Faleceu hoje, quarta-feira, 20 de junho, José Marques de Melo, o grande pioneiro na constituição do campo da pesquisa em comunicação no Brasil, com contribuições internacionalmente reconhecidas. Jornalista, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e também da Universidade Metodista, criador de associações profissionais centrais no adensamento da rede de pesquisadores de comunicação, como a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação (Intercom, da qual, por último, era presidente do Conselho, Marques foi, sob qualquer ângulo que se examine, um dos nomes fundamentais e mais brilhantes para a compreensão e a expansão do que vem a ser comunicação.
Ciência na rua se junta às homenagens que este grande pesquisador merece e reproduz abaixo entrevista que Marques concedeu à jornalista Mariluce Moura, então diretora da revista Pesquisa Fapesp, em novembro de 2012 (edição 201)
“A prima pobre das ciências sociais”
O campo da pesquisa em comunicação tem pouco prestígio acadêmico no Brasil e José Marques de Melo, há 40 anos um dos maiores batalhadores por sua constituição no país, diz isso com todas as letras. Em parte, reconhece, isso guarda relação com as próprias dificuldades epistemológicas da área – afinal, um século depois de estabelecidas nos Estados Unidos, essa especialidade, ciência, para alguns, pseudociência, para muitos, não conseguiu identificar claramente seu objeto. “Comunicação, na verdade, não é uma área autônoma de pesquisa. Como todas as ciências aplicadas, ela incorpora contribuições que vêm das demais ciências, das exatas e das humanas”, ele pondera.
Nesta entrevista a Pesquisa FAPESP Marques fala sobre essa estranha e prolongada crise de identidade de um campo que reúne nada menos que 25 mil professores e 250 mil estudantes no país e a entremeia com sua própria trajetória profissional, que, a pesquisadores de outras áreas bem estabelecidas, pode soar extremamente ziguezagueante. Reflete sobre circunstâncias políticas que interferiram, para além do desejável, na universidade e na vida pessoal e relata algumas saborosas histórias de um brasileiro que transitou do sertão de Alagoas para a mais prestigiosa universidade brasileira.
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Em 1972, você era chefe do Departamento de Jornalismo da ECA (Escola de Comunicações e Artes). E trabalhava para constituir o campo da pesquisa em comunicação no Brasil. Gostaria que contasse esse começo.
O cargo era de diretor do Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações Culturais, que depois se transformou na ECA. Considero-me um privilegiado porque tive a oportunidade de conviver com Luiz Beltrão, de fato o pioneiro da pesquisa científica de comunicação no Brasil. Quando ele fundou, em 1961, o curso de jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, estabeleceu um diferencial na formação de jornalistas no país, que foi exatamente introduzir a dimensão da pesquisa científica em paralelo à prática profissional.
Qual cidade?Você já era jornalista àquela altura?
Sim, comecei minha trajetória em Alagoas, na Gazeta de Alagoas, depois no Jornal de Alagoas, dos Diários Associados. Fui um excelente jornalista do interior fazendo cobertura da minha cidade para o jornal da capital.
Eu nasci em Palmeira dos Índios, famosa por um de seus prefeitos [o escritor], Graciliano Ramos, mas vivia em Santana do Ipanema. Meu pai, negociante de produtos agrícolas, tinha sociedade com um empresário de transporte numa linha de ônibus entre Palmeira dos Índios, aonde chegava um trem, e Belmiro Gouveia, aonde chegava outro que vinha do São Francisco. Por um tempo ele viveu em Palmeira dos Índios, justamente no período em que minha mãe estava grávida de mim – sou o mais velho de quatro irmãos. Logo depois minha mãe se mudou para Santana do Ipanema. E para concluir a questão do começo no jornalismo: eu fazia a cobertura dos acontecimentos de Santana do Ipanema, aquelas coisas corriqueiras, casamento, eleição, briga política, Dia das Mães, problema na feira, o grupo escolar que está desabando. Vivia no dualismo entre narrar os fatos como as autoridades queriam ou como eu os via. A imprensa e o dever da verdade, de Rui Barbosa, virou minha bíblia.
Sua família tinha algo contra você ser jornalista?
