Desde a celebração do Ano Internacional da Química, em 2011 (AIQ-2011), tenho participado de várias conferências internacionais sobre o papel das mulheres na ciência mundial, o que tem sido uma experiência bacana, especialmente pela riqueza de informações sobre mulheres fascinantes, de diferentes etnias e regiões, que têm contribuído de forma marcante para o avanço da ciência mundial, em todas as áreas do conhecimento.
O papel das mulheres para a evolução da espécie humana na terra historicamente esteve associado ao trabalho doméstico, sempre esmerado, ao cuidado da família, motivo pelo qual fomos alcunhadas de “rainha do lar”. Mas a contribuição feminina para a sociedade em todas as partes do mundo, mesmo que pouco destacada, vai além do território doméstico, e a história da humanidade está cheia de fatos e acontecimentos marcados pela atuação de mulheres extraordinárias, num universo de dominação masculina.
Poderia aqui citar algumas que fizeram história numa época em que era quase impossível mulheres se destacarem profissionalmente. Faço referência a duas cientistas com histórias marcadas por talento, sucesso, infortúnio e morte precoce. Marie Curie, polonesa radicada na França, foi a única pessoa laureada com dois prêmios Nobel; o primeiro, em Física, pelos estudos sobre radioatividade, dividiu em 1903com dois cientistas, Pierre Curie, seu marido, e Antoine Henri Becquerel; a segunda láurea ganhou sozinha, em 1911, o Nobel de Química pela descoberta dos elementos químicos rádio e polônio.
O segundo exemplo que escolhi se contrapõe à trajetória de sucesso de Marie Curie: trata-se de Clara Immerwahr, uma química muito talentosa que viveu mais ou menos no mesmo período, mas não teve a mesma sorte. Embora brilhante, e primeira mulher na Alemanha a obter o título de doutora, em 1900, ela é praticamente desconhecida nos relatos históricos de cientistas da época. Casada com o químico alemão Fritz Haber, famoso pela descoberta e síntese da amônia, ela contribuiu bastante para o sucesso das pesquisas do marido, mas nunca foi citada ou reconhecida como colaboradora.
Do anonimato à participação nos protestos contra armas químicas na Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial, devido às pesquisas do marido com gases tóxicos para desenvolvimento e produção de armas químicas, teve um fim muito triste. Delatada por ele como traidora da pátria, suicidou-se aos 45 anos, encerrando muito jovem sua trajetória científica.
Fica evidente hoje que a ciência, surgida nos séculos XV, XVI e XVII, não apenas trouxe à luz as descobertas que abriram caminho para a compreensão do Universo e da própria espécie humana, culminando no avanço científico e tecnológico que conhecemos hoje, como mudou completamente o cenário acadêmico da atualidade, tornando-o um ambiente favorável para as mulheres atuarem, sem os ranços do passado.
Foram muitas as que deixaram de ser “rainhas do lar” e se aventuraram num universo de domínio masculino, conquistando espaço profissional e abrindo caminhos sem volta para as gerações atuais. Com muita luta, as mulheres deixaram as tarefas domésticas para se projetarem como trabalhadoras, ocupando funções diversas, contribuindo definitivamente para os avanços social e econômico em todo o mundo. Nós cientistas, somos parte substancial dessa força de trabalho em setores estratégicos para a sociedade: da universidade aos institutos de pesquisa, das empresas de serviços às de base tecnológica e de produção, mulheres professoras, cientistas, pesquisadoras, constroem uma nova dimensão social para a nação.
Sendo parte desta população ainda pequena em todas as partes do mundo, encanto-me com o trabalho que realizo em desvendar o mundo invisível da biodiversidade, descobrindo e registrando a beleza molecular dos produtos naturais. A caminhada foi longa e difícil mas valeu a pena cada passo, cada conquista. E é a história de uma jovem nordestina que, aos 22 anos saiu de casa sozinha para vir estudar em São Paulo e enveredar no mundo fascinante da ciência, o tema que escolhi para abordar na conferência que fiz durante o 248th ACS National Meeting & Exposition, na cidade de São Francisco, na Califórnia, estados Unidos, em 11 de agosto de 2014, numa sessão especial dedicada a mulheres cientistas. Foi muito gratificante ter sido incluída entre as 16 cientistas convidadas pela ACS, originárias dos 5 continentes.
Após a conferência tive a grata surpresa de ser convidada pela Ex-Presidente da ACS, Marinda Li Wu, para escrever um dos capítulos do seu livro “Jobs, Collaborations, and Women Leaders in the Global Chemistry Enterprise”, que acaba de ser editado pela ACS Publications (https://pubs.acs.org/isbn/9780841230675). O capítulo 23 “Two Decades of Research on Natural Products Chemistry from Brazilian Biodiversity: Inspirations and Motivations ” (https://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/bk-2015-1195.ch023) foi dividido em 2 sessões: a) Overview of the Brazilian Women in Science and in Natural Products Chemistry; b) A Brief Overview of the Research on Natural Products Chemistry from Brazilian Biodiversity.
Ao aceitar a participação no livro pedi a Marinda Li Wu – não apenas relatar minha carreira acadêmica mas também descrever um panorama das mulheres cientistas do Brasil, com ênfase à minha área, mostrando dados estatísticos cedidos pelo CNPq, período 2014.
A história da ciência no Brasil é relativamente recente quando comparado com outros países, mas nossa comunidade científica vem a aumentando substancialmente nos últimos 50 anos. Estatísticas sobre a participação de mulheres no meio acadêmico e tecnológico nacional apresentadas no último censo do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) mostram que as mulheres têm presença significativa na ciência brasileira.
É sobre o panorama atual das mulheres cientistas brasileiras, especialmente na minha área de atuação e a trajetória acadêmica da UFPB à UNESP, que trata o capítulo escrito para o livro publicado pela ACS – “Jobs, Collaborations, and Women Leaders in the Global Chemistry Enterprise”.
Cresci num mundo onde os livros não continham personagens femininos. Hoje, vejo com entusiasmo um horizonte cheio de oportunidades para as mulheres de todos os cantos, recantos e profissões. Um universo onde homens e mulheres possam construir uma sociedade mais justa e humana em busca de mundo sustentável.
Como todo bom nordestino acredita ser escritor, escrever este capítulo foi um bom treino e como diria o poeta Chico Buarque em sua linda canção A Violeira – “Desde menina, caprichosa e nordestina, que eu sabia a minha sina, era no “Sul” vir morar”!
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Vanderlan da S. Bolzani, Professora Titular do IQ-UNESP, vice, presidente da SBPC