Carlos Ribas e Fernanda Caldas, Edgardigital
Revista científica da USP dedicou uma edição inteira ao animal
O jumento, um dos animais mais simbólicos da cultura popular brasileira, está sob ameaça. Com o objetivo de lutar contra o iminente extermínio da espécie, a revista científica Brazilian Journal of Veterinary Research and Animal Science (BJVRAS), da Universidade de São Paulo (USP) uniu ciência e ativismo em uma edição especial totalmente voltada aos jumentos, contendo 15 artigos de pesquisadores nacionais e internacionais que denunciam os riscos que esses animais correm. Entre os papers que alertam para o aumento de 8.000% do abate de jumentos entre 2015 e 2019 – totalizando 91.645 animais mortos – estão 5 artigos com a participação de pesquisadores da Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia (EMVZ) da UFBA que abordam bem-estar e proteção animal, cooperação técnica e saúde.
Assinam os artigos cientistas e profissionais de organizações de defesa dos animais. Essa união de instituições pela causa dos jumentos, com ONGs nacionais e internacionais em conjunto com pesquisadores de universidades federais do Sudeste e Nordeste, é vista por Chiara Oliveira, professora da EMVZ e uma das coautoras dos artigos, como “um acontecimento único”. “O volume 58 da BJVRAS foi um marco nas publicações sobre jumentos no Brasil. Nunca tantos artigos foram publicados juntos sobre esse tema. Ainda alerta sobre a condição de risco de extinção, bem-estar e riscos sanitários que a cadeia de produção de pele de jumentos representa no país”, disse Chiara, que assina cinco artigos na publicação junto com outros colegas.
Segundo dados da agência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, no Brasil, a população total de jumentos ultrapassava 800 mil em 2018. Somente a região Nordeste abrigaria 86,7% desses animais, de acordo com dados de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As mudanças nas práticas agrícolas, com mecanização e troca do transporte de animais pelo uso de motocicletas, e o assédio à carne e à pele desses animais geraram consequências desastrosas aos jumentos, como abandono, condições precárias de vida e abate desenfreado.
A comercialização legal e ilegal da pele de jumentos no mercado externo é a principal ameaça aos animais. Recentemente, a exportação de peles de jumento para a China agravou a matança de jumentos no Nordeste. Somente em abril de 2021, na Bahia, 5.396 jumentos foram abatidos, segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Essa demanda crescente pela pele de jumentos no mercado internacional e a ausência de políticas públicas de proteção e bem-estar potencializaram o risco à existência da espécie. A professora Chiara, que também é zootecnista e membro da Comissão de Bem-Estar Animal do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Bahia (CRMV-BA), afirma que o risco de extinção é real. Um cálculo anterior, feito em 2018, considerou que o ritmo de abate até então vigente resultaria na produção de 200 mil peles de jumento por ano – ritmo esse que, se mantido, poderia levar à extinção dos jumentos já em 2022. Com a “desaceleração do abate e o período de suspensão, entre dezembro de 2018 e setembro de 2019, e a redução no número de frigoríficos, acredito que temos ainda uns cinco anos até a redução drástica da espécie (risco de extinção)”, lamenta Chiara, que coordena o projeto Rota do Jumento.
Para a advogada e ativista Gislane Junqueira Brandão, para salvar os animais, é preciso livrar os jumentos do risco de extinção e colocá-los em “santuários”. “A prática do abate é criminosa, cruel e vergonhosa e, se ainda não é do conhecimento da população, com certeza é do conhecimento das autoridades, que se mantêm omissas” afirmou Gislane em live com os autores da publicação da USP.
A professora Chiara concorda. “A curto prazo, temos que proibir o abate. A médio e longo prazo, desenvolver políticas públicas de educação ambiental, para terminar com o abandono; [adotar] cuidados sanitários, para reduzir e eliminar a disseminação de doenças, e o mais importante: estimular os produtores rurais familiares a manter seus animais nas propriedades, mostrar a eles o valor econômico e a responsabilidade deles como tutores dos jumentos. Temos que reinserir o jumento nas propriedades rurais do século 21”.
Do resgate à melhoria das condições de vida: estudos sobre jumentos abandonados em Canudos
Na nota preliminar “A realidade da exploração de jumentos para exportação de pele no Brasil: surtos de doenças e bem-estar animal comprometidos em asininos resgatados”, os pesquisadores descrevem ações de resgate e medidas sanitárias e de saúde voltadas ao bem-estar dos animais.
O artigo denuncia as precárias condições vividas por jumentos que foram abandonados em uma propriedade rural em Canudos, no sertão baiano, durante a suspensão temporária de abate, entre 2018 e 2019. A população local informou sobre os maus-tratos ao Ministério Público Estadual e, após o fechamento da fazenda, a ONG Fórum Nacional de Proteção e Defesa dos Animais (FNPDA) assumiu a guarda temporária dos animais. Em seguida, uma força tarefa formada por pesquisadores da UFBA, USP, Universidade Federal de Alagoas, Universidade Federal Rural do Semi-Árido e organizações de proteção animal realizaram ações para sobrevivência e melhoria da saúde daqueles animais.
