Luiza Caires, Jornal da USP (colaborou: Marcelo Canquerino)
imagem da home: Emerson Freire, Jornal da USP
Do que você tem mais medo, de aranha ou de automóvel? Se respondeu que é de aranha, está entre a maioria das pessoas. Apesar disso, sabemos que, estatisticamente, automóveis oferecem um risco bem maior de nos causar danos físicos e até a morte – vivemos no ambiente urbano e a maior parte das aranhas sequer é venenosa. Por que então o medo de aranha permanece tão enraizado em nós? A resposta está na evolução. Ao longo de milhões de anos, mamíferos e outras espécies aprenderam a temer as aranhas – o carro só está aqui há pouco mais de cem anos, elas há pelo menos 380 milhões. Evitá-las, portanto, poupou a vida de mais indivíduos que assim se comportavam, e que tiveram mais sucesso em passar seus genes para as próximas gerações do que os que eram indiferentes a esses bichos.
Esse é um comportamento simples, envolvendo partes mais antigas – evolutivamente falando – do cérebro, ligadas ao medo, e que compartilhamos com outros animais. Mas será que a evolução também não atua em comportamentos mais complexos da nossa espécie, ou melhor, nas dimensões psicológicas que influenciam nossas escolhas diárias e a maneira como nos relacionamos? Esse é exatamente o alvo dos estudos da psicologia evolucionista. Organizadora de um dos únicos manuais sobre o tema produzidos no Brasil, a professora do Instituto de Psicologia (IP) da USP Jaroslava Valentova diz que, ao estudar o ser humano, “não faria sentido pensar só sobre os processos sociais e culturais sem considerar também as aspectos biológicos evoluídos, quer dizer, que não estão se desenvolvendo somente durante a nossa vida, mas evoluíram durante a história da espécie”. Assim, a psicologia evolucionista entende que o comportamento humano pode ser explicado como uma interação entre predisposições biológicas e aspectos ambientais, isto é, do contexto: cultura, meio físico, história de vida, etc.
Jaroslava explica que, na psicologia, as comparações não são feitas apenas entre diferentes culturas, mas também com outras espécies, cujo comportamento é estudado pelo campo da etologia. “Raramente nós vamos dizer que algo é muito específico e humano antes de fazer uma comparação filogenética, antes de olhar para outras espécies e tentar entender onde esse comportamento, essa tendência psicológica surgiu no passado”, diz.
Ela cita o ciúme, foco de suas pesquisas, como exemplo: por que muita gente sente ciúme? “Podemos tentar explicar que ‘sentimos ciúme porque queremos manter, por exemplo, o objeto do nosso relacionamento, para eliminar os possíveis rivais’. Isso fica num nível mais imediato. Mas, para fazermos uma análise evolucionista, precisamos conhecer todos os outros: o que está acontecendo nos níveis genético, hormonal, neurológico, cognitivo? Como esse fenômeno que estamos estudando se desenvolve durante a vida, como ele muda?”
A ideia, explica ela, é que não viemos ao mundo como algo completamente pronto, mas também não nascemos como uma tábula rasa. “A gente não nasce com todos esse programas já feitos, eles vão se desenvolver. Crianças pequenas vão sentir vários tipos de ciúme, do irmão, por exemplo, por causa da atenção da mãe, mas não vai ser ciúme romântico ou sexual. Esses vão aparecer mais tarde, durante a puberdade ou adolescência, e vão ter provavelmente algumas coisas em comum com aquele ciúme das crianças, mas também vão ser específicos, pois serão voltados para os parceiros românticos e sexuais.”
Ferramentas
Mas de quais ferramentas os pesquisadores dispõem para avançar no conhecimento, ou seja, como chegam a conclusões nesse campo? Jaroslava responde que “não existe um método específico, se usam vários. Observação é um deles. A maioria das pesquisas tem sido feita de forma quantitativa, mas há também estudos qualitativos que podem incluir observação, entrevistas, questionários. Mostramos diferentes estímulos para as pessoas e vemos as reações delas. Usamos muitos testes, como os de personalidade”.
Os psicólogos evolucionistas trabalham também com dados públicos. “Por exemplo, levantar dados sobre número de crianças e fatores sociodemográficos na Finlândia durante os últimos 400 anos, da população inteira. Analisar o que mudou, e quais fatores sociodemográficos influenciaram no sucesso reprodutivo das pessoas durante esses anos todos”, ilustra a professora do IP, ressaltando que novos resultados, às vezes, surgem não de se usar métodos novos, mas de se integrar os conhecimentos de várias áreas. Sem se olhar somente para a função de um fator específico, como a genética, mas observar o comportamento ou as capacidades mentais estudadas da forma mais ampla possível, tentando conectar os pontos entre várias áreas. E ir além: “A gente nem trabalha só com psicologia. Muitas vezes recorremos à antropologia ou à arqueologia, por exemplo, para ver como as coisas acontecem em tribos com pouco contato com a civilização ocidental, ou como as coisas aconteciam entre os nossos ancestrais”, conta.
Neste sentido, a professora do IP explica que a psicologia evolucionista não é exatamente uma área, como a psicologia de desenvolvimento ou do trabalho. Está mais para uma abordagem que usa conhecimentos de todas as áreas da psicologia e de outras disciplinas para dar um olhar mais evolucionista aos processos psicológicos humanos. E que tem como princípio a noção de que a evolução moldou e desenvolveu várias dimensões da psicologia humana. “Não exatamente o comportamento. Nosso comportamento já são expressões específicas de algumas tendências. Mas as capacidades e tendências mentais não surgiram do nada. Não nascemos como uma folha em branco só aguardando o que a cultura irá colocar na nossa mente. Temos várias predisposições que evoluíram durante o longo tempo da história das espécies. Algumas partes do nosso cérebro e de nossos mecanismos cognitivos e mentais são muito antigas. A psicologia evolucionista trabalha sim com a parte já evoluída e, ao mesmo tempo, cultural da psicologia humana. Mas tenta oferecer também esse olhar mais distal, mais voltado para a história da espécie. Ela parte do princípio que a maioria dessas tendências humanas evoluiu durante o nosso passado. Inclusive, que temos algumas tendências que não são mais adaptativas, que hoje em dia simplesmente não funcionam mais, como o medo exagerado de aranhas”, conclui, retomando nosso exemplo inicial.
