jornalismo, ciência, juventude e humor
Como as estruturas sociais da Alemanha nazista criaram uma sociedade espectadora

Ellen Pilsworth, The Conversation, tradução de Mariluce Moura

Entre a sociedade espectadora e a sociedade desinformada

Em 2017, numa aula sobre as relações entre jornalismo e as experiências totalitárias do século XX, fiquei indisfarçavelmente chocada quando uma jovem aluna disse e insistiu que o nazismo fora uma criação política da esquerda.

A expressão fake news ainda não era tão corrente e estávamos a uma certa distância das pesquisas sobre o fenômeno mais profundo da desinformação, hoje praticamente colado à comunicação como objeto de estudo das dinâmicas sociais contemporâneas. Naquele momento, eu não conseguia perceber quais fontes de informação tinham feito a cabeça da minha aluna naquela firme convicção de que o nazismo era de esquerda. O artigo da pesquisadora de literatura e cultura alemã Ellen Pilsworth, da Universidade de Reading, do Reino Unido, publicado originalmente em inglês pelo site The Conversation em 31 de janeiro passado e em espanhol em 6 de fevereiro, chamou minha atenção, primeiro, por oferecer aos leitores o conceito de “sociedade espectadora”. Seria uma fronteira nova para explorar as razões por que praticamente um país inteiro se permitiu aderir e obedecer ao comando de seu líder totalitário.

Em segundo lugar, me levou à vontade de republicar o texto o seu último parágrafo, quando Pilsworth recorre ao estudioso do holocausto Michal Rothberg, para sugerir que “as categorias de heróis e vilões, vítimas e perpetradores, são inadequadas para explicar os danos causados” pelo nazismo, e propõe que se mover para além delas “também pode jogar luzes sobre a dinâmica social destrutiva” de nosso próprio tempo.”. Penso que é por aí que hoje tornou-se crucial investigar profundamente o fenômeno transnacional da desinformação, largamente financiado por grandes agentes do capital e tecnologicamente sustentado pelas big techs, entre outros atores. Antes que seus danos sejam tão irreversíveis quanto os das experiências totalitárias do século XX. (Mariluce Moura)

 

Nos primeiros processos jurídicos do pós-guerra mundial para estabelecer o que acontecera sob o nazismo e punir os autores dos crimes, os relatos das vítimas foram frequentemente menosprezados. Só em 1961, com o julgamento de alto nível do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, o foco mudou.

Para muitos sobreviventes, o conceito de “testemunho do Holocausto” — relatos do que tinham vivido — atingiu dimensões quase sagradas. Em 1989, Elie Wiesel, escritor e sobrevivente de Auschwitz, argumentou que seria antiético a qualquer pessoa, afora as vítimas sobreviventes do Holocausto, tentar representá-lo ou explicá-lo.

De certo modo, a insistência de Wiesel em que apenas vítimas sobreviventes poderiam realmente “conhecer” o Holocausto contribuiu para a mistificação deste período histórico. Os negacionistas do Holocausto apropriaram-se indevidamente desse processo para seus próprios fins.

Examinar contemporaneamente as perspectivas das não-vítimas pode nos ajudar a compreender a violência perpetrada em parte como resultado de sistemas sociais. A minha investigação explora como relatos de refugiados antinazistas foram recebidos (em tradução) pelos leitores britânicos da época.

Tais memórias podem ilustrar o processo pelo qual o nazismo transformou a população alemã naquilo que a historiadora Mary Fulbrook denomina uma “sociedade espectadora” – mesmo antes de as condições do tempo de guerra normalizarem os atos de excessiva violência.

Scherl:
Zur Besprechung des Führers mit dem englischen Ministerpräsidenten Chamberlain in Bad Godesberg a/Rhein
Unter dem Jubel der Bevölkerung führt der Führer vom Bahnhof Godesberg zum Hotel Dreesen, wo die Besprechung stattfindet.
Fot.: 22.9.38

Vivendo na Alemanha nazista

Em 1939, Sebastian Haffner, cujo nome verdadeiro era Raimund Pretzel, escreveu um livro de memórias intitulado Geschichte eines Deutschen. Die Erinnerungen 1914–1933 (Histórias de um alemão. Lembranças 1914-1933).
O livro foi publicado após a morte do autor, em 2000, usando o pseudônimo pelo qual ele se tornou famoso como jornalista na Alemanha Ocidental do pós-guerra. Em 2003, foi publicada uma tradução para o inglês intitulada Defying Hitler. O historiador Dan Stone descreveu o trabalho como “uma das mais notáveis ​​análises contemporâneas do nazismo e do Terceiro Reich”.

Haffner era estagiário de direito quando Hitler assumiu o poder. Como o regime nazista destruiu o sistema jurídico democrático que ele havia estudado, optou pelo jornalismo. Sua companheira, Erika Schmidt-Landry, for designada “judia” de acordo com as leis raciais de Nuremberg. Quando ela engravidou de Haffner, o casal trocou a Alemanha pela Inglaterra.

