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A marca de 100 mil mortes
Covid-19

por | 7 ago 2020

Na iminência de atingir marca estarrecedora, covid-19 no Brasil caminha para se tornar a terceira maior causa de mortes no país em 2020

Cemitério Público Nossa Senhora Aparecida, Manaus, 27 de abril (Foto: Alex Pazuello / Semcom via FotosPublicas)

A primeira semana de agosto chega ao fim com o país já na marca – estarrecedora? macabra? trágica? dramática? difícil encontrar o adjetivo adequado – de 100 mil mortes provocadas pela covid-19 em cinco meses. O total de casos da doença oficialmente registrados está muito perto de alcançar os 3 milhões. Há, assim, um processo em curso capaz de colocar a enigmática síndrome causada pelo vírus Sars-CoV-2, sozinha, entre as três maiores causas naturais de morte no Brasil em 2020.

“Sem turbulências como essa pandemia”, observa o epidemiologista Maurício Barreto, professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs-Fiocruz), a taxa global de mortalidade no Brasil é mais ou menos estável na proporção de 6 óbitos por 1000 habitantes. Isso dá em torno de 1,2 milhão de óbitos no país por ano, com as doenças cardiovasculares apresentando-se como sua maior causa.

As tabelas não exatamente fáceis de serem encontradas ou lidas por leigos no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), mantido pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, ou nas planilhas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), situam os problemas do sistema cardiovascular como responsáveis por algo em torno de 388 mil mortes anuais. Os cânceres respondem por cerca de 250 mil e as doenças respiratórias, somando-se infecções pulmonares a outras moléstias respiratórias, por cerca de 156 mil mortes.

Parece temerário arriscar hoje quantas vidas brasileiras mais, de fato, a covid-19 vai ceifar até dezembro, embora nem tanto prever o perfil da maioria dos mortos. Pessoas negras, indígenas, pobres, moradores das periferias e das zonas rurais mais precarizadas, idosos mais do que jovens, constituirão a maior parte dos vitimados por uma doença que escancarou mais, se é possível, a profundidade das desigualdades sociais longamente cultivadas no país, sempre adubadas pelas políticas neoliberais de décadas. De todo modo, a essa altura, examinando o que ocorreu desde fevereiro e valendo-se de modelos matemáticos, o epidemiologista Eduardo Massad estima que, até o final do ano, as 100 mil mortes estarão duplicadas, serão 200 mil, o que colocaria a covid como a terceira causa das mortes no país em 2020.

Vale observar que Massad até tinha uma visão otimista quando concedeu em março uma entrevista ao Ciência na rua e, ainda que falando em 1 milhão de contaminados, estimava entre 100 mil e 500 mil os casos da doença e em 10 mil o número de mortes que a pandemia provocaria no Brasil. A visão mais pessimista, pouco depois, o faria elevar a previsão de mortes para 40 mil. Ele refletia desde o começo sobre as condições de aglomeração urbana do país, um óbvio complicador, mas se sabia então ainda muito pouco sobre a covid-19. Hoje é certamente com uma base maior e mais trágica que arrisca falar em 200 mil mortes.

Auna de enfermagem no bairro da Terra Firme, Belém, 8 de julho (Foto: Nailana Thiely / ASCOM UEPA via FotosPublicas)

O número de óbitos que nesses dias se atinge seria certamente bem menor se as restrições à circulação das pessoas tivessem sido, desde março, mais rígidas e rigorosas e, principalmente, se o país pudesse ter contado com uma política de saúde pública séria, liderada e coordenada pelo governo federal.

Nada mais distante, contudo, dos propósitos e práticas dos atuais ocupantes do Palácio do Planalto e arredores, entre eles o líder que comparou a covid a uma gripezinha, desdenhou das medidas de distanciamento social, investiu contra elas, sempre exibindo um falso remédio, e incentivou aglomerações e manifestações contra as instituições democráticas. Para completar, na quinta-feira, 6 de agosto, ante a iminência da ultrapassagem de uma centena de milhar de óbitos, recomendou cinicamente que o que havia a se fazer era tocar a vida em frente.

Por outro lado, esse número redondo e perturbador, as 100 mil mortes, poderia já ser, talvez, quase duas vezes maior, se boa parte dos gestores de estados, municípios e instituições públicas da maior seriedade, independentemente de seu vínculo federal, estadual ou municipal – com especial destaque para os centros e laboratórios de pesquisa das universidades, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantan –, não tivessem mergulhado de cabeça nas muitas tarefas que o momento deles exigia. Ou, claro, se os trabalhadores da saúde e tantas outras categorias nos principais fronts de controle da pandemia não tivessem posto mãos à obra com arrojo e determinação. E ainda, se consideráveis parcelas da população não tivessem compreendido que era da proteção à vida coletiva e individual que se tratava e, com isso, aderido ao distanciamento.

Aliás, um estudo da Universidade de Oxford, entre outros, liderado pelo pesquisador Darlan Cândido, que foi objeto de um dos episódios do podcast Ciência no elevador, mostrou como as políticas de controle da pandemia pelo distanciamento adotadas a partir da segunda quinzena de março conseguiram reduzir a taxa de contaminação até o começo de julho, no país, de 3 para 1,6. ou seja, se antes cada pessoa infectada pelo sars-cov-2 o transmitia para três outras, o distanciamento praticamente reduziu essa taxa à metade.

Um olhar para os indígenas

Em meio às reflexões e comentários produzidos pelo fato de o Brasil ter alcançado a marca de 100 mil pessoas mortas por covid e ter consolidado sua triste posição no segundo posto mundial de morticínio da população pela pandemia, uma fala da alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, na última quinta-feira, véspera do dia internacional dos povos indígenas, merece alguma atenção.

Aldeia Xavante no Mato Grosso, 29 de julho (Foto: Mayke Toscano / Secom-MT via FotosPublicas)

Diante da morte do cacique Aritana Yawalapiti no Brasil, que qualificou de trágica, segundo comentário do jornalista Jamil Chade no Uol, Bachelet disse que a covid-19 se transformou em uma “ameaça crítica para os povos indígenas, num momento em que muitos também estão lutando contra os danos ambientais causados pela ação humana e a depredação econômica”

Informou que mais de 70 mil indígenas foram infectados pela doença nas Américas, entre os quais “quase 23.000 integrantes de 190 povos indígenas na Bacia do Amazonas”. Mais de mil mortes foram registradas, “dentre elas as de vários anciãos com profundo conhecimento de tradições ancestrais, incluindo a trágica morte no Brasil esta semana do chefe Aritana, do povo Yawalapiti”.

“Nesta vasta região que abrange o Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, 420 ou mais povos indígenas vivem em terras que estão cada vez mais danificadas e poluídas pela mineração ilegal, exploração madeireira e agricultura de corte e queima”, disse.

Fala importante para lembrar como se imbricam no Brasil atual a tragédia da pandemia e a tragédia da política que controla o país.

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