Nenhum cientista político ou qualquer outro pesquisador do campo das humanidades sabe onde vai desembocar a crise política que nesse momento cinde e convulsiona a sociedade brasileira, nada cordial, registre-se, antes violenta e profundamente desigual. A ciência não oferece ferramentas para uma previsão rigorosa desse futuro.
Pode-se, entretanto, imaginar cenários à frente, dos mais pessimistas aos medianamente otimistas. E se pode, principalmente, embasado em dados e reflexões no interior de distintos âmbitos do conhecimento, buscar entender como nosso país chegou de novo a uma encruzilhada em que a tentação do autoritarismo e a determinação de apagar o espectro da esquerda do cenário político nacional são crescentemente visíveis, dia após dia.
Ressalte-se que isso se apresenta em toda a sua agudeza 52 anos após um golpe civil-militar que produziu por 21 anos uma cruel ditadura, responsável pelo esmagamento de um projeto de nação e de brasileiros de pelo menos três gerações, muitos deles cabeças brilhantes da própria ciência e do pensamento crítico.
Ciência na rua decidiu dar sua contribuição para um necessário debate em meio à luta prática que se desenrola trazendo à cena parte do que têm a dizer sobre este momento, com base em sua produção, reconhecidos estudiosos da sociedade brasileira. E começa pela respeitada filósofa Marilena Chauí que, na quarta feira à noite, encerrou o debate no Ato pela Legalidade Democrática realizado no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (TUCA-PUC).
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O argumento que Marilena Chauí desenvolveu ali foi o de que uma massa nas ruas, como a que temos hoje, “desligada de qualquer organização partidária, de qualquer movimento social e de qualquer compromisso de organização e presença no tecido social, à procura de um líder que está por ela caracterizado simbolizando um poder transcendente, um poder arbitrário, tirânico, consolida efetivamente uma perspectiva conservadora e reacionária”.
Mas isso aparece, disse ela, não só nessa multidão que sai às ruas para xingar e gritar, sem nenhum programa ou proposta, mas articuladamente com dois outros elementos que compõem esse cenário no caso brasileiro: o Congresso Nacional, com sua pauta dos três Bs (bala, boi e bíblia) e a operação do Judiciário.
Professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP), internacionalmente reconhecida como grande explicadora do filósofo Baruch Spinoza, Marilena já vinha abordando esse novo cenário da tirania versus democracia que emergiu claramente na sociedade brasileira desde 2013, dentro de uma visão afinada com a do pensador francês Claude Lefort, seu amigo.
Em entrevista publicada na Cult de fevereiro, concedida a Juvenal Savian Filho, professor de história da filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Laís Modelli, jornalista da revista, ela desenvolveu alguns aspectos dessa questão de forma muito clara.
Antes mesmo que a crise política chegasse aos níveis assustadores de hoje, ela disse que a situação “é gravíssima, não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita e protofascista que está tomando conta da pauta política”.
Vivemos, considerou, “uma regressão sociopolítica fora do comum. É uma pauta regressiva, antidemocrática, de violação de todos os direitos que foram conquistados ao longo dos últimos quinze anos. Todo o fundo reacionário protofascista que existe no Brasil e que é alimentado pela classe média urbana brasileira veio à tona e pegou as esquerdas completamente desprevenidas”.
E isso porque as esquerdas “tinham pautas como o antineoliberalismo, os direitos, a questão da Palestina e do Oriente Médio, do surgimento do Estado Islâmico, enfim, pautas voltadas aos problemas da democracia e do socialismo, e foi pega completamente despreparada por uma onda de extrema direita que repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em vigência no início dos anos 1960”
Em fevereiro ela já via “uma ameaça de golpe para reverter o processo de consolidação dos direitos sociais obtidos nos últimos anos e sustentada pela pauta ‘boi, bala e Bíblia’”.
“Aliás, a atuação de grupos religiosos é muito preocupante e vai além de uma questão propriamente política, porque, apesar de se manifestar na representação política, ela é uma questão socioeconômica: é a maneira como as igrejas evangélicas interiorizaram e reformularam a concepção neoliberal”, argumentava.
Marilena examina nessa entrevista em mais detalhes (https://revistacult.uol.com.br/home/2016/02/sociedade-brasileira-violencia-e-autoritarismo-por-todos-os-lados/) o aprofundamento do neoloiberalismo religioso. “Uma das características do neoliberalismo é a maneira como ele concebe o indivíduo, que não é entendido nem como parte de uma classe social, nem como ser em formação que vai se relacionar com o restante da sociedade. O indivíduo não é pensado nem como átomo nem como classe, mas como um investimento”.
“Como se sabe, a maior parte das igrejas evangélicas possui franquia. Elas se espalham no campo da produção e do comércio e empregam todas as pessoas, fazendo com que elas provem que Deus as escolheu e que são um investimento rendoso. Pouco a pouco, as pessoas se apropriam da franquia; depois abrem outra e assim por diante”. Pomdera.
Há, portanto, em seu olhar, um fenômeno de fortalecimento da ideologia neoliberal e das concepções conservadoras da classe média “por meio da maneira como as igrejas evangélicas incorporam o neoliberalismo, com uma teologia para isso”.
Juntando-se “o conservadorismo com o reacionarismo da classe média urbana e a presença avassaladora das igrejas evangélicas, além de toda a discussão sobre a vida no campo (a reforma agrária)’ é possível entender por que politicamente se exprime, de modo efetivo, nos grupos do “boi, bala e Bíblia”, a pauta ultraconservadora que está aí.”
E s prognósticos que ela traça são sombrios. “Se as coisas continuarem no ritmo em que estão haverá uma efervescência social enorme, porque todos aqueles cujos direitos foram garantidos pelo Estado depois da era militar terão esses mesmos direitos cortados. E haverá ameaças: ameaça no campo, ameaça urbana, uma situação de vigilância e intimidação em todas as instituições”
Marilena já esperava uma resposta social enorme. “Se houver golpe, a prática será a pura intimidação e a violência. Aquilo que a gente viu com os Atos Institucionais. Um Ato Institucional poderia concretizar, por meio da polícia – já que o Exército não se misturará –, a intimidação e a violência”.
Não espanta que tenha concluído sua fala na PUC com o bordão “a luta continua”.