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Luzes, câmera e repressão: estudo compara censura a filmes nas ditaduras de Brasil e Argentina

Entre meados das década de 1960 e de 1980, enquanto o Brasil vivia sob a ditadura civil-militar, a Argentina passou por duas ditaduras distintas, com um breve intervalo democrático. A primeira, autodenominada Revolução Argentina, durou de 1966 a 1973. A segunda, autodenominada Processo de Reorganização Nacional, durou de 1976 a 1983 e foi um dos mais brutais regimes da história recente da América do Sul, deixando cerca de 30 mil mortos e desaparecidos.

Entre as várias coisas em comum desses processos políticos dos países vizinhos, estava a censura no campos cultural e artístico. Para entender o funcionamento da censura na estrutura repressiva dessas experiências autoritárias paralelas, a historiadora Ana Marília Carneiro, em sua tese de doutorado recentemente defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), se debruçou sobre a documentação produzida a respeito de obras cinematográficas pelos órgãos estatais de censura que estavam em funcionamento nessa época. No Brasil, a censura de diversões públicas — como era chamada a censura a diversas produções artístico-culturais do campo da literatura, teatro, música, televisão e cinema — foi realizada pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, que tinha o seu serviço centralizado em Brasília. Na Argentina, a Entidade de Classificação Cinematogáfica (Ente de Calificación Cinematográfica), organismo estatal em funcionamento desde 1968 até 1983, era responsável exclusivamente pela censura de filmes. O Ciência na Rua conversou por e-mail com a pesquisadora, e os principais trechos da entrevista podem ser conferidos abaixo.

Recorte do cartaz de Dona Flor e seus dois maridos, filme censurado em ambos os países

O que exatamente você investigou? Você se aprofundou em casos de censura a determinados filmes, foi algo mais voltado ao funcionamento institucional dos órgãos de censura ou ambas as coisas?

A tese é um estudo comparado da censura cinematográfica realizada durante as ditaduras militares brasileira e argentina. Sua ideia central é buscar perceber a dinâmica do funcionamento da censura inscrita na estrutura repressiva de experiências autoritárias de países próximos, em temporalidades recentes. Para o cenário argentino, optei por concentrar a análise na tese ao funcionamento do Ente de Calificación, por duas razões principais: primeiro porque o órgão se manteve ativo durante as duas últimas ditaduras militares (1966-1973 e 1976-1983) e em segundo lugar, justamente porque este lapso coincide com os anos de ditadura militar brasileira e o funcionamento do organismo correspondente ao Ente no Brasil, a Divisão de Censura de Diversões Públicas, que esteve em funcionamento desde o início da década de 1960 até o ano de 1988, quando a promulgação da Constituição Federal extingue a censura no Brasil.

A análise desenvolvida na tese se deu principalmente a partir do estudo da prática de censura executada por estes organismos estatais. Não realizei uma análise fílmica ou um levantamento exaustivo de todos os filmes censurados durante este período, até mesmo porque esse não era o objetivo da pesquisa. Sem dúvidas, a análise das obras fílmicas produzidas sob a égide dos regimes ditatoriais constitui um objeto fundamental para a compreensão das ambiguidades e tensões que perpassam esse processo histórico, uma vez que são elementos constitutivos da própria realidade social. Acredito, no entanto, que análises de caráter mais internalistas, que com frequência primam pela perspectiva da resistência, podem e devem ser conjugadas com reflexões que explorem as condições institucionais, políticas e econômicas que envolvem o contexto social da produção cinematográfica inseridas no processo de estruturação dos arcabouços repressivos das ditaduras militares. Apesar de não ter empreendido uma análise fílmica, o processo censório de filmes específicos foi utilizado na pesquisa a título de amostragem, como por exemplo o processo do filme Dona Flor e seus dois maridos, que foi submetido a censura no Brasil e na Argentina.

Posse de Jorge Rafael Videla como presidente de facto, 1976

Como era o aparato de censura no Brasil? O que era diferente no aparato argentino?

