Em 93 anos de história, o médico Ivo Pitanguy, que faleceu no último dia 6, no Rio de Janeiro, rompeu as fronteiras da cirurgia plástica, revolucionando o campo da estética e da reparação corporal. Considerado o melhor do mundo, com mais de 50 mil pacientes atendidos na sua clínica particular, dentre eles celebridades e chefes de Estado, Pitanguy desenvolveu técnicas inovadoras em intervenções cirúrgicas que acabaram virando padrão, seguido por todas as gerações seguintes de médicos.
Difícil imaginar, mas existiu uma época em que operar os seios, um dos procedimentos estéticos mais procurados hoje no Brasil, era algo extremamente perigoso, incerto e assustador para a geração de cirurgiões na década de 50 – época em que Pitanguy começou a desenvolver sua técnica. Poucos médicos tinham coragem de realizar a cirurgia mamária (principalmente para redução de mamas), ou mamoplastia. Os resultados estéticos eram ruins, em geral artificiais, os riscos de necrose da aréola eram grandes e os hematomas eram frequentes.
A busca por um resultado mais feminino, harmônico e seguro fez Pitanguy juntar diferentes técnicas para o tratamento de deformidades na glândula mamária (mamas muito grandes, excesso de pele, flacidez…) e criar métodos revolucionários para a época. Ele partiu dos conhecimentos em embriologia – a ciência que estuda a formação dos órgãos e sistemas a partir de uma célula, e passou a condenar as prática de grandes deslocamentos de pele durante a cirurgia. Em um de seus artigos ele explica “que existe uma íntima relação embriológica entre pele e glândula mamária”, e a plástica não poderia interromper essa continuidade.
Naquela época era comum que os médicos definissem antes da cirurgia o ponto exato em que o chamado complexo aréolo-papilar (CAP), o conjunto formado pelo mamilo e pela aréola ficaria. Pitanguy passou a defender que o posicionamentos deveria vir apenas depois que a mama da paciente estivesse reposicionada, tentando assim seguir o biotipo original e subir a aréola com mais segurança e menos chances de complicação.
Hoje esse ponto onde o mamilo é colocado ficou conhecido como “Ponto de Pitanguy”. A técnica desenvolvida por ele e chamada de “quilha invertida de navio”, passou a ser usada no mundo todo para diminuir e levantar os seios. “Ele continuou aprimorando e fez uma série de publicações que foram fundamentais para a prática, conseguindo trazer dignidade para a plástica reparadora”, conta Márcio Crisóstomo, cirurgião plástico, um dos ex-alunos do disputadíssimo curso de pós-graduação em cirurgia plástica, criado por Pitanguy em um convênio com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Antes de partirmos para as outras inovações do médico, é preciso entendermos o contexto da época em que Pitanguy começou a atuar. Nascido em Belo Horizonte, em 1926, estudou na Europa e nos Estados Unidos com os grandes médicos especialistas do pós-guerra, detentores de um conjunto de técnicas para o tratamento de mutilados em combate, vítimas de queimaduras e deformidades congênitas.
“As técnicas da cirurgia reparadora eram difíceis e muitas vezes só os cirurgiões que inventaram conseguiam reproduzir”, explica Márcio. Esse talvez seja o maior legado de Pitanguy: técnicas fáceis de aprender, executar e ensinar.
A cirurgia plástica na época não era nem considerada uma especialidade médica. Foi então que Pitanguy uniu os conhecimentos das práticas de cirurgia reparadora com a plástica para chegar em resultados naturais. É dele, inclusive, o recorde mundial de operações de face liftings, cirurgia facial para tratar os sinais de envelhecimento da pele.
Ao longo das décadas de 60, 70 e 80 o cirurgião documentou em fotos o rosto de suas pacientes operadas e criou um método matemático para acompanhar o envelhecimento da pele. “Ele estudou essas fotos e determinou o sentido do envelhecimento”, conta Márcio. Pitanguy demonstrou com o estudo que o direcionamento de uma cirurgia da face deveria ser exatamente o oposto do sentido do envelhecimento.
O estudo, que foi publicado na década de 80 e disseminado pelo mundo, confirma um princípio da cirurgia da face que o próprio Pitanguy já tinha desenvolvido nos anos 60, em que mostrava a direção de tração da pele. O round lifting, como foi chamada a técnica, faz um mapeamento do nervo facial e permite um reposicionamento dos tecidos seguindo uma linha contrária à ação do envelhecimento.
Antes dele, as técnicas de face lifting não eram seguras, deixavam cicatrizes mais aparentes e um resultado não tão natural. “Quando você faz uma cirurgia plástica de face, há uma direção para puxar a pele que esta sobrando. Se o cirurgião traciona, puxa para uma direção que nao é natural, o resultado é um rosto ‘puxado’, totalmente artificial”, explica Márcio.
As inovações técnicas logo atraíram pacientes do mundo todo para sua clínica no bairro de Botafogo, na capital carioca. O local era um verdadeiro complexo médico que garantia aos pacientes privacidade e praticidade para fazer exames, consultas e cirurgias. “Pra mim ele foi um dos primeiros designers clínicos que existiram. Implantou um sistema de atendimento humanizado, integral e completo”, conta Leonardo Aguiar, cirurgião plástico e um dos discípulos de Pitanguy. “O gerenciamento da saúde como uma experiência pessoal, com o médico mapeando toda a necessidade daquele paciente, foi um dos grandes legados dele”.