Tinha tudo. Quando eu disse que ia fazer vestibular para jornalismo, meu pai disse que eu ia arrumar encrenca e observou, além disso, que curso superior de jornalismo só tinha em São Paulo e no Rio e ele não podia me custear no Sul. Fui para Recife resignado, prestar vestibular para engenharia, como minha família queria. Mas eu não tinha condição de fazer engenharia, não dominava matemática, física e química. Resolvi fazer direito. Mas no dia em que saiu o resultado do vestibular no jornal o que mais me interessou foi uma pequena notícia ao lado que dizia que a Universidade Católica ia criar o curso de jornalismo. Não tive dúvida: deixei a comemoração dos vitoriosos do vestibular e fui à Católica perguntar onde era o curso de jornalismo. Lá estava um senhor que me atendeu, era o professor Luiz Beltrão [1918-1986]. Durante duas semanas estudei nas bibliotecas públicas de Recife, me preparei e passei também no vestibular de jornalismo. Enfim, resolvi estudar direito e jornalismo. Naquele momento a Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste] estava se instalando e abrindo concurso para contratar pessoal. Fiz o concurso, passei e durante seis meses fiz um curso intensivo de oficial de administração dado pela Fundação Getúlio Vargas, com dois focos: economia nordestina e gestão nordestina. Os que tinham diploma universitário faziam o curso de técnico do desenvolvimento econômico, coordenado por um ilustre baiano, Nailton Santos, irmão do geógrafo Milton Santos. E no final do intensivo tive o privilégio de ser destacado para trabalhar no gabinete do superintendente, Celso Furtado. Eu estudava direito pela manhã, entrava na Sudene ao meio-dia e ficava até as seis e ia para o curso de jornalismo. Era uma loucura.
Você conta uma história curiosa ligada ao jornalismo especializado ali.
Sim. Quando me formei, fui trabalhar na divisão de divulgação e editoração da Sudene, onde fazíamos revistas, boletins, jornais. Eram cinco ou seis jornalistas. Com Luiz Beltrão, um excelente professor, eu aprendera os fundamentos teóricos do jornalismo. E em dado período eu já tinha sido treinado para a prática diária em Recife, no jornal Última Hora, desmantelado em 1964. Ali aprendi jornalismo com Milton Coelho da Graça na base da pedagogia do grito. Antes, a certa altura, como tinha sido militante político, vinha da JUC [Juventude Universitária Católica], ligada à esquerda católica, e passei para a Juventude Comunista, ligada ao Partido Comunista, fui trabalhar com [o governador] Miguel Arraes. Tornei-me chefe de gabinete de seu secretário de Educação, Germano Coelho, quando estava no primeiro ano da faculdade ainda, com 20 anos. Depois fui trabalhar no Movimento de Cultura Popular e estava ali como diretor administrativo quando veio a debacle de 1964. Voltei para a Sudene e é aí que se dá esse caso que você lembrou: deparei com a tarefa de fazer uma reportagem sobre a economia nordestina. Os economistas da Sudene a abominaram, rasgaram e jogaram fora. No início fiquei muito abalado, mas depois refleti e vi que em parte tinham razão: não é possível fazer bom jornalismo especializado, econômico ou científico, por exemplo, desconhecendo o conteúdo. Porque há que se situar entre aquele que produziu o conhecimento e aquele que não sabe sobre este conhecimento.
Quando decidiu mudar para São Paulo?
Depois que superei problemas de prisão, IPM [Inquérito Policial Militar] etc., porque fizera parte do governo Arraes, voltei para a faculdade e me formei. Naquele primeiro momento da ditadura, quem era da intelectualidade logo era solto, mas ficavam incomodando. Em todo inquérito no Recife eu era envolvido, de tal maneira que não tinha condição de viver lá. Antes de me mudar para São Paulo tive a sorte de ganhar uma menção honrosa no Prêmio Esso, o que me deu certa notoriedade em Recife. Aí consegui uma bolsa de estudos da Unesco, respaldada por Luiz Beltrão, e fui fazer o curso de pós-graduação em jornalismo que havia no Ciespal [Centro Internacional de Estudios de Periodismo]. Fiquei seis meses em Quito, Equador.
Já em São Paulo, qual foi sua primeira atividade profissional?
