Sociedades de química pelo mundo se manifestaram contra o artigo, e o periódico Angewandte Chemie pediu desculpas pela publicação
A qualificação da diversidade da força de trabalho como fator negativo para o bom desenvolvimento da química de produtos naturais, em artigo de revisão do químico Tomas Hudlicky (em PDF, aqui) – nascido na atual República Tcheca e trabalhando no Canadá –, publicado em 4 de junho na Angewandte Chemie, levou a respeitada revista alemã a pedir, menos de uma semana depois, desculpas públicas por ter abrigado em suas páginas um paper tão ofensivo “a pessoas de diferentes gêneros, raças e nacionalidades”.
Mais: a revista científica, entre outras medidas, substituiu dois editores seniores e mudou o processo de revisão por pares dos artigos de opinião que recebe usualmente, ao mesmo tempo em que a britânica Royal Society of Chemistry, junto com mais uma dúzia de outras associações congêneres de vários países, incluindo a Sociedade Brasileira de Química (SBQ), se manifestavam fortemente contra a proposição do autor do artigo.
As palavras de Hudlicky não constituíram uma simples “escorregadinha” para a Angewandte Chemie, longe disso. Em sua comunicação da terça-feira, 9 de junho, depois de classificar o artigo como uma peça de opinião em linguagem ofensiva e inflamatória, escreveu aos leitores: “Pedimos desculpas por esse artigo ofensivo e equivocado ter sido publicado em nossa revista e sentimos profundamente por ter falhado com a comunidade que em nós deposita sua confiança. As opiniões expressas no ensaio não refletem de nenhuma forma os valores da revista. Que o artigo tenha sido publicado vem demonstrar, de todo modo, um colapso na tomada de decisões editoriais”.
Um dia antes, em seu site, a Real Sociedade, com apoio das congêneres, batera de forma contundente, não apenas no químico tcheco, mas, de modo mais amplo, nas práticas recorrentes de todo tipo de discriminação na comunidade de químicos. “Sexismo, racismo, discriminação contra pessoas LGBTQ+ e muitas outras formas de desigualdade, infelizmente, prevalecem todas nas ciências químicas, tanto em nível individual quanto institucional. Alguns em nossa comunidade ainda mantêm atitudes ultrapassadas, ofensivas e discriminatórias. Não vamos defender isso”.
O manifesto desdobra-se em ampla defesa da diversidade e da igualdade, “forças fantásticas nos locais de trabalho, na cultura e na sociedade em geral”. E isso não apenas é demonstrado “por evidências esmagadoras em décadas de pesquisa”, como, diz o documento, constitui-se na única posição moralmente aceitável. “Como uma sociedade de química e uma voz para a química, temos a obrigação de fazer todo o possível para erradicar a discriminação e a desigualdade nas ciências químicas”, diz o manifesto, antes das subscrições.
Além de ter subscrito esse manifesto, a Sociedade Brasileira de Química produziu seu próprio documento em reação ao artigo. “A diversidade é a nossa força e riqueza. A comunidade química mundial foi surpreendida recentemente por declarações inconcebíveis em um artigo científico*, relacionando a diversidade da força de trabalho como fator negativo, não meritório, para o desenvolvimento do conhecimento científico”, declarou.
Acrescentou em outro trecho que “atitudes e ações racistas, homofóbicas, sexistas e discriminatórias contra a comunidade LGBTQI+ têm surgido com uma frequência preocupante em vários meios da sociedade nacional e mundial e, infelizmente, a comunidade científica em geral e a química, em particular, não estão livres dessa questão”.
Preconceito e provocação
Mas, afinal, o que disse Tomas Hudlicky em seu artigo para provocar tamanha ebulição na comunidade de químicas e químicos? Bastaram apenas algumas linhas de um tópico e outro tanto de uma nota, num artigo de revisão com um total de 14 páginas, para condensar toda a carga de preconceito do pesquisador tcheco que, certamente, reflete a visão de parte da categoria.
