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Insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil

Cidinha da Silva (organizadora)

Fundação Palmares/Ministério da Cultura

402 páginas

Africanidades e relações raciais:

 

Tostines vende mais porque é fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais? A frase publicitária é perfeita para outra pergunta: A literatura negra é pouco publicada porque aparece pouco, ou aparece pouco porque é pouca publicada?

O livro Africanidades e relações raciais, organizado pela escritora negra Cidinha da Silva, responde, relativiza e contextualiza essa pergunta. Quarenta e oito autores ­ vinte e três mulheres e vinte e cinco homens, sendo 90% negros ­ se unem numa força­tarefa para refletir acerca das memórias e atualizações das raízes africanas, escravidão, quilombos, libertação, marginalização, discriminação e preconceito.

Também, por suposto, Africanidades e relações raciais narra histórias de sucesso, resistência e superação na vasta e complexa cadeia da escrita e leitura no Brasil. A começar, pondo o dedo na ferida nacional: a imensa maioria dos pobres brasileiros são negros. A continuar, fazendo a pergunta fatal: Quantas personagens negras encontramos na literatura brasileira? Não vale contar escravos anônimos, criadas, meninos de recado, prostitutas, drogados, malandros, desvalidos de toda sorte.

A tese central que percorre os ensaios, depoimentos, relatos do livro é: a “invisibilidade” de textos de autores negros tem a ver com o racismo no Brasil. Este que escorrega sob a máscara de uma democracia racial. É evidente que muitos citarão Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Souza como negros integrantes da lista dos clássicos da nossa literatura. Mas é muito pouco.

Há relevante produção passada e contemporânea que se mantém no limbo, ou circunscrita a editoras e selos negros. Portanto, com recepção franzina. Também sabemos que a literatura funciona em modo diálogo. Um texto se comunica com outro e com outro, formando as tradições. Mas para que isso aconteça é preciso haver oferta de conteúdos.

Se quisermos saber como a ficção tratou a imigração italiana em São Paulo, ou a portuguesa no Rio de Janeiro, encontraremos grandes buquês. Mas se quisermos saber como obras de ficção trataram as subjetividades das pessoas negras na sua imigração forçada, ficaremos a ver navios. Não os negreiros, mas os fantasmas.

Somando-­se a essas dificuldades, falta divulgação da expressão atual de escritoras e escritores negros. Voltando à pergunta do Tostines, de que forma o grande público lerá títulos de autores negros, se eles não estão nas grandes livrarias e nem fazem parte orgânica do mercado editorial?

A boa supresa do livro, organizado por Cidinha da Silva, é que mais do que perguntas, ele oferece respostas. As melhores vêm em forma de exemplos. Entre eles, os vigorosos saraus que pipocam nas periferias de algumas cidades. O mais famoso deles é o Cooperifa, fundado em 2001, onde leituras e declamações acontecem no Bar do Zé Batidão, zona sul de São Paulo.

Mas há vários outros saraus espalhados por praças, bairros, centros de cultura. Neles, o encontro fundamental é entre autores e ouvintes­ leitores. Também funcionam como estímulo para jovens e velhos escribas mostrarem o que andam prosando, poetizando. Outra curiosidade, bem significativa, é a releitura da palavra sarau.

No passado, saraus eram reuniões literárias e musicais em salões burgueses. Basta lembrar dos famosos saraus na casa da Dona Olívia Guedes Penteado, espécie de socialite, frequentado pela malta modernista e branca de São Paulo. O que pensar, então, de saraus em botecos, morros, salões de igrejas, bairros periféricos, frequentados por uma maioria negra?

Mais um exemplo vigoroso de aproximação com o público leitor são as Bibliotecas Comunitárias. De forma geral, elas estão em espaços geográficos pouco assistidos por ofertas culturais. Geridas por pessoas da própria comunidade, elas ganham asas de liberdade e criatividades.