Cheguei em julho de 1966 e fui à luta. Fiz teste na Editora Abril e passei na revista Realidade. Mas um amigo me sugeriu trabalhar em publicidade, na qual ganharia muito mais e terminei no Inese [Instituto Nacional de Estudos Sociais e Econômicos], com o dobro do salário que ganharia na Abril. Ocorre também que eu começara uma experiência docente em Pernambuco quando Luiz Beltrão fora para a Universidade de Brasília [UnB] assumir a direção da Escola de Comunicação e me passou suas aulas. Por seis meses fui professor e gostei da experiência. Ao chegar aqui, tomei conhecimento da criação da Escola de Comunicações Culturais da USP. Soube que estavam buscando professores e fui ao diretor, o professor Julio García Morejón, um espanhol, titular da cadeira de língua e literatura espanhola. Ele me entrevistou e sugeriu que me inscrevesse para o concurso.
Existia então uma oposição da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas à criação da Escola de Comunicação?
A Faculdade de Filosofia deveria ter recebido essa nova área do conhecimento, mas havia um grupo que não queria isso. Então, a mulher do reitor Luís Antonio da Gama e Silva, dona Edi Pimenta da Gama e Silva, convenceu o marido a criar a Escola de Comunicações Culturais. Ele criou uma comissão e chamou alguns professores da Faculdade de Filosofia para essa comissão que estruturou a escola. Dela fazia parte Morejón, então um jovem muito empreendedor, da ala favorável ao jornalismo e integrante de um grupo ideo-logicamente não radical, que envolvia os professores Antonio Candido e Antônio Soares Amora, entre outros. Quem rejeitava era sobretudo um pessoal conservador ligado à educação, como Roque Spencer Maciel de Barros e Laerte Ramos de Carvalho. Passei no primeiro concurso e fui contratado só algum tempo depois.
A essa altura, o conceito de comunicação se desenvolvia no Brasil.
Não, isso só acontecerá nos anos 1970.
Um marco seriam os seminários de Wilbur Schramm e Daniel Lerner, organizados em 1970 pela UnB, com apoio da embaixada americana. Mas desde o final dos anos 1960 já se estudavam os trabalhos de Marshall McLuhan, não?
Não, McLuhan só chega em 1970, via Recife, com as primeiras leituras de Gilberto Freyre e Luiz Beltrão. Freyre, que vinha usando a imprensa como fonte de pesquisa, leu e difundiu o primeiro livro de McLuhan, pouco conhecido no Brasil, The mechanical bride: folklore of industrial man, que igualmente se valia de jornais e revistas, considerado material de terceira classe, como fonte de estudos. E Luiz Beltrão leu e difundiu A galáxia de Gutemberg. Depois viria O meio é a mensagem.Quem vai difundir McLuhan no Sul, como os nordestinos se referem ao Brasil abaixo do Rio de Janeiro, é Anísio Teixeira, que prefacia A galáxia de Gutemberg, e Décio Pignatari, que traduz Os meios de comunicação como extensões do homem, já no fim dos anos 1970.
Mas voltemos a seu trabalho na ECA.
Minha ida à USP foi precedida pela entrada na Cásper Líbero. Quando a ECA começou em 1967, começava também a famosa greve dos excedentes. Então recebi um convite da Cásper, que estava implantando a cadeira de teoria da comunicação, posteriormente fundamentos científicos da comunicação. Foi aí que propus ao diretor criar um Centro de Pesquisa da Comunicação Social.
Você tinha ali a noção clara de que trabalhava por um novo campo de pesquisa.
O fundador do campo de pesquisa em comunicação no Brasil é Luiz Beltrão, em Recife. Ao criar em 1963 o Instituto de Ciência da Informação, ele logo começou a desenvolver estudos dos meios de comunicação. Rea-lizei lá, sob orientação dele, um trabalho de iniciação científica sobre o noticiário policial na imprensa nordestina, com análise de conteúdo, medições etc. Depois fiz a pós-graduação no Ciespal e fui aluno de Bruce Westley, Malcolm Maclean e Joffre Dumazedier. Já lera os trabalhos de Wilbur Schramm e Daniel Lerner, autores fundamentais para a comunicação. Tinha, portanto, essa noção do campo e da necessidade de expandi-lo. Acho importante sempre destacar que Beltrão fez uma introdução importante no Recife e difundiu isso para o Brasil inteiro. Foi ele quem criou a primeira revista científica da área, Comunicações e Problemas. Então, crio o centro da Cásper Líbero e começo a desenvolver uma série de pesquisas que repercutem mal na academia.
Por quê?