Uma abordagem mal compreendida
Se passamos a maior parte deste texto tentando definir como a psicologia evolucionista trabalha, não é mero acaso. Essa abordagem, como Jaroslava prefere chamar, já sofreu e ainda sofre incompreensão. Marco Antonio Correa Varella, autor de capítulo do livro escrito exatamente para desfazer os mal-entendidos, conta que a psicologia, como um todo, cresceu em meados do século 20, justamente um século que assistiu aos abusos nazistas, da eugenia, do chamado darwinismo social, se apropriarem da ideia de evolução biológica para tentar embasar cientificamente políticas totalitárias e desumanas. Mesmo não se baseando no que Darwin propôs, estas ideias acabaram marcando negativamente a teoria da evolução, principalmente suas tentativas de aplicação ao comportamento humano.
Assim, explica ele, a fim de se não cometer os erros do passado, muitas das ciências humanas já se desenvolvem com essa aversão à qualquer explicação biológica. “As únicas causas que mereceriam ser estudadas seriam as culturais. Tanto que a expressão ‘biologizar’ é até considerada uma ofensa.”
Mas Jaroslava acredita que isso está mudando. “Estamos vendo o retorno das explicações altamente culturais, mas também estamos começando a poder conciliar um pouco explicações mais biológicas.” No prefácio à obra, Dennis Werner (UFSC) vai na mesma linha ao afirmar que “o paradigma interacionista e avanços científicos reduziram resistência ao estudo dos fatores biológicos no comportamento humano, e, com a psicologia evolucionista, a explicação de mecanismos psicológicos”. No Brasil, diz a professora do IP, esse movimento ainda é menor, mas também acontece. Algumas universidades têm disciplinas na graduação ou pós de psicologia evolucionista. “Aqui na USP ainda não temos disciplina de graduação, pretendo criar uma nos próximos semestres. Mas já temos ‘Etologia do Ser Humano’, que é bem próxima da psicologia evolucionista”, anuncia.
Marco Varella conta que, ao escrever seu capítulo, tinha que parar e trabalhar muito em cima de cada parágrafo para não dar margem a ambiguidades. “Antigamente, julgávamos que 50% da responsabilidade por um texto ser bem entendido era de quem escrevia; e os outros 50%, de quem lia, de interpretar corretamente. Mas hoje já partimos da noção de que quase 90% é de quem escreve. Disso também veio a ideia de fazer um glossário no final do capítulo, para deixar os termos bem enraizados”, diz. E exemplifica: “Na psicologia se usa ‘adaptação’ como alguém se dar bem no seu meio social, ser uma pessoa ‘adaptada’. O que não tem a ver com o significado que a perspectiva do evolucionismo usa. Quando falamos de adaptação, estamos nos referindo a alguma característica que foi selecionada ao longo de milênios nas populações ancestrais. Ou mesmo o termo ‘evolução’. Muita gente acha que ‘evolução’ é progresso. Não é progresso, é apenas mudança”.
Buscar se prevenir contra incompreensões, porém, não quer dizer que não se lida com o dissenso, que faz parte do desenvolvimento de todas as ciências. Sobre o descompasso adaptativo (temporal), por exemplo, a bióloga Adriana Sicuto, que pesquisa etologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), observa que não é um termo amplamente aceito por todos, podendo ser considerado generalista demais. “Isso porque os defensores mais radicais podem apostar numa certa impossibilidade de mudanças evolutivas rápidas, o que é criticado por muitos. Muitos experimentos de seleção natural em animais mostram que é possível haver mudanças rápidas em determinados traços de acordo com o potencial adaptativo dos mesmos em função das mudanças ambientais”, diz. “Também devemos nos lembrar que o estudo do comportamento revela surpresas, e que muitas vezes um comportamento que parece mal-adaptativo pode não ter sido ainda compreendido corretamente, apenas”, ressalta.
O livro
O Manual de Psicologia Evolucionista é uma coletânea que contempla os fundamentos da Psicologia Evolucionista, com 24 capítulos divididos em cinco seções: Fundamentos para a Psicologia Evolucionista, Cognição e Emoção, Comportamento Sexual e Reprodutivo, Desenvolvimento e Família, Comportamento Social e Cultura.
De forma didática, o livro explica o comportamento humano como uma interação entre predisposições biológicas e modulação ambiental, conciliando as ciências biológicas e humanas. O livro constitui uma excelente introdução à Psicologia Evolucionista para alunos de graduação e pós e para o leigo que mostra curiosidade sobre o tema.
A psicologia evolucionista já é uma área influente no mundo mas ainda recente no Brasil, para a qual falta bibliografia em português. Cada capítulo foi escrito de modo a poder ser lido de forma independente, mas a sequência dos capítulos também têm uma lógica que pode ser seguida caso o livro venha a ser utilizado como livro-texto em uma disciplina. Os autores usam uma linguagem didática, ilustrações, boxes, questões de discussão, glossário e referências, tendo em vista o ensino na graduação e pós-graduação. Mas ressaltam que o livro pode ter como público-alvo todos os que se sentirem interessados na natureza da mente humana.
O livro foi publicado pela EDUFRN e pode ser baixado gratuitamente neste link.