Na segunda-feira, 4 de novembro, foi lançado o AFRO, décimo quarto núcleo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que vai se dedicar a pesquisa, formação e difusão da temática racial. Na ocasião, em carta lida pelo diretor científico Raphael Neves, o presidente do Cebrap, Marcos Nobre, afirmou que “raça, racismo e justiça racial são temas cebrapianos há pelo menos quatro décadas, e é esse acúmulo que agora mudará de patamar com o AFRO”.
À frente do núcleo, que tem como apoiadores principais a Fundação Tide Setúbal e o Instituto Ibirapitanga, está Márcia Lima, 48 anos, professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), doutora em sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e com passagens por prestigiosas universidades dos Estados Unidos, como Columbia e Harvard. A pesquisadora recebeu a reportagem do Ciência na rua na sede do Cebrap na última quinta-feira, 21, para uma conversa sobre as perspectivas e desafios do AFRO. Leia abaixo a entrevista.
O que é o AFRO?
O AFRO será o 14º núcleo de pesquisa do Cebrap, ou seja, ele se junta à estrutura que organiza as áreas de pesquisa da casa. Tem um certo diferencial pela forma como estamos conseguindo organizar a estrutura de captação de recursos, dado que a minha proposta tem sido conseguir alavancar apoios para a institucionalização do núcleo como um todo, em vez de captar para um projeto, para outro, e outro, como é feito em geral nos vários núcleos. Nós conseguimos estabelecer, dentro da estrutura do Cebrap, o que chamamos de projetos especiais, e tem alguns, como o Centro de Estudos da Metrópole (CEM), que é um consórcio, o Mecila (Maria Sibylla Merian International Centre for Advanced Studies in the Humanities and Social Sciences Conviviality-Inequality in Latin America), que é outro consórcio. Então o AFRO chega com essa característica de um núcleo de pesquisa que tem um aporte e uma agenda mais coletiva, onde criamos e vamos desenvolver três áreas de pesquisa: cultura e identidade, discriminação e desigualdade e políticas e direitos.
Que trabalhos vocês estão começando?
Na área de cultura e identidade, estamos pensando em trabalhar com uma agenda mais específica sobre a identidade afrobrasileira, pensando muito a memória do movimento negro e o que é a construção dessa identidade afrobrasileira no Brasil. Temos, nesse momento, três projetos: a memória do movimento negro, trajetórias de intelectuais e o pensamento negro brasileiro e feminismo negro e suas diversas linguagens de expressão. Achamos que cuidar dessa memória é um processo muito importante no sentido de resgatar a agência do movimento negro na construção da questão racial no Brasil. Eu tenho falado muito, publicamente, da invisibilidade do racismo na sociedade brasileira, mas também de uma invisibilidade da agência dos intelectuais negros e da sociedade civil negra mobilizada para mudar a questão racial.
Desde o século XIX, desde antes da abolição, nós temos agência dos negros, temos a resistência negra, a resistência escrava. E historicamente isso sempre foi invisibilizado. Para mim, uma das coisas mais potentes do projeto que eu idealizei – quando idealizei o projeto do AFRO – é o tema da invisibilidade. O AFRO é um instrumento para reduzir a invisibilidade do tema na academia, que já está num processo de torná-lo mais visível mesmo. Mas não só no sentido da política institucional, da política acadêmica, mas também na forma interpretativa, porque acho que tem muitas leituras sobre o negro no Brasil que invisibilizam o quão importante foi a agência, a resistência escrava, a agência dos próprios negros, dos intelectuais negros. Então essa primeira parte, de cultura e identidade, vai resgatar um pouco isso. Nós temos pessoas que trabalham com esse tema dos intelectuais negros, temos pessoas que trabalham com a questão do movimento negro, temos pesquisadores ligados a essas áreas, e a questão do feminismo negro, que também é uma agenda super pulsante no Brasil agora, e que, do nosso ponto de vista, precisa ser melhor investigado, sair um pouco da coisa mais fashion e fazer disso uma agenda mais específica. Então cultura e identidade é algo que a gente quer elaborar e ter isso como uma agenda importante do núcleo.
E quanto à segunda área?