Por preconceito em relação ao objeto. Formei várias equipes, por exemplo, uma que estudava o conteúdo das histórias em quadrinhos e perguntavam: “Mas histórias em quadrinhos? Só tem porcaria…”. Fiz um grupo sobre o Diário de S. Paulo, pois estudamos todos os jornais em circulação. Mas a pesquisa que pior repercutiu foi sobre telenovelas.
Mas a linha de pesquisa de telenovelas logo se tornaria uma tradição na ECA.
Não, isso só aconteceu nos anos 1990. Quando fui diretor da Escola, verifiquei que o curso de rádio e televisão ensinava tudo, menos telenovela, o principal produto de exportação de nossa indústria cultural. Criei, por portaria, o Núcleo de Estudo de Telenovela, tentei obter recursos para ele em todas as fundações da USP e não consegui.
Em 1967, você fundou o centro da Cásper. E quando passou a ensinar na USP?
Em maio de 1967. Foram contratados três professores inicialmente para o jornalismo: Flávio Galvão, um jornalista de O Estado de S. Paulo, José Freitas Nobre, que era advogado, e eu, com a incumbência de chefiar os dois, porque tinha uma pós-graduação e podia ficar em tempo integral na USP. Foi aí que tive que fazer uma opção.
Entre a Cásper e a USP?
Não, entre a riqueza e a pobreza. Ganhava muito bem no Inese e fui ganhar a metade na USP. Aí fiquei, primeiro, de 1967 a 1974. Até 1972 trabalhei implantando o Departamento de Jornalismo e Editoração e desenvolvi uma série de atividades, com pesquisa e profissionalização conjugadas. Mas o ano de 1972 marcou minha vida porque fui descoberto pelos serviços de inteligência e, quando terminou a 4ª Semana de Estudos Jornalísticos, fui processado pelo decreto-lei 477 [versava sobre punições, inclusive expulsão de estudantes e demissão de professores e funcionários acusados de atividades subversivas na universidade]. O motivo do meu inquérito foi uma apostila que eu havia feito em 1968, chamada “Técnica do lide” e que circulara no país inteiro. Eu dava minhas aulas de jornalismo como os professores americanos: lide, conceitos etc., depois vinha a parte prática, os alunos iam aos jornais investigar essas coisas. Uma dessas aulas do lide [lead, no original inglês, parágrafo de abertura de uma notícia que, classicamente, deve informar ao leitor o que, como, quando onde e porque aconteceu aquilo que é o motivo daquele texto] foi dada no dia seguinte à morte do estudante Edson Luís [o primeiro estudante morto pela ditadura de 1964, em 28 de março de 1968], no Calabouço [o restaurante universitário do Rio de Janeiro]. Os alunos fizeram a parte prática do lide em cima daqueles fatos do dia. Esse material entrou na apostila que chegou até no exterior, coisa que eu desconhecia. Meu inquérito foi um negócio kafkiano. A publicação logo foi tirada de circulação na ECA e eu fui condenado. A comissão que me processou aqui na USP, com o então reitor Miguel Reale, recomendou que eu fosse demitido e impedido de lecionar no país por cinco anos. Foi um episódio dramático, mas não acuso ninguém, falo no Reale porque era ele a autoridade. Havia um esquema montado na reitoria, os órgãos de segurança estavam lá dentro. O processo correu o ano inteiro. A USP finalmente me condenou e enviou o processo para o Ministério da Educação, porque o ministro tinha de homologar o resultado. O ministro Jarbas Passarinho disse que não ia punir esse caso porque se via que o autor não era um terrorista e o decreto destinava-se a combater terroristas. Ele me absolveu, mas a estrutura da universidade não assimilou, criou uma reação. Fui proibido de sair do país, fui afastado da chefia do departamento e fiquei só como professor. Então decidi me dedicar inteiramente à minha tese de doutorado. Inscrevi a tese em dezembro de 1972, defendi em fevereiro de 1973 e me tornei o primeiro doutor em jornalismo no Brasil, o que naturalmente virou notícia. Isso irritou profundamente as autoridades da USP e os serviços de segurança. A essa altura a ECA já estava sob intervenção militar, fora nomeado um interventor, Manuel Nunes Dias, que era agente da repressão e, quando minha banca foi designada, ele disse que queria entrar. A banca foi composta por meu orientador, Rolando Morel Pinto, Antônio Soares Amora, Julio García Morejón, Virgílio Noya Pinto e este Nunes Dias, em relação ao qual eu não deveria reagir, por recomendação de meu orientador. Ele destroçou a tese. Basicamente dizia que eu estava citando marxistas e a bronca maior era com [o historiador] Nelson Werneck Sodré. No final, todos me deram 10, menos o interventor. Mas a perseguição na universidade era tanta que me aconselharam a sair do país. Pedi à FAPESP uma bolsa de pós-doutorado, obtive e fui para os Estados Unidos. Fiquei um ano lá.
