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Brasil e as mudanças climáticas: onde (e como) estará nossa contribuição?

Texto: Laura Araújo
Foto da home: Área de floresta derrubada e queimada e vista na zona rural do município de Apuí, Amazonas em 2020– Bruno Kelly / Amazônia Real – CC BY 2.0

Especialistas fazem balanço da COP26 e defendem enfrentamento coletivo e individual das mudanças climáticas; acreditar na ciência é o único meio para reversão do quadro

O planeta Terra está se aquecendo, e o Brasil divide com outras nações o olho deste furacão. Berço de uma Amazônia cada vez mais ameaçada e lar para cerca de 218 milhões de cabeças de gado, o país está entre os territórios chave para a compreensão das mudanças climáticas pelas quais o planeta passa – e também no caminho para a formulação de estratégias que possam reverter tal quadro. O desmatamento ilegal da floresta amazônica, por exemplo, aumentou 21,97% em 2021, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o que coloca o mundo inteiro em estado de atenção para o Brasil. A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021, ou COP26, realizada em Glasgow (Escócia) entre outubro e novembro, recolocou essa e outras questões na pauta da política internacional e da imprensa.

O Ciência na Rua tratou sobre o tema no último dia 18, com o webinar “COP26: o futuro do planeta e os desafios do Brasil”, sexto encontro da série “Novos estudos para decifrar o Brasil contemporâneo”. O debate contou com participações do jurista e cientista político Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002), e do cientista Paulo Artaxo, doutor em física atmosférica pela Universidade de São Paulo e professor titular do Instituto de Física da mesma Universidade. Artaxo também é autor-líder do capítulo 6 do Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), documento divulgado em agosto para as discussões da COP26.

O encontro foi conduzido pelos jornalistas Mariluce Moura, diretora do Instituto Ciência na Rua, e Carlos Eduardo Lins da Silva, docente do Programa Avançado em Comunicação e Jornalismo do Insper com passagens, entre outros veículos, pelo programa Roda Viva, na TV Cultura, e pela Folha de S. Paulo, onde foi ombudsman e correspondente em Washington.

Celso Lafer iniciou sua apresentação destacando o papel da ciência e do conhecimento como fonte fundamental do Direito do meio ambiente e da formulação de ações de diplomacia e políticas públicas. “É uma percepção clara desde a conferência de Estocolmo, em 1972. O tema entrou na pauta internacional graças à porosidade de fronteiras que a ciência revela. O documento de Glasgow fala sobre a ciência e a importância de se utilizar a best available science [melhor ciência disponível] nos processos decisórios”, observou Lafer.

Segundo ele, a avaliação realizada pelo IPCC e seu relatório tiveram papel fundamental no debate travado em Glasgow, especialmente o capítulo que recomenda o limite do aumento da temperatura mundial em 1,5 graus Celsius como forma de responder aos danos que o planeta já sofreu, como degradações no alto-mar, na atmosfera e no continente da Antártida. Oceanos, céu e os extremos do planeta são responsabilidades compartilhadas por todo o mundo, daí sua importância. O professor explica que o desafio internacional exige e exigirá a delicada articulação de diversos agentes públicos. “Os stakeholders são múltiplos. Além dos governos há atores não governamentais, sociedade civil, povos indígenas, comunidades locais e governos subnacionais, que devem operar uma ação diplomática”, observou. Para vencer os desafios globais, a diplomacia deve dar as mãos à ciência, auxiliando o rompimento de alguns setores das sociedades com o negacionismo – o senso, sem respaldo científico, de que o aquecimento global é uma farsa.

A cooperação internacional no manejo de responsabilidades compartilhadas parte do princípio de que nações diferentes têm atribuições diversas nessa dinâmica – o chamado princípio da calibração. As economias mais desenvolvidas têm a tarefa de auxiliar as mais pobres na caminhada rumo a sistemas de produção e de vida mais sustentáveis, e essa calibração ainda carece de ajustes. “Este princípio procura manter a coesão dos vários modos de funcionamento das normas do meio ambiente e seus princípios. O encontro em Glasgow mencionou a insatisfação com o não cumprimento de apoio financeiro e transferência de tecnologia por parte dos países desenvolvidos”, destacou Lafer.

Outro item que merece atenção do ponto de vista da política internacional é a transição para uma matriz energética com baixa emissão de poluentes, em substituição a sistemas dependentes de carvão e combustíveis fósseis. “Os desafios são grandes e é necessário apoio para transições justas, pois os custos são significativos. A transição traz mudanças geopolíticas, como servem de exemplos o Oriente Médio e o petróleo, a preocupação com a energia nuclear ou o gasoduto russo”, disse o especialista. Mas os atritos internacionais não são necessariamente ruins. Segundo Lafer, há espaço para a cooperação mesmo na disputa pela hegemonia global, hoje entre Estados Unidos e China. “A mudança climática talvez seja um campo de cooperação entre ambos. O meio ambiente e as mudanças suscitam e mobilizam a sociedade civil, atores e organizações” pontuou. A diplomacia subnacional também ganhou vulto na COP26, dando protagonismo a comunidades locais e indígenas.

O setor privado foi outro a atuar de maneira mais incisiva durante a conferência deste ano. “O ESG (Environmental, social and corporate governance, ou governança ambiental, social e corporativa) é um dado da dinâmica de funcionamento das empresas. Elas precisam disso para se legitimar como atores econômicos, por conta das certificações e das preferências dos consumidores”, destacou. Nomes das indústrias brasileiras de proteína animal e de papel e celulose marcaram presença no encontro, ajudando a diminuir o atual isolamento do Brasil na questão climática ao lado dos quadros do Itamaraty.