No Reino Unido, Haffner começou a escrever um livro de memórias de sua vida até então, incluindo sua visão sobre a ascensão do nazismo. Em uma cena reveladora, ele descreve como se sentiu quando os colegas judeus do escritório de advocacia foram forçados a sair pelas tropas de assalto nazistas (também conhecidas como camisas marrons) em 1º de abril de 1933, dia do boicote aos judeus. Alguns colegas caminhavam nervosamente. Outros riam dissimuladamente. Um colega judeu simplesmente embalou suas coisas e foi embora.

Haffner escreve:

Meu próprio coração batia forte. O que devia fazer? Como manter meu equilíbrio? Apenas ignorá-los, não os deixar me perturbar. Baixei minha cabeça sobre meu trabalho. […] Enquanto isso um camisa marrom se aproximou de mim e tomou posição em frente a minha mesa de trabalho. ‘Você é ariano?’ Antes que eu tivesse uma chance de pensar, disse: ‘Sim.’ […] O sangue subiu às minhas faces. Tarde demais, senti a vergonha, a derrota. […] Fracassara em meu primeiro teste. Poderia ter esbofeteado a mim mesmo.

Em outra ocasião, num campo de doutrinação compulsória para estudantes de direito, Haffner é forçado a fazer a saudação a Hitler e a cantar canções pró-nazis. Ele escreve:

Pela primeira vez tive a sensação, tão forte que me deixou um gosto na boca: ‘Isso não conta. Este não sou eu. Não conta.’ E com esse sentimento, também eu levantei meu braço e o mantive estendido à minha frente por cerca de três minutos.

O relato de Haffner ilustra a autodecepção e a negação através dos quais muitas pessoas que não apoiaram ativamente o regime nazista sobreviveram dentro dele. Numa entrevista concedida em 1989, Haffner disse que não era que todos os alemães fossem nazis, mas também que o nazismo dificilmente afetava a vida quotidiana: “Era possível de certa forma viver paralelamente a ele”.

Civis alemães cavando trincheira na frente ocidental (Bundesarchiv, Bild 101I-590-2332-26 / Appe [Arppe] / CC-BY-SA 3.0)

Uma sociedade espectadora

Fulbrook mostrou como os alemães comuns foram atraídos para “processos de cumplicidade”. Sob o nazismo, ficar de braços cruzados enquanto atos de violência coletiva patrocinados pelo Estado eram perpetrados tornou-se gradualmente a norma exigida. Os riscos pessoais de agir de outra forma eram muito reais. “O que pode ser uma postura moralmente louvável num regime liberal e democrático”, escreve Fulbrook, “pode ser, em outras circunstâncias, ineficaz e ao mesmo tempo potencialmente suicida”.

Se alguém no Reino Unido, em 2024, julgar os espectadores alemães dos crimes nazistas como “culpados” por não terem defendido as vítimas, fazem isso de acordo com as obrigações morais de uma democracia liberal. Entretanto, a ascensão de Hitler ao poder em 1933 marcou o fim da democracia alemã. O Terceiro Reich foi um estado policial brutal. As pessoas eram encorajadas a denunciar os opositores do regime. A rebeldia conduzia ao risco de detenção, prisão ou “reeducação” política num campo de concentração sob Schutzhaft (“custódia protetora”).

Tanto na Alemanha como na comunidade internacional, todos tiveram que compreender a violência perpetrada sob o nazismo em seus próprios termos. Mesmo as palavras “genocídio” e “Holocausto”, pelas quais a época tem sido definida desde então, ainda não faziam parte do vocabulário das pessoas.

O termo “genocídio” foi cunhado pelo advogado polonês Raphael Lemkin, em 1944, para descrever o programa nazista de aniquilação dos judeus. “Holocausto”, uma palavra comparativamente mais antiga, só passou a ser amplamente utilizada para descrever formalmente o genocídio perpetrado sob o nazismo contra os judeus a partir do final da década de 1950.

Para além disso, a segregação racial era também praticada em outras democracias liberais da época. As leis Jim Crow impuseram a segregação racial nos estados do sul dos EUA. A noção de hierarquia racial sustentou os impérios britânico e outros impérios europeus.

Conhecer as perspectivas contemporâneas das não-vítimas pode nos ajudar a compreender a violência perpetrada durante o Holocausto como um efeito dos sistemas sociais. O estudioso americano de literatura e estudos do Holocausto Michael Rothberg defendeu uma abordagem da violência histórica que leve em conta as perspectivas dos “sujeitos implicados”.

Rothberg sugere que as categorias de heróis e vilões, vítimas e perpetradores, são inadequadas para explicar os danos causados. Mover-se para além delas também pode jogar luzes sobre a dinâmica social destrutiva de nosso próprio período.

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