E qual foi o seu foco?
Como a pós-graduação no Brasil estava mudando, fui observar como funcionava a pós-graduação, em especial no jornalismo. Quando voltei, o relatório foi aprovado pela FAPESP. Mas a USP não queria nem saber, fui demitido. Só depois soube das circunstâncias: o comandante do II Exército mandara uma instrução para a USP demitir os comunistas mais notórios. Marilena Chauí era a primeira da lista, depois vinha Paulo Emilio Salles Gomes. Fui demitido sumariamente, sem direito a indenização, sem qualquer explicação. E só voltei com a Anistia, em 1979.
Como você sobreviveu nesse período?
Tive vários convites para sair do país-, mas Silvia [sua mulher] não queria. Fui dar aula em outras faculdades, com muita dificuldade porque os órgãos de segurança diziam sempre que eu não podia. A Igreja Metodista estava instalando uma faculdade de comunicação em São Paulo e um dos pastores que eu já conhecia de Recife me chamou para trabalhar lá. Fui e três meses depois prepostos dos órgãos de segurança foram fazer pressão sobre o reitor. Ele mandou que se colocassem dali para fora, porque ali era uma casa de Deus, onde trabalhava quem ele queria.
E quem era esse reitor valente?
Chamava-se Benedito de Paula Bittencourt, era membro do Conselho Federal de Educação. Ele mandou me chamar e me tranquilizou. Eu prometi levar para ele os dois livros que tinha escrito, pedi que lesse e lhe assegurei que pediria demissão se ele achasse que tinha algo comprometedor. Dois meses depois ele me chamou e disse que não havia problema nenhum, eu apenas não deveria fazer proselitismo em sala de aula. Foi então na Metodista que sobrevivi, pude trabalhar e, em seguida, instalei a pós-graduação. Montei um corpo docente com um pessoal que vinha do exterior, acolhi professores como Fernando Perrone, que estava exilado na França, Paulo José, exilado no Canadá, e logo a pós da Metodista foi considerada curso toppela Capes [Coordenação de Aperfeiçoa-mento de Pessoal- de Nível Superior]. Ficou reconhecido no país inteiro. Criei a revista Comunicação e Sociedade, mais ou menos uma sucessora da revista do Beltrão, que circulou de 1967 até, se não me engano, fins de 1970. Mas teve outras publicações da área. A ECA mesmo tinha a Revista da Escola de Comunicações Culturais, o Jornal do Brasil tinha os Cadernos de Jornalismo.
Como você conciliou suas várias frentes de trabalho nessa fase?
Fiz um grande malabarismo. As primeiras pesquisas feitas na Cásper publiquei no livro Comunicação social – Teoria e pesquisa, o primeiro best-seller da comunicação no Brasil. Cheguei a vender 20 mil exemplares, seis edições sucessivas, e isso só não prosseguiu porque depois de algum tempo a parte empírica das pesquisas estava defasada e eu pedi para suspender. Fiquei de reescrever, mas nunca reescrevi nenhum livro. Escrevi mais de 20 livros, perdi a conta, e tem uns 70 que organizei ou coordenei.
Você foi carregando sua experiência de uma instituição para outra, não?
Sim, trouxe de Recife para a USP, por exemplo, toda a experimentação com jornais que Beltrão fazia, mas com uma vantagem: a riqueza. Aqui era possível ter o jornal-laboratório, em vez do jornal-cobaia, dissecando os jornais existentes e fazendo uma proposta sobre como fazê-los melhor. Aliás, a primeira tarefa que recebi de Morejón foi exatamente instalar um jornal-laboratório. Apresentei um projeto, montei a estrutura e começamos a importar o equipamento. Enquanto a oficina gráfica não chegava, usávamos serviços particulares, não dava para editar nada em outras instituições da USP por causa da censura. Nossa primeira experiência prática foi sugestão de Freitas Nobre: fizemos um Seminário Internacional sobre Pesquisa em Rádio e Televisão, em maio de 1968 e convidamos algumas personalidades para vir falar sobre a pesquisa em mídia, entre elas Edgar Morin, Roberto Rosselini e Andres Guevara. Só que esquecemos de fazer o timming com o movimento de maio de 1968. Quando essa turma chegou na ECA, os alunos não a deixaram entrar. Estavam em greve, ocupando o prédio da escola. A Unesco tinha investido muito, o Itamaraty também e ficamos naquele impasse. Mas Lupe Cotrim, que era muito querida entre os estudantes, decidiu ir se entender com eles. Argumentou que não se tratava de aula, que teriam a oportunidade de ouvir discursos alternativos e até poderiam montar uma agência de notícias. Então, a primeira experiência laboratorial da ECA foi a agência universitária de notícias. Os alunos faziam a cobertura do seminário e elaboravam um boletim diário que ia para a imprensa do Brasil inteiro.
