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A escalada do governo contra as ciências básicas, humanidades e artes

Evanildo da Silveira

Exigência de que projetos de pesquisa estejam ligados às “Áreas de Tecnologias Prioritárias” do MCTIC preocupa comunidade acadêmica

O ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

A exigência de que os projetos de pesquisa de iniciação científica financiados por meio de bolsas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vigentes entre agosto de 2020 e julho de 2021, devam estar obrigatoriamente vinculados a uma das chamadas “Áreas de Tecnologias Prioritárias” do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), causou desagrado e preocupação na comunidade acadêmica.

O edital com a exigência foi divulgado no dia 23 de abril pelo CNPq. A chamada está em consonância com as Portarias nº 1.122, de 19/03/2020, e nº 1.329, de 27/03/2020, do MCTIC, que estabelece um novo modelo de concessão de bolsa pelos órgãos de fomento, dando prioridades às áreas tecnológicas, em detrimento das humanidades, artes e ciências básicas, como matemática pura e física teórica, por exemplo. Essa orientação não vale apenas para as bolsas de iniciação científica, mas para todas as linhas de incentivo à pesquisa, que incluem mestrado, doutorado e financiamento de projetos.

De acordo com a Portaria 1.122, são “áreas de tecnologias prioritárias” as consideradas Estratégicas (Espacial, Nuclear, Cibernética e Segurança Pública e de Fronteira); Habilitadoras (Inteligência Artificial, Internet das Coisas, Materiais Avançados, Biotecnologia e Nanotecnologia); de Produção (Indústria, Agronegócio, Comunicações, Infraestrutura e Serviços); para o Desenvolvimento Sustentável (Cidades Inteligentes e Sustentáveis, Energias Renováveis, Bioeconomia, Tratamento e Reciclagem de Resíduos Sólidos, Tratamento de Poluição e Monitoramento, prevenção e recuperação de desastres naturais e ambientais, e Preservação Ambiental); e para Qualidade de Vida (Saúde, Saneamento Básico, Segurança Hídrica, e Tecnologias Assistivas).

Além disso, são também “considerados prioritários, diante de sua característica essencial e transversal, os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam, em algum grau, para o desenvolvimento das Áreas de Tecnologias Prioritárias do MCTIC e, portanto, são considerados compatíveis com o requisito de aderência solicitado”.

Reação na academia

Em reação à nova diretriz, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) encaminhou um ofício assinado por seu presidente, o reitor João Carlos Salles, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ao ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, dizendo que “considera necessária a revisão da pré-chamada do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), apresentada pelo CNPq” no dia 23 de abril.

Em primeiro lugar, diz o documento, “importa ressaltar, como fundamental, a necessidade de manutenção do apoio existente há várias décadas à pesquisa básica, incluindo as áreas de humanidades, ciências sociais e artes”. A exigência de que os projetos de pesquisa de iniciação científica devam estar obrigatoriamente vinculados a uma das chamadas “Áreas de Tecnologias Prioritárias” do Ministério preocupa a Andifes. “Essa exigência entra em conflito com procedimento histórico do CNPq, afetando o futuro da pesquisa em nosso país e a harmonia entre as áreas do saber na instituição universitária”, diz.

A pró-reitora de pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Nancy Lopes Garcia, cita a carta aberta das pró-reitorias de pesquisa do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) sobre o assunto, divulgada em 30 de abril, segundo a qual a exigência de bolsas do PIBIC estarem vinculadas às áreas de tecnologias prioritária do ministério equivale a transformar em “exclusividade” o que o MCTIC chama de “prioridade”, na medida em que “fecha seu programa de bolsas de IC a todos os projetos que não se encaixem na lista da portaria ministerial”.

Segundo o documento, ao fazer tal exigência, o CNPq exclui do programa de bolsas uma parcela significativa e importante da pesquisa nacional, ou seja, todas as pesquisas, básicas ou aplicadas, que não tenham por foco as áreas elencadas na portaria, o que inclui também a absoluta maioria das pesquisas em artes e humanidades. “Assim agindo, vai de encontro a um dos objetivos precípuos do PIBIC, mencionado na própria chamada: ‘contribuir para a formação de recursos humanos para a pesquisa, que se dedicarão a qualquer atividade profissional’.”

Para o presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), Adriano Correia, o corte de bolsas de iniciação científica da área de humanas “é uma catástrofe para a formação dos jovens universitários, para uma concepção mais ampla do conhecimento humano e para a reflexão sobre os problemas que nos concernem”. “É uma visão tacanha de conhecimento esta que acha que um médico não deve ter aulas de ética ou de sociologia”, critica. “Além disso, uma formação apenas tecnológica é inteiramente dependente da produção científica de ponta. Não há produção tecnológica independente sem pesquisa de base, em conexão com as diversas áreas do conhecimento.”

O mesmo consenso que há contra as restrições às bolsas para área de humanidades há sobre a importância dela para o avanço do conhecimento. “As ciências humanas e sociais são de grande importância de dois pontos de vista”, diz o sociólogo Simon Schwartzman, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. “Por um lado, como ‘humanidades’, elas são o caminho para o entendimento mais amplo e aprofundado do mundo em que vivemos e de nossa cultura – quem somos, de onde viemos, como somos semelhantes ou diferentes dos outros, o que são os direitos, as liberdades, as formas de governo, a democracia e as ditaduras.”