A segunda área do núcleo é discriminação e desigualdades, que é uma homenagem ao Carlos Hasenbalg, que foi meu mentor – Discriminação e desigualdade raciais no Brasil é o nome do livro dele. Essa é a área de onde venho, onde me formei, onde tenho toda a minha produção intelectual, e nela cuidamos de monitorar a questão da desigualdade racial no Brasil, mas, acima de tudo, queremos promover também estudos sobre discriminação. A gente fala muito da discriminação racial, pressupõe a discriminação como um elemento que gera desigualdade, mas investiga pouco essa agenda, e queremos fazer mais, criar metodologia – a questão metodológica é muito forte no núcleo, nossos pesquisadores são altamente qualificados e formados em questões metodológicas. A pesquisa mais quantitativa do núcleo vai estar concentrada nessa área. A questão metodológica é muito importante para a agenda do AFRO, e esse é um desafio que temos: como estudar discriminação racial?
E qual a agenda da área de políticas e direitos?
Na terceira área, políticas e direitos, temos, até o momento, três agendas: Quilombos e território: observatório de conflitos e política. Queremos mapear um pouco, a política… o desmonte da política quilombola, e a agenda de direitos e antirracismo, analisando a aplicação da lei antirracista, as legislações vigentes e propostas. Tem também uma parte da pesquisa sobre ações afirmativas, agenda que toquei durante um tempo. Então o núcleo está organizado nesses três eixos. O que me inspirou a criá-lo foram duas coisas fundamentais: a crise que estamos vivendo no campo científico, com o descrédito do conhecimento e do saber. Comecei a pensar muito nisso com a eleição do atual presidente. O impacto da eleição foi muito grande e fiquei pensando que a gente precisaria ter uma estrutura para pensar essa agenda porque a gente sabia o que estava por vir. Era preciso ter um espaço intelectual para pensar e acompanhar, depois daquele momento de sentir “danou-se tudo”….
Associado a isso vem a questão do corte de recursos públicos para a agenda de pesquisa nessas áreas, que são áreas sensíveis e muito visadas por esse governo. A segunda coisa é o perfil do núcleo. O núcleo está agregando uma primeira geração de pesquisadores e professores que conseguiram – os poucos que conseguiram – entrar nas universidades como professores. Então temos dois professores recém ingressados em universidades públicas, recém doutores, negros, que também vão ter mais dificuldade de se colocar no mercado… Mas o núcleo não tem apenas pesquisadores negros, a diversidade racial da equipe é uma coisa que eu sempre prezei na formação de pessoas, todos os meus espaços de formação sempre foram espaços de diversidade racial, eu não acredito que essa agenda seja uma agenda dos negros, acho que essa diversidade também é importante. E tem pessoas mais seniors também, como eu e mais outros colegas, porque acho esse equilíbrio de geração importante. Estamos no começo das agendas de pesquisa, pretendemos também que tenha estagiários, bolsistas, queremos agregar essa nova geração de bolsistas que vêm das ações afirmativas, trazer pessoas que estão ingressando na universidade agora. Nesse momento de tanto desmonte, de tão pouca esperança nos espaços universitários, queremos que o AFRO seja um pequeno espaço de resistência intelectual nessa agenda, que é uma agenda intelectual, mas é uma agenda política também.
Eu havia programado lhe perguntar qual é a importância da criação de um núcleo com as características do AFRO no momento por que passa o país, mas você já respondeu em parte. Gostaria de complementar?
A minha formação como intelectual foi num espaço como esse. Eu venho do Rio de Janeiro, fui formada por pessoas que tinham essa preocupação nos anos 1990. Passei pelo Núcleo da Cor no IFICS-UFRJ [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro], onde fui bolsista da Yvonne Maggie. Depois fui trabalhar no Centro de Estudos Afro-Asiáticos com o professor Carlos Hasenbalg e com Nelson do Valle Silva, que também era um centro de formação de pesquisadores negros com apoio da Fundação Ford. Entrei na universidade em 1989, e se você olhar para as estatísticas de ensino superior na época, verá que eu conseguia fazer parte do 1%, 2% de negros que ingressavam na universidade naquele momento. Não havia nenhum tipo de política pública formal em relação a isso, havia programas como esse da Fundação Ford.
Então, embora meu acesso à universidade e minha permanência tenham sido viabilizados por um esforço familiar muito grande, houve também um programa de ação afirmativa de bolsas, eu fui bolsista da Fundação Ford durante toda a minha graduação. Então tenho muita experiência nesse tipo de formação, nesse tipo de ação. E não era um momento político como o que estamos vivendo agora, mas sei a diferença que isso fez na minha formação e dos meus pares na época. Os poucos professores que estão na universidade e que são negros são dessa geração e passaram por esse processo e tiveram essa oportunidade que a gente teve naquela época. Sei o diferencial que esse tipo de aporte traz, não é só financeiro, mas é de formação.