E as experiências de pesquisa na USP?
Criei um Centro de Pesquisa em Jornalismo para analisar o jornalismo em geral, jornais de bairro etc. A grande dificuldade que tínhamos originalmente era a falta de um corpo docente em tempo integral, os jornalistas não queriam se dedicar somente a ensino e pesquisa. Mas pouco a pouco fomos formando uma geração voltada a ensino, pesquisa e extensão. Nesta última, por exemplo, tínhamos contratado dois professores, o de diagramação e o de fotojornalismo. O primeiro era Hélcio Deslandes, grande capista, arquiteto e artista plástico que vinha da área de publicidade. Ele ensinava os alunos a fazerem uma diagramação sintonizada com as melhores tendências da época, e quem olhar os jornais-laboratório da ECA no período verá coisas belíssimas.
E o de fotojornalismo?
Era Thomaz Farkas, formado engenheiro eletrônico na Poli, mas fotógrafo apaixonado por cinema, dono da Fototica. Ele dava aula mandando os alunos, primeiro, irem à feira de Pinheiros ou a algum outro lugar fotografar e, na volta, dava as aulas teóricas – o que era muito mal visto na época. Queriam que eu cortasse seu ponto. Até que Farkas desapareceu. Tinha sido preso. Eu, chefe de departamento, tinha que dar um atestado informando que ele não havia comparecido ao trabalho. Mas mostrei o ponto assinado, porque fizemos um rodízio de professores e cada dia um dava aula no lugar dele. E foi assim até que o Farkas foi solto. Além de professor, ele foi um benemérito da ECA. Deu de presente o “projeto” do laboratório, cuja aquisição foi feita pela universidade, cabendo-lhe também a implantação desse tipo de iniciativa. No final, fomos cinco professores cassados no Departamento de Jornalismo: Freitas Nobre, Farkas, Jair Borin, Sinval Medina e eu.
Quando você voltou para a ECA?
Voltei em 1979, com a Lei da Anistia. O departamento estava destruído. O último dos nossos professores a ser vitimado foi Vladimir Herzog, contratado havia pouco para dar telejornalismo, quando foi morto. Nosso retorno não foi tranquilo. O corpo docente foi mudado durante o mandato de Manuel Nunes Dias e, se não fosse o movimento de alguns professores pela volta dos cassados, não teríamos retornado. [José] Goldemberg já era o reitor e nos recontratou. Mas como no Diário Oficial só se publicara que nosso contrato tinha sido encerrado, não que fôramos cassados, tive que fazer de novo toda a carreira. Alguns anos depois recuperei o salário de professor titular. Fiquei até 1993, quando me aposentei. Minha trajetória nesse período foi, acima de tudo, reconstruir o Departamento de Jornalismo. Também repeti as “semanas de jornalismo” e a primeira foi sobre Marx e o jornalismo, pauta dos estudantes. Lembro que na primeira Semana de Jornalismo, em 1969, debatemos sensacionalismo e foi um grande mal-estar tratar desse tema na USP. Levamos Romão Gomes Portão, editor do Última Hora, um editor do Notícias Populares, Talma de Oliveira, que dramatizava notícias no rádio e assim por diante. Mas também levamos Alberto Dines e um ainda desconhecido frei Evaristo, frade franciscano que trabalhava no Carandiru, com a Pastoral Carcerária. No último dia iam falar da visão ética do jornalismo sensacionalista, chegaram todos os convidados, menos o frei. Decidimos dar início sem ele, mas aí da plateia o frei levantou a mão, apresentando-se: Paulo Evaristo Arns. Ele já era bispo auxiliar de São Paulo e eu não sabia. Dois meses depois foi nomeado arcebispo e cardeal. Foi depois desta “semana” que circulou pela primeira vez o Jornal do Campus.