Uma consideração é que, no Brasil, a partir de fins da década de 1960, a censura de filmes era realizada exclusivamente pela União, em âmbito federal, centralizada em Brasília. No contexto argentino, o maior grau de autonomia das municipalidades permitiu a conformação de uma estrutura expressivamente distinta – e significativamente mais ramificada – daquela apresentada no Brasil. Nessa estrutura, tanto as municipalidades quanto os grupos de católicos leigos nas províncias do interior participaram intensamente do efetivo controle de filmes, valendo-se tanto de instrumentos legais quanto de alguns mecanismos mais informais, como comunicados, memorandos, pareceres, “recomendações”, “advertências” e “listas negras” que trataram da censura cultural e acabaram por conformar uma forma particular de censura, ampla, difusa. Esse aspecto mais “ramificado” da censura cinematográfica na Argentina na realidade compõe uma lógica mais ampla, que abarca não apenas a censura voltada para outros campos artísticos culturais (como teatro, literatura, música), mas também a organização do aparato repressivo do Estado durante a última ditadura militar Argentina.

Outra consideração relevante é relativa ao papel desempenhado pela Igreja Católica e grupos religiosos leigos. Na Argentina, o prestígio e a experiência acumulada dos católicos no campo do controle cinematográfico era tal, que representantes de diversas associações leigas (Liga de Madres de Família, Padres, etc.) foram incorporados ao organismo de censura estatal, ou seja, participavam diretamente da prática de censura. Em perspectiva comparada, no Brasil, apesar dos católicos não participarem do aparato censório federal durante a ditadura militar, eles configuraram um segmento influente para as políticas de controle cultural, tornando-se um grupo de pressão ao serviço de censura.

 

E em termos de conteúdo, o que havia de diferente e semelhante na prática de censura nos dois países?

Acredito que este seja um ponto de comparação que nos traz maior semelhança entre os dois casos. Nos dois países havia um espírito conservador e moralista propagado pelo governo, mas, para além disso, a censura cultural estava fundada em uma tradição de defesa da moral e dos bons costumes. O controle do campo artístico estava estruturado em uma tradição claramente influenciada pelos valores cristãos, traduzida na preservação da instituição familiar, na condenação a temas que se relacionavam ao amor livre, ao divórcio, a infidelidade conjugal, às sexualidades ditas “ilegítimas”. A esses temas caros à moralidade cristã foi adicionada uma série de novas preocupações ao longo da década de 1970, relacionadas com as mudanças em curso na sociedade: a emergência da juventude como movimento político, a revolução sexual, o movimento feminista, as experiências com as drogas psicodélicas. A censura neste momento, tanto na Argentina quanto no Brasil, passa a lidar com estas novas preocupações. A elas foram acrescentadas preocupações com menções estritamente políticas, contestatórias ao regime ditatorial.

O cineasta Raymundo Gleyzer, um dos desaparecidos da ditadura 1976-1983

Houve mudanças significativas na censura argentina do primeiro período ditatorial estudado para o segundo?

É possível perceber que, com a criação do Ente de Calificación na Argentina, o problema de segurança interna assumia maior importância em relação aos anos anteriores, sendo incorporados membros da Secretaria de Inteligência do Estado (SIDE, na sigla em espanhol) na sua composição. A partir do golpe de 1976, em consonância com os expurgos violentos levados a cabo pelos militares, é perceptível o início de um enrijecimento da estrutura censória e do controle do campo cultural. Sobretudo durante os primeiros anos do Processo de Reorganização Nacional, roteiristas, diretores e atores passaram a ser perseguidos ou foram exilados. Uma das mais traumáticas experiências ditatoriais da América Latina, a última ditadura argentina teve a violência como um dos seus aspectos mais marcantes: nos primeiros meses depois do golpe, Raymundo Gleyzer, um dos importantes nomes do cinema político argentino, foi sequestrado e desaparecido pelas forças repressivas do governo militar. Esse caso serve para ilustrar que a repressão e o controle sobre a produção cultural foram constantes durante os anos de 1966-1983, no entanto, é possível identificar momentos mais agudos. É a partir do regime militar instaurado em 1976 na Argentina que a arquitetura repressiva do Estado passa por uma reestruturação, visando sobretudo o extermínio físico dos seus opositores. Essa reesruturação abrangeu também o campo cultural, significando um maior enrijecimento censório nesse período.

Jean-Luc Godard e Glauber Rocha, na filmagem de Vento do Leste, 1969

Em reportagem do portal da UFMG, você menciona que os censores brasileiros passavam por cursos e, por isso, foram sofisticando a compreensão dos filmes. Que cursos eram esses? Como funcionava isso? Quem eram os professores?

