(Texto originalmente produzido para o “UFBA em pauta”, com edição do edgardigital.ufba.br)
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Em 1948, Carlos Drummond de Andrade fez sua última visita a Itabira, sua terra natal – ali, ele não voltaria mais até o fim da vida, em 1987. “Achavam que isso era pouco caso com Itabira. Ao contrário: isso é testemunho da presença pungente de Itabira no meu ser”, disse o poeta ementrevista à jornalista Leda Nagle, em 1981. “Não vou [mais] lá porque meus parentes morreram, meus amigos morreram. Itabira hoje é uma cidade de 100 mil habitantes, gente de fora, da Companhia Vale do Rio Doce, que faz a extração do minério. Então, eu vou lá para quê? Para ver um passado meu que já não existe? Para sofrer? Eu vejo a minha Itabira do passado na minha fotografia na parede”.
Em 2014, José Miguel Wisnik fez sua primeira visita a Itabira, e conheceu a cidade que o poeta não queria ver. Viu que o pico do Cauê (o morro majestoso sob cujas franjas a cidadezinha se espalhava) e os sinos da Igreja Matriz do Rosário – duas imagens fundamentais da memória poética de Drummond – “não haviam mais”. “A Vale minerou o pico até ele virar uma cratera. A mineração fez a Igreja tombar. E a fazenda da família de Drummond virou um campo de rejeitos [de minério] da Vale”, disse Wisnik, na palestra “Poetas que pensaram o mundo: Drummond e a maquinação do mundo”, que inaugurou a etapa baiana do Ciclo Mutações “Entre dois mundos: 30 anos de experiências do pensamento”, ontem, no Salão Nobre da Reitoria da UFBA. O seminário foi aberto com uma saudação do reitor João Carlos Salles (que apresentará na quarta, 05/10, a conferência “O olhar”), e contou com as presenças do organizador do evento, Adauto Novaes, e do ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira.
O livre-docente em literatura brasileira pela USP, escritor e músico prendeu a atenção da plateia por quase duas horas ao propor a relação entre os universos mítico e psicológico da poesia de Drummond e a história social, política e econômica do país. Wisnik evidenciou um conjunto de nexos entre a transformação da pacata Itabira em um dos maiores centros mineradores do mundo e a inserção do Brasil no chamado capitalismo tardio, chamando atenção para as contradições do acelerado e perverso processo de urbanização do país, majoritariamente rural até meados do século 20.
“Em um poema de Drummond chamado América, tem um verso que diz assim: ‘Uma rua começa em Itabira, que vai dar no centro da terra’. Itabira se comunica com o mundo. Há um sentimento do mundo em Itabira, que imaginamos ser uma cidadezinha pequena e pacata, e que de repente entra no centro de grandes disputas mundiais”, disse Wisnik, após recuperar, desde o início, o processo que transformou Itabira em “epicentro da mineração” – cujo estopim, em 1908 (quando o poeta tinha apenas 6 anos), foi o anúncio internacional da existência de uma enorme reserva de minério de ferro na região, notícia que atraiu industriais ingleses que rapidamente adquiriram grandes lotes de terra e fundaram, na cidade, a mineradora Iron Ore Company.
Desde então, segundo Wisnik, a exploração do minério itabirano tornou-se cerne da disputa entre duas concepções de modernização do Brasil, que até hoje têm ressonância: a primeira, preconizando a atração de capitalistas estrangeiros, visando a rápida inserção do país na dinâmica mundial de exportações, projeto então capitaneado pelo presidente Epitácio Pessoa (1919-22); a outra, que defendia a utilização das reservas minerais para criar uma siderurgia nacional, que tinha a simpatia do presidente Artur Bernardes (1922-26). A contenda, segundo recordou Wisnik, só seria resolvida em 1942, durante a II Guerra Mundial, quando Getúlio Vargas funda a Companhia Vale do Rio Doce, após entrar em acordo com os Aliados, recuperando as áreas até então exploradas pela mineradora inglesa, e, em troca, comprometendo-se a fornecer minério de ferro à indústria bélica daqueles países. Nas décadas seguintes, a Vale se tornaria um dos principais vetores de desenvolvimento econômico do Brasil, antes de ser privatizada, nos anos 1990. É nesse ínterim que Drummond escreve toda a sua poesia – para Wisnik, “a obra de Carlos Drummond de Andrade é inseparável da mineração de ferro”.
Na palestra, Wisnik evidenciou ecos desse processo histórico na poesia de Drummond analisando três poemas (“Itabira”, “A montanha pulverizada” e “A máquina do mundo”) em que o poeta itabirano mobiliza diferentes acepções das expressões “mundo” e “máquina”: a noção de ‘máquina do mundo’, que remete ao artefato que permite aos homens uma visão total do mundo, descrito por Camões em “Os Lusíadas”; e a imagem de uma ‘máquina capitalista de exploração do mundo’, que incide sobre a natureza e sobre a sociedade, transformando-as a seu critério. Por um lado, segundo Wisnik, “Drummond está continuamente em busca de uma totalidade que não se completa nunca”; por outro, “não se trata de simples evocações nostálgicas de um mundo perdido. São referências a um estado de coisas, a uma ‘máquina do mundo’ entranhada em tudo.”
Wisnik considera um dos exemplos – “Itabira”, um curto poema escrito em 1926 e publicado em 1930 – “uma versão condensada” de toda a poesia de Drummond. O verso inicial, “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”, faz menção ao processo de expropriação do morro, antes patrimônio coletivo da cidade. Os versos seguintes, “Na cidade de ferro/ferraduras batem como sinos”, acionam o som metálico dos sinos da Igreja que seria derrubada no futuro, evocando o embate entre a cidade que se urbanizava, invadida pela desbravação mineradora, e a vida rural, simbolizada pelos cavalos. A seguir, os versos “Os meninos seguem para a escola. / Os homens olham para o chão. / Os ingleses compram a mina.” apontam a mesma linha de significação, referindo elementos do cotidiano que povoam a memória de Drummond. Por fim, nos versos finais, um cidadão enigmático parece lamentar o alvoroço de transformações que testemunha: “Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na/ derrota incomparável.”