E o Jornal do Campus permaneceu até quando?
Até quando publicou uma matéria sob o título “Os marajás da USP”. Bernardo Kucinski assumira a chefia de redação, descobriu a folha de pagamento do pessoal que tinha duplo salário, publicou e causou a maior celeuma. Chamaram-me na reitoria e avisaram que iam tirar o subsídio do jornal. A universidade criou o Jornal da USP para substitui-lo. Na ocasião até banquei, porque era chefe de departamento e tenho que defender a liberdade de imprensa. Mas hoje, olhando bem, sei que se tivessem pesquisado mais teriam visto que não era ilegal. Era o chamado adicional noturno. Todos que davam aula num só turno e passaram a dá-las à noite tiveram o salário dobrado.
Quando você voltou à Metodista?
Depois de me aposentar recebi um convite para montar a Cátedra Unesco no Brasil. A Metodista já me convidara para implantar o doutorado. Então fui para implantar o doutorado em comunicação e levei a cátedra. Dediquei-me a isso desde então. Quero me aposentar no próximo ano, quando completo 70 anos e quero ter tempo livre para escrever.
Que balanço você faz da pesquisa em comunicação no Brasil hoje?
Na verdade, sou muito crítico. É um campo que cresceu muito, em 2013 vamos completar 50 anos de atuação e já somos o segundo país em número de pesquisas – à nossa frente só estão os Estados Unidos, que têm uma tradição de 100 anos. Temos recursos, temos 250 mil estudantes, 25 mil professores e muitos doutores. Nossa presença nos congressos internacionais é marcante, somos o segundo no ranking de papers selecionados para o principal evento internacional de nossa área, a International Association for Media and Communication Research (IAMCR), mas a pesquisa brasileira não consegue deslanchar no sentido de liderança. Por quê? A primeira razão é não termos autoestima intelectual. O campo ainda não tem identidade própria, trabalha com objetos cada vez mais perto de uma identidade, mas falta assumir isso. E são poucos os pesquisadores brasileiros que se preocupam com essa questão, como Muniz Sodré e Maria Immacolata Vassalo Lopes. Comunicação não é uma área autônoma de pesquisa. Como todas as ciências aplicadas, ela incorpora contribuições que vêm das demais ciências, das exatas e das humanas.
Há quem defenda, como Muniz Sodré, que o objeto dessa ciência, digamos assim, é a relação comunicacional.
Há várias teorias sobre isso e eu entendo que o objeto é um pouco mais amplo que a mera relação. O campo tem, institucionalmente, duas divisões: a comunicação interpessoal, que vem da retórica, da psicologia, do comportamento, da educação; e a comunicação de massa, que tem uma tradição basicamente jornalística, depois se amplia para a publicidade e as relações públicas. Nos Estados Unidos o campo é bifurcado: tem a Associação para a Educação em Jornalismo e Comunicação de Massa e a Associação Norte-americana de Comunicação, que envolve retórica, linguagens, comunicação interpessoal, argumentação…
O esforço que grupos como o da Universidade Federal da Bahia (UFBA) fazem para articular comunicação e cultura também é uma busca de identidade?
Temos várias maneiras de criar identidade que não pelo objeto. Os estudos de cultura procuram se desvencilhar do objeto comunicação de massa em busca de algo um pouco mais nobre.
Mas a parca autoestima que você atribui aos pesquisadores da comunicação decorre dessa dúvida sobre objeto ou do escasso reconhecimento acadêmico?
Penso que do pequeno reconhecimento acadêmico. Meu diagnóstico é que a comunicação continua sendo o primo pobre das humanidades e das ciências sociais aplicadas aqui no Brasil porque temos sempre uma associação desqualificando a outra, quando devíamos estar unidos, brigando por recursos para todo o campo, e não para segmentos.
Mas, para além dos problemas institucionais, há profundas divisões teóricas.
Acho que o problema é mais taxionômico do que teórico. Não há muito avanço no Brasil em teoria da comunicação.
Vários programas de pós quase se inviabilizaram por insuficiência de pontuação na Capes. Como isso está?