O cientista Paulo Artaxo lembrou que as mudanças climáticas são a parte visível – e mais dramática – de algo profundo, que representa os verdadeiros desafios e mudanças coletivos a serem transpostos. “Estamos falando do atual modelo de desenvolvimento socioeconômico. A participação das organizações sociais e empresas na COP26 tomou uma dimensão muito maior, e evidencia que a questão à qual devemos responder é qual modelo de desenvolvimento queremos implantar no país e no planeta”, afirmou. É sob esta chave que devem ser encaradas as necessidades de mudança na matriz energética, na utilização de recursos naturais e hábitos alimentares e de consumo.

Artaxo lembrou que, segundo o relatório do IPCC formulado para a COP26, as mudanças climáticas são generalizadas e sem precedentes nos últimos 6.500 anos. “O planeta está se aquecendo rapidamente nos últimos 100 ou 150 anos. Gases alteram a composição da atmosfera, que alteram o balanço de energia, que causa alteração nos fenômenos climáticos. Há relação causal direta entre a ação humana e o aquecimento global”, afirmou. Algumas mudanças são irreversíveis, e outras podem ser retardadas ou evitadas. Para tanto, é preciso limitar o aumento da temperatura global e reduzir a emissão de gases de efeito estufa. “É um chamamento, e não um alerta”, sublinhou o professor da USP, que em seguida apresentou uma série de números de emissões de gases de efeito estufa, queimas florestais e uso de combustíveis.

Com o cenário proposto pelo Acordo de Paris, que Artaxo considera mais otimista, a temperatura global deveria aumentar “apenas” entre 1,4 a 1,9 graus Celsius. Sem ele, o aumento poderá ser de até de 4 graus, com intensidade variando de acordo com a região. “Isso é muita coisa, se tivermos em vista que até agora aquecemos 1,1 grau, o que já nos trouxe grandes impactos socioeconômicos. O Brasil pode se tornar muito mais seco, com reduções de chuvas entre 20% e 30%. No mundo, haverá um aumento de eventos climáticos extremos. Um evento que ocorria uma vez a 50 anos se torna 39 vezes mais frequente, o que é péssimo para os ecossistemas e agricultura”, alertou.

O balanço de Glasgow mostra que ainda existe uma distância entre a voz da ciência e a formulação de políticas públicas ao redor do mundo. “Estamos longe do desmatamento zero mundial até 2030, e para isso ocorrer o princípio tem que ser traduzido em leis”, disse Artaxo. Mas há espaço para soluções. Produtores brasileiros de gado afirmaram, na COP26, que existem meios de reduzir em 30% as emissões de metano até 2030, onde novas tecnologias melhoram a qualidade do pasto sem perdas de produtividade. Nesse ritmo, é possível imaginar países desenvolvidos neutros em emissão de carbono em 2030. Mas há desafios, como a Índia, que projeta emissões zero apenas em 2070. “Estamos longe do que a ciência coloca. As recomendações não são vinculantes, e é preciso um novo modelo de governança global que impactará economia, emprego e desigualdades sociais”, acredita o professor.

O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva lembrou o papel da imprensa para a sensibilização coletiva e global para a urgência na questão climática. “A imprensa é importante para que a sociedade participe com mais vigor dessas decisões. Há um grande esforço para transformar a questão em uma pauta permanente”, disse, lembrando o trabalho do grupo Covering Climate Now, que reúne órgãos de imprensa em todo o mundo. Para ele, os jornalistas brasileiros estão cada vez mais atentos e informados sobre o tema, mas ainda falta comunicar com precisão quão delicado é o tema. “Faltou um grau de urgência, para fazer com que as pessoas entendam que, embora se mostrem projeções longevas, as consequências são imediatas”, observou.

Respondendo a questões do público, Artaxo e Lafer abordaram tópicos como florestas tropicais, diplomacia subnacional, responsabilidades individuais e hábitos de consumo e capitalismo. “O desmatamento das florestas tropicais é responsável por 17% das emissões e não há maneira mais fácil, barata e rápida de diminuir as emissões do que parar o desmatamento, com benefícios adicionais”, observou Artaxo, lembrando que as chuvas no Brasil Central derivam da integridade da dinâmica amazônica. “Além disso, 95% do desmatamento é causado por atividades ilegais, como invasão de terras indígenas e públicas, pela especulação de pessoas que atuam na ilegalidade. Se queremos ser uma nação desenvolvida, a Constituição tem que agir na Amazônia. O desmatamento zero é possível. Não existe um dilema entre desmatamento e desenvolvimento, é o contrário”, reforçou.

Lafer comentou a ideia de que as mudanças climáticas são resultado do capitalismo e, nesse contexto, quais caminhos são factíveis para combater o mal. “Estamos discutindo uma mudança de paradigma, e por isso é tão complexo e não se compadece como uma explicação simples. Mudança de paradigma nunca é simples”, observou. A visão de Artaxo segue o mesmo caminho. “Na minha opinião, podemos descarbonizar o sistema energético, de transporte e parar o desmatamento de florestas, mas a ciência não tem resposta pra compensar os 30% que emitimos na produção de alimentos. Não temos uma solução do bolso do colete. Acho que estamos entrando em uma nova era da história, que hoje está em seu limite. É natural que mudará, mas para qual sistema? Essa resposta deve ser dada pela sociedade como um todo”, acredita.

A íntegra do encontro pode ser assistida no canal do Ciência na Rua no YouTube.

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