Conta experiências extraordinárias dessa estada, como a produção de um livro bilingue em português e tetum, ilustrado pelas crianças, com narrativas de história oral escritas à mão por professores. Mas certa de que a estrutura da educação no país era muito tradicional e engessada, decidiu voltar ao Brasil para novas experiências e escolheu a Bahia por razões pessoais.
Sua entrada na Faculdade de Educação da UFBA foi como assessora técnica do programa Pró-Infantil. E foi nessa condição que conheceu o grupo de pesquisa de Nelson Pretto, trabalhando com ética hacker e educação e decidiu: “é disso que gosto”. Já integrante do Raul Hacker Club de Salvador Bahia, onde idealizara o Projeto Crianças Hackers, a identificação era total. A partir daí, o mestrado e o doutorado percorrem os caminhos acadêmicos usuais.
Karina hoje é uma pesquisadora madura, integrante de três grupos de pesquisa da Faced: Pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias; Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem; e Núcleo Integrado de Estudos e Pesquisas em Infâncias e Educação Infantil. E é mãe do Ian, 10 anos, baiano.
“Para ela, um dos maiores aprendizados que o Brasil atual pode ter com a Pedagogia hacker é a valorização do processo de aprendizagem e de seus resultados de formas equivalentes. ‘Não adianta ter uma solução se você fizer de qualquer jeito” disse ela sobre o que a ética hacker acredita”, observou a reportagem do Edgardigital.
“Hackers são aqueles que conhecem o mundo das tecnologias por dentro (in), que não se contentam em ficar na superfície ou na aparência de um artefato tecnológico porque desejam saber como aquilo funciona, usando seus conhecimentos e talentos para estar por dentro daquilo que lhes desperta interesse” disse Karina ao informativo, “ponderando, contudo, que a possibilidade de “estar dentro” é transformada em algo inalcançável em uma cultura hegemônica pautada em monopólios de conhecimento e centralização do poder.”