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Grupo de alunos da UFBA faz “viagem genética de 2 bilhões de anos” e publica artigo na revista Genomics
Genética

por | 25 ago 2020

Fernanda Caldas, Edgardigital

Descoberta sugere que grupo de genes se originou no último ancestral comum das células com núcleo

Na imagem, 225 sequências de proteínas ADAM, subdivididas em três grandes grupos

Foi numa atividade curricular inicialmente despretensiosa que um grupo formado por dez pós-graduandos e um professor do Programa de Pós-graduação em Bioquímica e Biologia Molecular (PMBqBM) do Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) fez uma descoberta inédita: encontrou uma origem ainda mais antiga num grupo de proteínas com importante papel na comunicação celular.

O trabalho resultou em uma publicação na revista Genomics, uma das mais conceituadas do mundo no campo da biologia, e se baseou na exploração do DNA da família gênica ADAM (do inglês – A Disintegrin And Metalloprotease). As proteínas ADAM, formadas pelos genes de mesmo nome, são encontradas na superfície celular e estão envolvidas nos processos celulares de sinalização e desenvolvimento de organismos.

Trata-se de uma viagem genética de dois bilhões de anos, que amplia o conhecimento da literatura científica ao afirmar que, apesar de não ser mais encontrada em plantas, essas proteínas estavam presentes em algas verdes do tipo Mamiellophyceae, uma espécie de tataravó das plantas terrestres. A descoberta desafia a literatura científica vigente que, até então, acreditava que o gene ADAM teria origem no último ancestral comum entre animais e fungos, os chamado Opisthokonta, há aproximadamente 1 bilhão de anos. Essa conclusão era limitada aos achados genéticos de ADAM em animais e alguns poucos fungos.

O estudo da UFBA avança à medida que encontra esses genes numa linhagem ancestral de algas verdes unicelulares de gênero Micromonas (classe Mamiellophyceae). O mesmo resultado foi achado em outras espécies da mesma classe de algas. Assim, a descoberta inédita sugere que os genes ADAM se originaram no último ancestral comum dos eucariotos (células com núcleo), antes da divisão de plantas, fungos e animais, algo que aconteceu em torno de 2 bilhões de anos atrás.

A pesquisa também reafirma a literatura científica ao identificar que os genes ADAM não são mais encontrados em plantas. “Provavelmente as plantas e a maioria das algas que conhecemos hoje perderam esse tipo de proteína e devem ter evoluído estratégias distintas de comunicação celular”, afirma o biólogo Luiz Eduardo Del Bem, que foi professor visitante no ICS em 2017 e 2018 e atualmente é professor da Universidade Federal de Minas Gerais. A perda de ADAM como mecanismo de comunicação celular em plantas e algas seria um dos aspectos fisiológicos que diferenciam plantas de animais, “um importante mecanismo de diferenciação entre nós e elas”.

O estudo foi publicado em abril na conceituada revista Genomics, primeira da área e que teve influência significativa no batismo de todo um campo da biologia, a genômica. Sob liderança de Luiz Del Bem, dez pós-graduandos em Bioquímica e Biologia Molecular (PMBqBM) e em Biotecnologia (PPGBiotec) assinam o artigo “The evolution of ADAM gene family in eukaryotes” (A evolução da família do gene ADAM em eucariotos).

A viagem genética

As proteínas ADAM estão envolvidas com diversos processos biológicos. Proteínas da superfície celular, são responsáveis por unir células, sinalizar e controlar a realização de processos no organismo. Mutações nos seus genes, inclusive, estão associadas a diversos tipos de câncer, doenças cardíacas, asma, distúrbios imunológicos e problemas de desenvolvimento.

Para explorar a árvore genealógica das proteínas, os pesquisadores usaram computadores para procurar por sequências de DNA parecidas com as dos genes ADAM humanos em dezenas de genomas completos, que iam de plantas a fungos, passando por algas e um grande número de animais, vertebrados e invertebrados.

No homem, são catalogadas 20 proteínas ADAM, classificadas no trabalho do grupo, em tipos A, B e C. “As ADAM humanas tipos A são muito parecidas com as ADAM encontradas em diversos eucariotos: algas, fungos, coanoflagelados e animais. Algumas ADAM humanas parecidas com as de animais vertebrados e invertebrados foram classificadas como tipo B. Outras ADAM foram encontradas em maior quantidade apenas em vertebrados e foram classificadas como tipo C, indicando a expansão destes genes nos vertebrados”, explica a doutoranda Juliana Souza, uma das autoras da pesquisa.

O estudo genômico observou a relação evolutiva de proteínas ADAM de 21 espécies, entre animais, coanoflagelados (seres microscópicos e unicelulares, com estreito parentesco com animais), fungos, e algas verdes da classe Mamiellophyceae. Os pesquisadores concluíram que os genes ADAM se diversificaram pouco e por duplicação gênica durante a maior parte da evolução da vida na Terra.

“A maior parte dos 20 genes ADAM presentes no genoma humano derivam de duplicações gênicas ocorridas no último ancestral comum dos vertebrados, quando nossos ancestrais eram semelhantes a peixes”, explica Del Bem. A ampliação do número de cópias de genes ADAM em animais é associada ao surgimento de um cérebro e mecanismos reprodutivos mais complexos em vertebrados.

Dados abertos e estímulo à publicação

A busca pelo histórico da família de genes ADAM foi feita por uma abordagem genômica comparativa, com acesso a bancos de dados genômicos públicos, e algoritmos computacionais, que contribuíram para produzir a árvore genealógica da proteína, uma espécie de impressão digital do processo evolutivo. Apesar da complexidade e do resultado robusto, a pesquisa teve praticamente custo zero, com o uso de dados abertos, beneficiando-se da bagagem intelectual dos pesquisadores.

Também contribuiu para o bom resultado a metodologia da disciplina Filogenética Molecular do PMBqBM/ICS, que originou a pesquisa. “Durante o processo, entre discussões metodológicas e conceituais que faziam parte da disciplina em si, observamos que havíamos descoberto algo até então inédito na literatura”, conta a doutoranda Juliana Souza, que destaca a união entre teoria e prática do curso, além do incentivo à publicação.

“Em tempos de total desestímulo financeiro e moral aos pesquisadores e às instituições públicas é extremamente importante a divulgação de feitos como esse. Tenho muito orgulho de ter participado do projeto, não apenas pelos resultados, mas principalmente por mostrar, na prática, a importância do formato da disciplina”, fala Souza.

Além de Souza e Del Bem, são igualmente responsáveis pelo estudo Thales Bezerra, Breno Lisboa, Marcos Andrade, Hendor Neves, Rodrigo Oliveira, Juliana Souza, Valéria Falcão, Jessica Souza, Thiago Santos e Victor Neves.

“Esse é o tipo de ciência que eu penso que o Brasil deveria fazer. Ensino em pós-graduação de alto nível, que permita que nossos estudantes tenham condições de publicar em nível internacional e que seja uma ciência feita de forma inclusiva, diversa, que tenha a cara do povo brasileiro”, fala Del Bem.

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