Um dos relatos dá conta de uma biblioteca que nasceu em um bar. O acervo foi formado pelos moradores, tendo uma simples regra de empréstimo: Se você não quiser devolver o livro que pegou, traga outro. Nada de burocracias com fichinhas, CPFs, RGs. A ideia vingou e, no lugar de devolver um exemplar, muita gente devolveu dois.

Entretanto bibliotecas comunitárias não têm necessariamente em seu acervo títulos de autores negros. Essa é uma questão a ser trabalhada por meio de sensibilizações e de conhecimentos. Uma das chaves é mostrar que está vencida a época em que se falava em nome dos negros. A nova temporada, sem data para expirar, é os negros falarem de si mesmos, com toda a liberdade que a literatura abarca.

As bibliotecas comunitárias também são fundamentais para formar leitores. Por décadas, grande número de crianças brancas herdava o gosto da leitura de avós e pais. Viam e manuseavam o objeto livro em suas casas. Enquanto a maioria das crianças negras e pobres chegavam aos primeiros anos escolares sem nenhuma, ou quase nenhuma, intimidade com os livros.

Forte aliada para a divulgação e consolidação da ficção negra é a Lei que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro­Brasileira no currículo escolar. O que, grosso modo, significa que crianças e jovens negros e brancos aprenderão sobre as raízes e as contribuições de metade da população brasileira. Muito além do carnaval, do samba, da culinária e do futebol.

A conta é simples, a temática negra necessita de conteúdos apropriados e eficazes, abrindo o apetite para a literatura dos africanos e afro-­brasileiros. Oportunidade também de revisitar aqueles que abriram caminhos bem antes dos saraus e bibliotecas comunitárias.

Existiram escritores do naipe do gaúcho Oliveira Silveira (1941-­2009), poeta e um dos idealizadores do 20 de Novembro ­ Dia Nacional da Consciência Negra. Houve o mestre Abdias Nascimento (1914-­2011), idealizador do Teatro Experimental do Negro. Houve Solano Trindade (1908­1974), agitador das artes no Embu ­ SP. Houve a surpreendente escritora Carolina Maria de Jesus (1914­1977), que tem páginas bônus no livro Africanidades e Relações Raciais.

Certamente existiram muitas outras penas negras que hoje aguardam por resgate e reconhecimento. Também há maduros na ativa. Dezenas de escritoras e escritores em plena escrevinhação, tentando estratégias e mostrando resiliência frente a cenários adversos para a sua produção literária e para a literatura brasileira em geral. Mas sem esquecer da internet — rede que possibilita a disseminação de espaços digitais — ­ onde a literatura escritas por negros tem tudo para vicejar.

Os aplicados autores do livro elencam fortes sugestões para turbinar e democratizar as políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Entre elas, há ações afirmativas para escritores e leitores negros, no esforço de minimizar as desigualdades raciais que os atingem. Propostas de cotas para prêmios­-estímulos promovidos pelos governos, compra qualitativa e sensível ao tema de livros para escolas e bibliotecas públicas e comunitárias. Fomentos para planos municipais de divulgação da leitura literária.

Sem falar no estímulo de bolsas acadêmicas para interessados, negros e brancos, em estudarem a contribuição literária dos negros africanos e brasileiros. Grande ênfase é dedicada à Lei que torna obrigatório nas escolas a temática História e Cultura Afro-­Brasileira, vista com um marco na educação para valorizar a população negra, enfraquecer o racismo e dilatar o conhecimento de todos. São vôos de grande altitude, mas absolutamente necessários.

O povo negro cansou da sucessão de “gerações perdidas”. A tinta negra quer correr livremente nas veias da nossa literatura, mestiça por nascimento e criação. Em nenhum momento é imposto o que escritoras e escritores negros podem ou devem escrever. Na verdade, eles podem e devem escrever o que quiserem. Desde contar de suas bisavós escravas até narrar a vida de uma família abastada na Escandinávia.

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