No Brasil, a Divisão de Censura e Diversões Públicas exercia uma atividade oficial, contando com funcionários de carreira, e era regulamentada por uma vasta legislação. A partir de 1968 e durante a vigência do Ato Institucional número 5 (AI-5), percebe-se um recrudescimento da atividade censória: a censura prévia se estendeu à imprensa e, no campo das diversões públicas, o serviço passou por um aprimoramento na sua estrutura, traduzido sobretudo nos seguintes aspectos: centralização do órgão em Brasília, ampliação das suas dependências físicas, modernização dos equipamentos, aumento do quadro efetivo de funcionários através de concursos e investimentos na capacitação e aperfeiçoamento do pessoal através de cursos de formação.

A realização dos cursos de capacitação de censores foi uma iniciativa inserida dentro do processo de modernização do arcabouço censório, para treinar novos censores que fossem mais bem preparados e competentes, capazes de identificar e eliminar não apenas a imoralidade presente nos meios de comunicação, mas também as manifestações contrárias ao governo vigente. Assim, os cursos de treinamento e atualização foram fundamentais para a implementação de um serviço de censura mais eficiente nos anos de 1970.
Havia curso de treinamento destinado a todos os censores e cursos de aperfeiçoamento voltados para censores que se especializavam em uma área específica, como teatro ou cinema.

O Curso Intensivo de Treinamento de Censor Federal, por exemplo, era ministrado por professores da Universidade de Brasília (Unb), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com 500 horas de carga horária, o curso contava com disciplinas como História e Técnica de Teatro, Psicologia Evolutiva e Social, Literatura Brasileira, Técnica Operacional e Segurança Nacional, dentre outras. Esses cursos eram realizados na Academia Nacional de Polícia e ministrados por professores provenientes do meio artístico e universitário, oficiais do Centro de Informação do Exército e funcionários mais experientes de dentro da própria Divisão de Censura.

Os cursos voltados especificamente para o cinema eram mais curtos, e objetivava o estudo das supostas mensagens subliminares presentes nos filmes de teor “político-subversivo”. Uma das principais referências didáticas utilizadas para os alunos eram os filmes do cineasta francês Jean Luc Godard e Glauber Rocha.

Manhã cinzenta, de Olney São Paulo

Já ouvi história, não sei se verdadeira, de gente ser presa na ditadura por estar com o livro O vermelho e o negro, do autor francês Stendhal. Durante sua pesquisa, você encontrou algum caso inusitado de censura?

É importante ressaltar que consultei os acervos referentes a documentação produzida pelos órgãos de censura, e não pela polícia. É possível que este caso esteja registrado nos ofícios policiais ou das forças armadas. No entanto, existem diversos casos de apreensão de material proibido e a condução coercitiva à polícia dos detentores deste material, dentre eles livros, folhetos, panfletos, vinis, filmes. Diferentemente da Argentina, no Brasil foram raros os casos envolvendo a detenção e tortura de artistas devido à produção, execução e divulgação de obras e espetáculos proibidos. No Brasil, a proibição do livro Em Câmera Lenta e a prisão do autor da obra, Renato Tapajós, — que também é cineasta — configura o único caso desta natureza que pude rastrear. Uma das principais justificativas para a proibição do livro foi a menção da existência da tortura institucionalizada durante o regime militar. Oficialmente, Renato Tapajós foi indiciado por compor uma obra literária de cunho subversivo, que incitaria à guerra revolucionária e apologia ao terrorismo. O único caso de proibição da obra, detenção e tortura de um cineasta durante a ditadura militar brasileira se deu, digamos, fora das telas. Manhã Cinzenta, de Olney São Paulo, foi um média metragem filmado ao longo do ano de 1968 com cenas de manifestações políticas potentes. Em 1969, este filme foi exibido para os passageiros do avião sequestrado por militantes do Movimento Revolucionário 8 de outubro durante o trajeto até Cuba. Ao tomarem conhecimento desta sessão a bordo da aeronave, os militares decretaram a proibição da obra e a apreensão de todas as cópias, assim como a prisão do seu diretor, que foi detido e torturado em sequência.

 

 

A tese de Ana Marília Carneiro ainda não está disponível online. Em breve, estará disponível no portal domínio público (https://www.dominiopublico.gov.br) e no banco de teses e dissertações da ufmg (https://www.bibliotecadigital.ufmg.br/).

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