O artigo alinha fatores positivos e negativos no desenvolvimento de um segmento importante da química, a de produtos naturais, enfatizados numa ilustração que não deixa dúvidas quanto a sua avaliação (figura 1), e logo como terceiro fator de impacto, na página 5, trata da diversidade na força de trabalho nos seguintes termos:
“Nas duas últimas décadas, muitos grupos e/ou indivíduos têm sido designados como de “status preferencial”. Isso a despeito do fato do percentual de mulheres e minorias na academia e na indústria farmacêutica ter aumentado bastante. Depreende-se daí que, num movimento de equilíbrio social, o tratamento preferencial a um grupo leva a desvantagens para outro. Novas ideologias têm aparecido e influenciado práticas de contratação, promoção, financiamento e reconhecimento de certos grupos. Cada candidato deve ter igual oportunidade para assegurar uma posição, independentemente de identificação pessoal / categorização. A expansão e a ênfase nas práticas de contratação que sugerem ou mesmo determinam igualdade em termos de número absoluto de pessoas em subgrupos específicos são contraproducentes se isso resulta em discriminação contra os candidatos de maior mérito. Tal prática afeta o formato das entrevistas e tem levado ao surgimento de “workshops de treinamento”. obrigatórios sobre equidade de gênero, inclusão, diversidade e discriminação [Nota 2].”
A nota para a qual o comentário remete, diz o seguinte: “Um exemplo de foco em “minorias sub-representadas” pode ser visto na recém estabelecida “Power Hour” nas Conferências de Pesquisa Gordon. Embora esse esforço seja louvável no sentido de aumentar a participação das mulheres na ciência, ele diminui as contribuições dos homens (ou de qualquer outro grupo). As universidades têm criado vários centros de ‘Equidade, Diversidade e Inclusão, completados por seminários e treinamentos obrigatórios. Essas questões vêm influenciando as práticas de contratação ao ponto de a inclusão do candidato num dos grupos sociais preferidos poder se sobrepor a suas qualificações”.
A reação da revista e das sociedades científicas aos argumentos de Tomas Hudlicky não deixam dúvidas quanto ao lado em que as instituições querem se posicionar nesse debate que desnuda uma intolerância persistente contra os grupos sociais não hegemônicos na atividade científica.
Reações dos pares
Respeitados pesquisadores brasileiros da área de química também se manifestaram sobre a questão. Jailson Bittencourt de Andrade, por exemplo, depois de observar que a Angewandte Chemie é uma das mais importantes revistas na área de química, diz que o artigo “pretendia homenagear o professor Seebach no trigésimo aniversário de sua revisão, “Síntese orgânica – onde está agora?”, publicado no mesmo periódico em novembro de 1990, que focava os importantes desenvolvimentos da síntese orgânica nos últimos 25 anos e a projeção destes avanços para o futuro”. No entanto, “infelizmente, o autor falhou em todos os sentidos. Primeiro não prestou a homenagem pretendida, pois, com relação ao tema, ficou mais no saudosismo ao passado do que mirando o futuro! Segundo, destilou uma gama de preconceitos pessoais que motivou, inicialmente, uma reação enérgica da Editoria do Angwandte Chemie, e culminou com uma manifestação de sete instituições representativas da área de química, incluindo a nossa SBQ”. Professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), agora aposentado, pró-reitor de pós-graduação e pesquisa do Centro Universitário Senai-Cimatec, ex-presidente da SBQ e presidente da Academia de Ciências da Bahia diz que as manifestações contra o artigo representam todas(os) as (os) químicas(os) que consideram o respeito à liberdade, à igualdade e à diversidade como fundamentais para a Raça Humana”.
Vanderlan Bolzani, professora titular da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), também ex-presidente da SBQ e presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, observa por sua vez, sobre o artigo do colega, bastante conhecido, é “chocante e triste o preconceito embutido num parágrafo”, quando, “em tempos de pandemia, a discussão da harmonia da natureza com a espécie humana está sendo tão necessariamente recolocada”. A diversidade, diz, é a essência da vida. “O preconceito, passado de geração a geração, é uma marca triste de nossa história. Não podemos alimentar este mal para as futuras gerações”.