Nesse endereço Pitanguy recebeu estrelas do cinema mundial, reis, rainhas e chefes de Estado, todos para realização de procedimentos cirúrgicos. A atriz italiana Gina Lollobrigida foi uma das celebridades que desembarcaram no Brasil em busca do conhecido “nariz Pitanguy” – resultado de uma técnica desenvolvida pelo cirurgião para a rinoplastia, cirurgia estética do nariz.
Pitanguy descobriu que um ligamento situado entre as cartilagens das narinas, responsável por prender o músculo da ponta do nariz, também poderia levantá-lo alguns milímetros, melhorando a sua aparência. Foi então que a região passou a ser chamada de “ligamento de Pitanguy”, em toda literatura médica mundial.
Ainda nas intervenções estéticas do rosto, ele criou uma técnica para engrossar lábios muitos finos, chamada “confecção do arco de cupido de Pitanguy”. Em linhas gerais, trata-se de uma incisão na linha de demarcação da mucosa do lábio superior, para aumentar o seu contorno. Criou ainda outras técnicas para as cirurgias de correção da orelha de abano e aumento do queixo.
“Eram todas muito simples e essa era a premissa dele ‘uma boa técnica é aquela fácil de ser aprendida e fácil de ser executada’”, lembra Márcio. “Quando entrei como residente na clínica dele, as primeiras cirurgias que fui assistir imaginei que seriam super complexas e difíceis e na verdade fiquei surpreso, era totalmente o contrário”, conta Márcio.
Outro grande legado de Pitanguy foram as técnicas para as cirurgias do abdômen, abdominoplastias, comuns para correção da flacidez e o excesso de pele e muito praticadas hoje com o aumento da obesidade e a frequência das cirurgias bariátricas (cirurgias de diminuição do estômago). Pitanguy pregava que não bastava apenas retirar o excesso de pele na região da barriga, mas era necessário também refazer toda a parede muscular. “Ele introduziu a técnica da plicatura dos músculos reto abdominais, durante a abdominoplastia”, conta Márcio. A prática trouxe resultados mais fisiológicos, uma vez que além de corrigir a flacidez da pele, corrigia também a função do abdômen de conter os órgãos da região.
Escola de cirurgiões
O trabalho do Pitanguy tinha um componente educacional muito forte. “Ele sempre imaginou a criação da escola. Na época em que se formou na Europa e nos Estados Unidos era muito difícil aprender a cirurgia plástica. E quando chegou aqui, logo abriu as portas da clínica para todos que quisessem aprender suas técnicas”, destaca Leonardo.
Pitanguy sempre esteve à frente do instituto que leva seu nome e que coordena o convênio com a PUC-RJ. O curso já formou mais de 600 profissionais, vindos de cerca de 50 países. “Médicos do mundo todo procuram o programa, entravam 6 alunos brasileiros e outros 6 estrangeiros todos os anos”, conta Márcio.
Durante os três anos de curso, os alunos conhecem todos os ramos da cirurgia estética e reparadora e fazem estágio na clínica particular de Pitanguy e em serviços de atendimento a pacientes com deformidades congênitas, sequelas de trauma e queimaduras, em diversos hospitais públicos conveniados.
Nesse campo, aliás, Pitanguy trouxe inúmeras contribuições e inovações, principalmente depois de um dos maiores incêndios do Brasil, que afetou o Gran Circus Norte-Americano, na cidade de Niterói, em dezembro de 1961. Pitanguy deslocou equipes para atender os queimados, entre os 2.500 feridos, na grande maioria crianças. Ele conseguiu, com o Hospital Bethesda, em Washington, nos Estados Unidos, um suprimento de 33 mil centímetros cúbicos de pele liofilizada, utilizada como enxerto numa técnica nunca antes realizada na América do Sul.
Foram diversas táticas cirúrgicas e um mix de técnicas para reconstruções de face e tratamentos de sequelas das queloides nas queimadoras. Tudo isso foi aprimorado ao longo dos anos e o médico passou a ser referência na área. “Para ele, tão importante quanto as pessoas sobreviverem ao acidente era a reintegração delas na sociedade”, lembra Márcio. “Nos anos seguintes o governo italiano encaminhou muitas pessoas, na maioria crianças, para tratamentos no Brasil”, lembra Leonardo.
O livro Aesthetic and Plastic Surgery of the Head and Body, lançada em 1981, na Feira de Frankfurt, na Alemanha, é uma das obras mais conhecidas do cirurgião e reúne 1.800 ilustrações em aquarela que retrataram diversas técnicas criadas por ele. “É considerada a bíblia da cirurgia plástica e usada até hoje”, conta Márcio.
Os discípulos são unânimes em destacar o lado “humanizado” do cirurgião como um dos maiores legados. Além de trabalhar diariamente em sua clínica, Pitanguy criou um serviço gratuito para tratamento estético para pessoas de baixa renda, com cirurgias reparadoras na Santa Casa da Misericórdia, no Rio de Janeiro.
São mais de 800 trabalhos científicos, entre artigos, livros e capítulos de livros, além do Boletim de Cirurgia Plástica, publicação bimestral sobre a produção acadêmica da sua equipe.
Seus ex-alunos criaram, em 1974, a Associação dos Ex-alunos do Prof. Ivo Pitanguy (AExPI), que se reúne todos os anos para discutir os avanços da cirurgia plástica. São mais de 400 membros ativos, que dizem propagar as convicções do mestre de que qualquer desconforto com a própria imagem merece ser corrigido, mas que exageros e expectativas irreais dos pacientes não devem ser estimulados.