Neste contexto, acho que vamos poder aqui formar muito poucas pessoas, mas, com os aportes que conseguimos, temos um compromisso de produzir trabalhos acadêmicos que vão circular em revistas de qualidade. Mas o maior compromisso que temos com nossos apoiadores é o de criar produtos numa linguagem mais acessível e de circulação que não seja puramente acadêmica. É uma maneira de a gente produzir coisas que possam ser lidas e vistas numa escala maior de pessoas. Artigos mais curtos, vídeos, podcasts, vamos produzir a partir do ano que vem, temos primeiro que produzir a pesquisa. Estamos agora desenhando as pesquisas e os projetos, mas já temos um certo acúmulo também. Houve uma paralisada, acho que todo mundo ficou no último ano meio assim, “e agora, o que a gente vai fazer, pra onde a gente vai?”. Nossos primeiros produtos vão ser coisas com nossas próprias reflexões sobre esses temas. Vamos ocupar o espaço público, o debate público, de uma maneira muito regular, muito frequente. Nós já temos parceria com o Jornal Nexo, a partir do ano que vem vamos ter coluna semanal no Nexo, vamos produzir vídeos… Temos o compromisso de não falar apenas para a academia, de atuar no debate público, de dialogar como o movimento negro, dialogar com o gestor público que estiver interessado em dialogar com a gente, então isso é um compromisso queo AFRO tem. Não apenas porque assumimos esse compromisso com os apoiadores do núcleo, é um compromisso político mesmo. A divulgação científica é uma parte muito importante do nosso projeto, diria que a coisa em que a gente mais está tentando inovar em termos de produção acadêmica no AFRO é ter uma divulgação diferente do que as ciências humanas costumam fazer. Nós não somos muito bons nisso, né? Estamos tentando, justamente, fazer algo um pouco diferente nesse sentido.
O núcleo vai estabelecer cooperações com outros centros de pesquisa que tratem das mesmas temáticas, tanto no Brasil como no exterior? Vocês já têm coisas em vista?
A gente está começando. Como o núcleo é formado por pesquisadores que são inseridos em universidades, já temos algumas parcerias que vêm justamente com nossas filiações institucionais. Eu sou professora da USP, tenho meu núcleo de estudos na USP, então automaticamente ele já vem como um primeiro parceiro. As parcerias que a gente já tem: com a Fundação Getúlio Vargas, a Marta Machado é da Faculdade de Direito da FGV, que está construindo uma parceria com a Delegacia de Crimes Raciais, a Decradi, um projeto de analisar as denúncias de racismo. Uma das pesquisadoras, a Flavia Rios, é do NEGRA, que é o Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos, da Universidade Federal Fluminense (UFF). O Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Tradicionais Afro-americanos, que é a parte quilombola da pesquisa, é com o LAPA, da Unicamp. Estamos construindo uma parceria com o professor Mario Medeiros, do Departamento de Sociologia da Unicamp, que desenvolve um excelente trabalho com o Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), da Unicamp. Vamos trabalhar juntos numa pesquisa de memória afro-brasileira. O Geledés é um parceiro também e vai ser o primeiro acervo que a gente vai trabalhar. Nós temos também uma parceria com a Universidade da Pensylvannia (UPenn) para outro projeto sobre memória, com o professor Michael Hanchard, que estudou o movimento negro no Brasil. Com o Jornal Nexo vamos fazer o Nexo Políticas Públicas, fundamental para nossa divulgação. Esses já são nossos parceiros de cara, já temos essas parcerias estabelecidas. . O pessoal do AEL vai entrar com a tecnologia e nós, junto com Mario Medeiros, vamos constituir um pouco a memória oral desses doadores dos arquivos. Fazemos mais a parte da pesquisa e o Arquivo faz a parte da digitalização.
Eu tenho uma relação muito forte com o Afro-Latin American Research Institute, o ALARI, de Harvard, estou indo para lá agora em dezembro para ver se a gente consegue estabelecer uma parceria. Temos bastante parcerias para fazer, até porque todo mundo aqui está em algum lugar, e a gente já nasce com várias parcerias estabelecidas. Acho que pesquisa é isso, ainda mais num centro como o Cebrap, que agrega pesquisadores que sempre estão aqui e em outras instituições. Isso é uma coisa muito rica do Cebrap, eu acho.