Esse problema ainda não está resolvido, tanto que a área de comunicação não tem interface internacional. Houve, em minha maneira de ver, uma tentativa das regiões emergentes, lideradas pela Bahia, de assumir uma posição de liderança nacional em contraposição aos dois maiores polos de pesquisa, São Paulo e Rio de Janeiro. O pessoal da Bahia é muito sério, tem gente muito boa, mas faltou compreensão histórica para o problema. A ECA e a ECO [Escola de Comunicações] foram escolas que formaram quase toda a geração de pesquisadores de comunicação em atuação no país, mas foram se agigantando e perdendo as características que correspondem às exigências das agências de fomento. Quando fui diretor da ECA, empreendi um movimento de desconcentração da pós-graduação, que tinha então mil alunos. Baixamos o número para selecionar mais, procuramos subdividir essa pós-graduação em vários programas, mas infelizmente isso não prosperou. Agora está começando a voltar o projeto que estabelecemos no começo dos anos 1990, quando implantamos pós-graduação em cinema, em biblioteconomia, de modo semelhante ao que se tinha nas artes, em que teatro, artes plásticas e música eram e são projetos separados, cada um com sua identidade. Mas só uma reorganização nesses moldes pode prosperar, porque comunicação é tudo e não é nada.
Afora os brasileiros que você já citou ao longo da entrevista, quem são os teóricos da comunicação de sua preferência?
Não sei se posso falar em predileção, porque tenho sempre a ambição de ter independência filosófica. Meus autores preferidos nesses anos todos têm sido Raymond Nixon e Fernand Terrou. Alguns companheiros de geração com quem tive muita afinidade foram Herbert Schiller e George Gerbner, nos Estados Unidos, e, entre os franceses, Bernard Miege.
E como são suas relações com Barbero?
São boas relações, mas não tão íntimas. Sou muito avesso a culto às personalidades. Acho que Barbero é um pesquisador de grande valor, mas cultuado a ponto de ele próprio se sentir mal em relação a isso. Tenho promovido na Cátedra Unesco uma série de seminários para projetar o pensamento latino-americano. Comecei com Luis Ramiro Beltrán, que é o pai das políticas nacionais de comunicação, depois Jesús Martin-Barbero, com a teo-ria das mediações, Eliseo Verón… Tenho trazido todas essas pessoas porque acho que os jovens precisam conhecer as diferentes tendências de um campo.
Como é a relação entre suas visões da comunicação em geral e o campo do jornalismo científico?
A comunicação só tem sentido quando serve para construir alguma coisa. Então jornalismo é fundamental para compreender o que acontece no mundo contemporâneo e o que ocorre ao redor do ser humano, na comunidade e na sociedade. O jornalismo científico em particular é um campo fundamental porque é um campo da democratização do conhecimento. É onde o jornalismo se põe como uma forma de conhecimento.
Qual foi sua maior contribuição ao campo da comunicação no Brasil?
Aquilo a que venho me dedicando há quase 50 anos, com muita atenção, são os gêneros jornalísticos. Tenho uma proposta de classificação dos gêneros no país em cinco vertentes: informativo, opinativo, interpretativo, utilitário ou de serviços e o diversional, que, equivocadamente em minha opinião, chamam de jornalismo literário. Vivemos numa sociedade onde o hedonismo predomina e os jornalistas precisam fazer algum tipo de matéria que seja mais atraente para o cidadão comum, que não sejam só os fatos do cotidiano, daí o jornalismo diversional. Meu texto mais antigo nesse sentido é minha tese de livre-docência na USP, inicialmente publicada como Opinião no jornalismo brasileiro, depois republicada com algumas alterações, como Jornalismo opinativo, no qual basicamente estudei só os textos opinativos. E estou escrevendo um livro, que não sei se vou concluir, sobre os gêneros jornalísticos no Brasil. É uma tarefa hercúlea, fiz só 30% e precisaria agora parar para pesquisar. Eu quero partir de Hipólito da Costa e chegar ao jornalismo de hoje. Quero passar pela imprensa do século XIX quando ela começa a se tornar empresarial à imprensa do século XX, já industrial, e chegar à imprensa de hoje.
Esse livro carrega, então, a ambição da grande história do jornalismo no Brasil.
Quando entreguei meu projeto de tempo integral na USP, apresentei meu projeto de desenvolvimento do jornalismo no Brasil. E minha tese de doutorado já era sobre as razões pelas quais a imprensa se retardou no Brasil. Venho trabalhando nisso há anos.