De acordo com ele, é por meio das pessoas formadas nas ciências sociais e humanidades que estes conhecimentos chegam às escolas, aos meios de comunicação, e se formam as pessoas capazes de se expressar e assumir posições de liderança e influenciar na sociedade. “E por outro lado, as ciências sociais são indispensáveis para podermos lidar com competência com temas como pobreza, desigualdade social, subdesenvolvimento, criminalidade, emprego, que são as grandes questões que afetam nossas sociedades.”

Para Schwartzman, as bolsas de iniciação científica, dadas a estudantes de graduação para que eles possam dedicar mais tempo a seus estudos, orientados por seus professores, são um instrumento importante e barato para identificar talentos e vocações. “Não creio que se vá fazer muita economia reduzindo seu número”, diz.

Correia lembra, como ponto de partida, que todas as ciências são humanas. Para ele, é difícil imaginar que algum pesquisador desenvolva processos, patentes e produtos sem possuir amor pelo conhecimento e sem ter em vista resolver problemas para os indivíduos e sociedades. “Estes problemas ou estas questões têm de ser identificadas e frequentemente o são pelas ciências sociais, pela filosofia, pela arte”, explica. “Não há como resolver problemas de saneamento básico, por exemplo, sem a colaboração dos diagnósticos das ciências sociais. Não há como combater a corrupção política sem a colaboração da ética, uma área da filosofia.”

Além disto, segundo ele, o ser humano não é apenas consumidor de produtos, mas também atuante, mortal, amante da arte e da cultura. “As humanidades são as guardiãs da cultura, sem a qual nenhuma sociedade pode se desenvolver”, diz. “O governo criou uma caricatura da área de ciências humanas e de filosofia, como se não houvesse uma pluralidade extraordinária da pesquisa e da produção acadêmica nela. Trata-se de uma guerra cultural contra um inimigo imaginário, mas que tem tido consequências bastante reais para o estudo e a pesquisa na área.”

Correia diz que é exatamente esta pluralidade que os atuais governantes temem. “Não é que não tolerem a suposta orientação ideológica unívoca da área (já há vários levantamentos indicando que isto é um factoide), mas qualquer opinião divergente”, critica. “A filosofia, as ciências humanas e a universidade não sobrevivem sem diversidade de opinião, reflexão e crítica, e é justamente isto que não compreendem, não toleram e por isto temem.”

Histórico

Não é apenas a restrição de bolsas de iniciação científica que preocupa a comunidade científica. Nancy, por exemplo, diz que desde o ano passado estão sendo anunciados cortes de bolsas, principalmente na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação. “Eles ocorrem por causa dos cortes das agências de fomento, que precisam se adequar aos contingenciamentos feitos em seus orçamentos”, explica. “Em maio de 2019, o órgão recolheu as bolsas que chamou de ‘ociosas’, isto é, aquelas que ainda não haviam sido atribuídas a estudantes.”

Ela chama atenção, no entanto, para o fato de que, na grande maioria dos casos, o período em que elas ficaram vagas foi de dois ou três meses apenas (em um caso, de um mês), justamente no momento da transição entre alunos bolsistas diplomados (a partir da defesa de dissertação ou tese) e a entrada de alunos no início do ano letivo. “Em setembro, houve novo corte, com o recolhimento de bolsas não utilizadas pelos Programas de Pós-Graduação (PPGs) conceito 3 e 4 bem como as cotas da Pró-reitoria. Em fevereiro de 2020, fomos surpreendidos com uma nova redistribuição das bolsas da Capes aprofundada pela Portaria 34 de marco de 2020.”

Nesta redistribuição houve cortes em alguns programas e ganhos em outros, em geral com perdas. Posteriormente em março de 2020, foram devolvidas algumas cotas. “Porém, deve ser considerado que os programas de pós-graduação realizaram em 2019 o planejamento de suas atividades para o ano de 2020 e que os processos seletivos foram feitos com base nas cotas de bolsas então vigentes”, diz Nancy.
Mas o mais grave, de acordo com ela, é que a nova distribuição de cotas de bolsas não levou em consideração a excelência das Instituições de Ensino Superior. “É inadmissível que universidades nas primeiras classificações dos rankings mundiais, como a Unicamp, possam perder quantidade expressiva de bolsas”, reclama. “Além disso, a regra apresentada nas Portarias Capes 20/2020, 21/2020 e posteriormente utilizada na Portaria 34/2020 com o uso do IDH, prejudicou cidades nas quais o custo de vida é elevado, como Campinas.”

Para ela, o momento é de grande incerteza e muitas dúvidas, dada a crise da pandemia do coronavírus e a necessidade de isolar fisicamente os membros da comunidade universitária e, ao mesmo tempo, a necessidade de encontrar maneiras de não se desmobilizar e de dar continuidade às atividades acadêmicas, assegurando a qualidade do ensino e o cumprimento do calendário escolar. “É preciso um grande esforço institucional para manter uma universidade do porte da Unicamp em funcionamento em circunstâncias tão excepcionais”, diz.

Em nota enviada ao Ciência na rua, a Capes disse que “não promoveu nenhum corte de bolsas, ao contrário, aumentou o seu número total nos últimos meses”. O CNPq, também por meio de nota, disse que “a divulgação já feita foi de pré-chamadas e os textos definitivos das chamadas estão sendo discutidos e devem ser divulgados esta semana, quando serão dados mais detalhes. Sobre o número de bolsas, temos mantido a média de 80 mil bolsas/ano”.

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