Como a senhora vê, resumidamente, a evolução da discussão sobre raça e racismo na academia e na sociedade brasileiras desde que começou a pesquisar isso, lá nos anos 90, até agora?
Eu fiz uma conferência no último encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), falei um pouco disso. Comecei falando da invisibilidade da questão racial. A ideologia racial brasileira, do meu ponto de vista, é muito eficaz justamente porque ela sempre trabalhou em cima da invisibilidade do racismo. Silenciar o racismo brasileiro sempre foi a grande eficácia do racismo, da ideia da democracia racial sobre a qual nos debruçamos tantas vezes, de diferentes formas. A grande eficácia da ideia da democracia racial foi o silenciamento. E esse silenciamento se dá de muitas formas, se dá na invisibilidade, desde a invisibilidade do quão cruel foi a escravidão no Brasil. A interpretação de que a escravidão ibérica era mais amena, isso é uma forma de invisibilização. A invisibilidade da qualidade da mão de obra escrava, que só recentemente tem literatura histórica desconstruindo essa ideia de que o trabalho escravo não era qualificado, de que o negro não era capaz… Essa incapacidade do negro para o trabalho livre, que foi uma interpretação que ficou vigente na historiografia até muito pouco tempo. Acho que tem uma certa linha de interpretação dessa invisibilidade. A invisibilidade dos grandes intelectuais negros que sempre existiram, que nunca tiveram espaço nem reconhecimento como intelectuais mesmo e que só mais recentemente têm sido recuperados. Ou estudos que diziam sempre que o problema do Brasil não era a questão racial, é social, que ainda é dito, até hoje tem gente na academia que fala isso. Então, tem muita eficácia. Sempre foi muito eficaz essa invisibilidade, esse silenciamento, essas diferentes formas de silenciamento da perspectiva analítica, interpretativa e dos próprios produtores de conhecimento que eram negros.
Quando ingressei na academia – entrei na graduação em 89, terminei minha graduação, defendi meu mestrado em 94, meu doutorado em 2001 – já sou de uma geração que fez tudo naquele modelo mais americano, defendi meu doutorado com 29 anos, peguei um pouco essa mudança, mas quando ingressei ainda era um tema em que você não tinha pessoas negras – tinha pouquíssimas pessoas negras – orientando o tema. Eu fiz um pouco o levantamento da questão racial na Anpocs, que é uma associação que congrega os programas de pós-graduação, não é uma associação de indivíduos, é uma associação de programas, isso é muito significativo, muito simbólico desse espaço. O GT [grupo de trabalho] se chamava “Temas e problemas da população negra”. Eu achava que esse nome era muito significativo porque você ia no GT e não tinha pessoas negras apresentando trabalho, era raríssima a presença de negros nesse GT. E durante muito tempo, se você quisesse apresentar um trabalho na Anpocs sobre questão racial, nenhum outro GT lhe aceitaria. Por exemplo, violência e raça, você ia para o GT de violência, falavam “não, se seu tema é violência e raça, seu GT é o de raça”. Trabalho e raça… Então, se houvesse qualquer recorte racial, você pertencia apenas à questão racial. Isso é uma coisa muito interessante, a guetificação desse tema. Carlos Hasenbalg escreveu, em 1992, um texto em que falava disso, ele sempre se sentiu trabalhando num tema guetificado, e quem fala do gueto não é escutado. Acho que isso mudou. E essa mudança aconteceu quando houve uma mudança na agenda política.
E como foi possível mudar a agenda política?
As ações afirmativas têm um efeito muito importante, porque ela não só muda o público da universidade como leva para dentro da universidade uma reflexão, ela muda o patamar, dentro da universidade, da reflexão sobre raça. Acho que esse é um aspecto muito importante. Nas ciências sociais, especificamente, antes disso, você tem um fator muito importante que são as agências de financiamento internacionais, a Fundação Ford teve um impacto muito importante sobre isso, a Fundação MacArthur, várias fundações que atuaram no Brasil trazendo um pouco de reflexão sobre isso, elas produziram um impacto na agenda. O Centro de Estudos Afro-Asiáticos, durante dez anos, teve o Concurso de Dotações sobre o Negro no Brasil. Esse concurso selecionava e apoiava a pesquisa de estudantes de mestrado e doutorado com recursos da Fundação Ford. Então, havia um aporte que também dava credibilidade, um investimento maior para essa agenda. Ou seja, qualquer política de fomento, pública ou privada, impacta a agenda.
