(Texto elaborado originalmente para o UFBA em pauta)
No momento em que o Ciclo Mutações completa 30 anos, a psicanalista Maria Rita Kehl propõe uma nova reflexão sobre o desejo, retomando o tema que já havia sido abordado por ela em edições anteriores do evento, há quase três décadas. A questão central de sua conferência realizada na noite de sexta-feira (07/10), no Salão Nobre da Reitoria da UFBA, foi justamente a ausência do desejo e o aumento dos casos de depressão no mundo contemporâneo, marcado por ofertas, imagens e sonhos prontos que assolam as pessoas cotidianamente.
A partir de sua experiência no atendimento a pacientes depressivos, Kehl escreveu o livro “O tempo e o cão – a atualidade das depressões” (Ed.Boitempo), que recebeu o Prêmio Jabuti como Livro do Ano de não ficção, em 2010. A depressão, no entendimento da conferencista, está associada ao desejo saciado. Não seria a falta, portanto, o que motiva a depressão, pois a falta de algo estimularia o desejo e o trabalho psíquico. A busca por si só envolveria um empenho que se contrapõe à apatia do sujeito depressivo. “O depressivo não sofre por não obter aquilo o que deseja. Ele não deseja nada”, afirmou.
Os reis tristes das estórias infantis foram citados como exemplo de personagens que tudo têm à sua disposição, porém nada é capaz de deixá-los felizes, nem os melhores banquetes, nem as mais belas mulheres ou as maiores fortunas. Para Kehl, o que lhes falta é a falta, aquilo o que motivaria o seu desejo. A saciedade levaria a um quadro de depressão, que apresenta como um de seus sintomas um estado de tédio permanente.
Maria Rita Kehl fez uma ressalva em relação aos casos extremos da falta de condições básicas de vida, que, por outras razões, tendem a provocar o desolamento e quadros depressivos nos indivíduos. Segundo ela, não é que as pessoas já tenham de tudo, que nada mais lhes falte. Mas, em sua concepção, talvez o que falte às pessoas atualmente seja um sentido para suas vidas, o que não se vende em um shopping center.
Também foi apontado como um dos motivos para o crescimento da depressão nos dias de hoje a propaganda da indústria farmacêutica acerca dos antidepressivos. “Há uma propaganda não apenas dos remédios, mas também das doenças”. A conferencista sinalizou que a indústria farmacêutica, mesmo na crise, é uma das que mais cresce e gera lucros.
Outro exemplo abordado durante a exposição foi o das crianças que se ocupam das mais diversas atividades durante todo o dia, mas não têm tempo livre para brincar e desenvolver as suas capacidades criativas, imaginar. “Se a mãe das invenções é a necessidade, seu pai é, certamente, o ócio”, disse a conferencista, para quem o objeto de desejo é sempre simbólico, ainda que se tenha o hábito de atribuir o desejo a um objeto de consumo.
De acordo com psicanalista freudiana, a separação entre a criança e a sua mãe, rompendo o estado inicial de saciedade, tornaria a criança um ser desejante, para quem falta algo. Na relação que se desenvolve entre mãe e filho durante a amamentação, a criança, com fome, procura saciar o desconforto provocado por uma falta, um mal-estar orgânico. Desde então o sujeito passaria dedicar-se a agradar ao outro em busca de relações amorosas que permitam ocupar esse lugar de falta um para o outro. “A vida é movida pelo desejo”.
Kehl destaca que o desejo é um movimento psíquico e que o sujeito está mais vivo psiquicamente na medida em que é capaz de inventar os seus próprios objetos de desejo. Ela trouxe o relato da experiência clínica da neurose de oferecer-se como objeto de desejo do outro, quando o neurótico é um escravo em busca de um mestre que o conduza. “A saúde psíquica depende de uma travessia de um gozo passivo para um lugar criativo”, disse.
A oferta excessiva de objetos e o consumismo também foram temas abordados durante o encontro pela psicanalista, que citou as propagandas de carros nas quais homens dirigem veículos potentes, atravessando ruas vazias de gente, em um mundo que se abre a sua passagem, para ilustrar um lugar de desejo contemporâneo de um gozo passivo. Para Kehl, o sujeito da sociedade de consumo, ao invés de animado, torna-se inapetente. A conferencista finalizou a sua fala com o poema “Passagem da Noite”, escrito nos anos 30 por Carlos Drummond de Andrade, que se encerra dizendo que “o essencial é viver!”.