A saga heróica, que resultou na transferência dos jumentos e na melhoria das condições de saúde dos animais, enfrentou uma série de desafios relacionados a espaço, condições sanitária e de saúde, que comprometiam inclusive a saúde dos profissionais envolvidos. Entre os desafios, foi constatada em alguns animais a existência de mormo, uma grave zoonose que pode ser transmitida a outros animais e ao ser humano, e que, em 95% dos casos, é fatal. Os sintomas são febre, dores musculares, dor no peito, rigidez muscular, enxaqueca, sensibilidade à luz e diarreia.
Para Chiara Oliveira, o episódio comprova que o mormo não está controlado no Nordeste. “Os únicos dados que existem de jumentos mormo-positivos que iriam para o abate são os que temos do grupo resgatado em Canudos: 1,6% dos animais eram positivos para mormo e 2,2% para anemia infecciosa equina”, afirma.
A zoonose pode então ser uma doença silenciosa presente na sociedade. “De acordo com o Mapa, 20% dos jumentos abatidos são examinados para mormo, mas nenhum exame deu positivo até hoje. Nós duvidamos. Se no grupo de Canudos encontramos 10 animais com mormo, fica muito difícil acreditar que nas centenas de jumentos que já foram abatidos para o envio do couro para China houve 0% de diagnóstico positivo”, avalia Chiara.
Em outro artigo, intitulado “Endoparasitos de jumentos (Equus asinus) utilizados em uma exploração comercial de peles no Nordeste brasileiro” foram identificados os principais endoparasitas (parasitas que vivem no corpo do hospedeiro) em jumentos no município de Canudos. Os resultados parasitológicos foram associados com sexo, idade e peso corporal. No total, 82,3% dos animais possuíam endoparasitas. Conforme explica o documento, a ocorrência de infecções parasitárias varia de acordo com a idade, sexo e exposição ambiental, sendo observada a alta ocorrência de animais infectados nos animais jovens e com menor peso corporal.
Já no artigo “Estudo de caso: o uso do protocolo AWIN de avaliação de bem-estar para monitorar um grupo de jumentos abandonados”, buscou-se formular um diagnóstico das condições de vida, avaliando o nível de bem-estar animal. O protocolo considerou a boa alimentação, alojamento, saúde e comportamento dos animais. Os resultados do estudo evidenciaram a necessidade de criação de bancos de dados para indicadores de bem-estar, e que os protocolos de avaliação devem ser adaptados a situações de crise.
Artigos expõem ações voltadas à sobrevivência, bem-estar e valorização dos jumentos
O paper “A união entre conhecimento técnico e ativismo como ferramenta para salvar os jumentos” exibe a experiência de articulação entre profissionais da área jurídica, cientistas e militantes do ativismo da causa animal, que conseguiu realizar uma série de ações em prol da vida animal e contra maus-tratos, a exemplo de novos lares ou ainda instrumentos técnicos que possibilitaram a suspensão por 10 meses de abates de jumentos, entre 2018 e 2019, encerrada após decisão judicial.
Entre os casos apresentados no estudo, um ganhou repercussão nacional em 2018, quando, em Itapetinga, na Bahia, cerca de 300 animais morreram de fome e 750 foram confinados ilegalmente, sem comida, água ou sombra. Os maus tratos foram denunciados pela ONG SOS Animais de Itapetinga, o que levou o Happy Animals e o FNPDA a entrar com uma representação que gerou uma investigação iniciada pelo Ministério Público da Bahia.
Para os autores do artigo, “a união entre ativismo e academia nas áreas de saúde, criação, nutrição, bem-estar animal e conhecimento jurídico é uma ferramenta que não deve ser esquecida”, sendo eficaz para salvar animais, promover bem-estar e construir conhecimento técnico-científico.
Nessa linha, no artigo “Qual o valor do jumento?”, as professoras da EMVZ/UFBA Thereza Bittencourt, Edna da Silva e Chiara Oliveira apresentaram dados para estimar o custo unitário de produção dos jumentos, reconhecendo sua função essencial na agricultura familiar. Essa abordagem, avaliam as autoras, pode ser um ponto de partida para diminuir o abandono e as consequências da exploração da pele dos jumentos.
O modelo de estudo considerou os custos de manutenção e produção animal, admitindo que o rebanho já existisse na propriedade com utilização das instalações disponíveis. O ciclo de produção do jumento foi estimado em 36 meses, com rebanho inicial de 100 matrizes e 5 reprodutores. Para a estimativa de produção de forragem dos pastos, foram consideradas pastagens nativas da região semiárida. Foi estimado o custo de produção do jumento em US$ 258,00 por ano.
Saiba mais:
A live Fórum em Diálogo, com autores da revista, foi exibida no último mês, no canal do YouTube Fórum Animal. O encontro teve a participação de Vânia Plaza Nunes, do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal; Adrolado Zanella, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP; Gislane Brandão, diretora técnica do Fórum de Proteção e Defesa Animal, Yuri Fernandes Lima, advogado e professor universitário; e Chiara Oliveira, da EMVZ/UFBA.