Mas as ações afirmativas nas universidades têm trazido uma mudança em larga escala porque elas mudam o perfil dos estudantes, elas obrigam a uma discussão para além dos pesquisadores sobre raça. E é muito interessante você ver como hoje em dia você vai para a Anpocs, por exemplo, e a questão racial está em vários GTs. E também os GTs mudaram, agora você tem um leque muito mais amplo de GTs e temas. Então, acho que tem uma mudança que é justamente essa questão de você ter outro público na universidade. Ele não é mais o outro, não é mais o tema e problema da população negra. É a população negra na universidade, fazendo uma reflexão sobre sua própria origem, sua própria situação social e confrontando um pouco mais os resultados desses estudos mais canônicos. E acho que isso traz uma mudança muito importante.
Isso obviamente veio do debate público, então tem uma influência no debate público, que ainda é uma esfera muito difícil. A gente vê mesmo a Folha de S. Paulo, por exemplo, dando mais espaço a essas questões, tem uma editoria de diversidade, tem mais colunistas negros. Ainda tem um discurso muito contrário à política de ação afirmativa, é um jornal que tem muita resistência a determinado debate. O Estadão também. A imprensa tradicional, por mais que tenha reconhecido determinados pontos e tente trazer mais a discussão do racismo, ainda tem um novembrismo terrível. Ainda aborda a questão dizendo que o problema é classe. Então a gente tem avanços muito significativos, mas a sociedade brasileira ainda tem uma resistência muito grande em falar “o racismo é um problema, é um problema que tem que ser enfrentado como racismo”.
Eu e a Marta Machado fizemos um artigo para a Novos Estudos [revista do Cebrap] sobre como os juízes deliberam em casos de injúria racial. Eles invocam literalmente o termo democracia racial. Eles usam a palavra democracia, “não, nós não temos racismo porque nós somos uma democracia racial, isso aí foi um deslize”, “a pessoa estava nervosa…”. Então assim, a gente se justifica. Agora teve esse caso do Latuff no Congresso. Ali rompeu-se isso, houve um rompimento como nunca. O discurso da Benedita da Silva foi muito comovente. Eu chorei ouvindo o discurso dela. Ela falou “estou nessa casa há 30 anos e nunca vi isso”. Ela foi constituinte, está há mais de 30 anos. Falou “nunca vi uma cena tão violenta”. Acho que a gente está quebrando uma “etiqueta racial”, como diria Oracy Nogueira. E não é tarde, temos que quebrar, acho que realmente a gente precisa. Todo esse discurso de “o PT dividiu o Brasil”, “o PT criou o racismo”, é um absurdo. Na verdade essas políticas deram voz a pessoas que nunca tiveram voz. E quando você dá a voz para o outro, você vai ouvir o que nunca quis ouvir. Então, acho que é por isso que as pessoas culpam o PT por ter criado o racismo, porque as pessoas nunca foram ouvidas. E na academia é a mesma coisa. Quando você produz um conhecimento, quando você traz um conhecimento, a partir de uma perspectiva que nunca foi capaz de ser vista como produtora de conhecimento, há uma tentativa de desqualificar essa produção.
No meu caso, quando ingressei na UFRJ, éramos 110 integrantes, tínhamos dois ou três em cem. Éramos, literalmente, duas estudantes negras, aí é diferente. Eu sempre fui a exceção que confirmava a regra, minha vida inteira, desde a minha infância, desde a minha primeira sala de aula. Isso não é ser voz, isso é ser exceção que confirma a regra. Então, para mim é muito importante, e é muito simbólico, hoje, poder liderar um grupo de pesquisa onde a maioria dos pesquisadores são negros e que passaram por experiências e por políticas que eu não vivi e às quais não tive acesso. Acho isso uma experiência muito marcante e quero que o AFRO realmente seja uma mudança de patamar dentro dessa instituição que é o Cebrap, uma instituição da qual faço parte há 16 anos e que tem acolhido de maneira exemplar essa proposta. Acho que a gente tem fôlego e produção para ter um impacto muito grande nas ciências sociais brasileiras, estou otimista com isso.