Em artigo publicado na revista Ecology, cientistas de diferentes instituições revelaram ter descoberto que os ovos de uma espécie de peixe que vive em lagos e regiões empoçadas podem sobreviver por até 30 horas no sistema digestório e nas fezes de gansos. O processo de dispersão de espécies por meio de fezes de outros animais é chamado endozoocoria, bastante conhecido no caso de sementes, por exemplo. A pesquisa joga novas luzes sobre a dispersão de espécies de peixes nesses ambientes. O Ciência na Rua conversou por e-mail com Giliandro Silva, principal autor do artigo e doutorando em Biologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul. Confira abaixo a entrevista.
Que espécie é essa, killifish? Tem nome popular no Brasil? Qual é o hábitat dele?
Killifish é uma denominação genérica para peixes de algumas famílias da ordem Cyprinodontiformes. No caso deste estudo, nós trabalhamos com duas espécies pertencentes à família Rivulidae (espécies: Austrolebias minuano e Cynopoecilus fulgens). Eles são chamados genericamente de peixes-anuais. Habitam áreas úmidas, como poças, lagoas etc., que secam durante a estação seca e reaparecem na estação chuvosa. Os ovos destes peixes possuem adaptações evolutivas que permitem que eles sobrevivam depositados no solo quando a área úmida está sem água e eclodem quando a poça volta a encher na estação chuvosa.
Como vocês encontraram um ovo dele nas fezes de um cisne pela primeira vez? Como é esse trabalho de campo de endozoocoria?
Para analisar as relações de endozoocoria entre aves aquáticas e outros organismos, eu coletei excrementos de aves na natureza, os levei para laboratório, lavei-os com o auxílio de uma peneira e identifiquei o material encontrado. O primeiro ovo e alguns córions [membrana exterior do ovo] estavam em alguns destas amostras coletadas em campo, de uma espécie de ave chamada coscoroba (Coscoroba coscoroba).
Uma vez encontrado o ovo, como decidiram fazer o experimento sobre sua viabilidade? No que consistia o experimento?
O ovo encontrado estava em um lote de amostras que precisaram ser congeladas. Como houve o congelamento prévio, quando o ovo foi encontrado não era possível testar sua viabilidade. Assim, nós decidimos fazer um experimento para testar se era possível que os ovos sobrevivessem à passagem pelo trato digestório das aves. O experimento consistiu em pegarmos os peixes na natureza, criarmos eles em aquários para que viessem a produzir ovos, coletar os ovos, misturá-los a uma ração e finalmente disponibilizar esta ração para algumas aves de cativeiro (também coscorobas, do Parque Zoológico de Sapucaia do Sul, RS).
Quais foram os resultados? Ovos de peixe podem sobreviver no sistema digestório e nas fezes de aves?
Aproximadamente 1% dos ovos ingeridos pelas aves foram expelidos ainda viáveis no excremento. Dos cinco ovos recuperados, três continuaram o seu desenvolvimento embrionário em laboratório. Um destes chegou a eclodir, ou seja, nasceu um peixe saudável (da espécie Austrolebias minuano) mesmo após o ovo ter sido ingerido, passado por todo o trato digestório da ave e ser expelido nas fezes. Os demais acabaram morrendo por infecção fúngica, o que é relativamente normal quando se mantém ovos deste tipo de peixe em laboratório.
Como seria o percurso desse ovo? Como ele vai parar no sistema digestório do ganso e como ele volta para a água para poder eclodir? Quanto tempo ele aguenta nesse percurso?
Os ovos podem ser consumidos pelas aves quando elas se alimentam na lama ou na vegetação da poça de água ou lagoa, justamente onde os ovos de peixes-anuais permanecem depositados. Nós encontramos tanto ovos que saíram nas primeiras 4h após a ingestão quanto outros que sobreviveram a pelo menos 30 h dentro da ave.
Como essa descoberta pode nos ajudar a entender a presença de peixes em ambientes isolados, como os lagos? Já havia outros trabalhos que indicassem essa possibilidade de serem transportados em fezes? Que explicações se tinha até agora para explicar essa presença?
Aves aquáticas se deslocam diariamente entre áreas úmidas, inclusive conectando ambientes isolados e distantes entre si. Há muito tempo elas são reconhecidas como agentes de dispersão de organismos como sementes de plantas e ovos de invertebrados. O que nós comprovamos é que elas também podem atuar na dispersão de peixes. Tanto no conhecimento popular quanto nas discussões científicas a ideia predominante era a de que aves podiam transportar ovos de peixes aderidos em suas penas, pernas e bicos, levando os ovos de uma lagoa para outra, em um processo chamado de ectozoocoria.