Ana Luiza Fernandes Novaes e Helena Maria Silva do Nascimento
Estudantes da Filosofia da USP relatam o desenvolvimento do trabalho de um semestre em que se debruçaram sobre a obra da pensadora brasileira

Foto: Cezar Loureiro / Revista Cult — domínio público
Escrevemos um samba-enredo para homenagear a filósofa Lélia Gonzalez no curso de Filosofia da USP e foi incrível!
No primeiro semestre de 2025, a filósofa e professora Tessa Lacerda conduziu, na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, um curso sobre Lélia Gonzalez – uma das figuras mais importantes na construção do pensamento negro e feminista no Brasil. A disciplina foi muito feliz e bem recebida por nós, estudantes – de fato, se tratou de uma experiência muito rica, que jamais seria possível sem a tão querida e singular professora Tessa!
Chegamos já na primeira aula com muita expectativa e sede de conhecer Lélia – essa professora universitária, intelectual, antropóloga e filósofa, ativista, pioneira na crítica à marginalização das mulheres negras, tanto dentro do feminismo branco como do movimento negro masculinizado. Seu trabalho tem como eixos a denúncia ao racismo estrutural brasileiro e a reivindicação das culturas afrodescendentes como forma de resistência e produção de conhecimento.
Ao longo do semestre fomos apresentados a conceitos centrais, dentre os quais destacamos amefricanidade, referente a uma categoria político-cultural articulada de forma a mobilizar a presença de culturas africanas, indígenas e americanas na América Latina – o que nos conduz a outro conceito fundamental, a saber, Améfrica Ladina, pois somos uma América Africana que de latina, não tem nada. Nesse sentido, Lélia propõe que rompamos com a ideia de que o Brasil é fundamentado em uma cultura eurocêntrica, trazendo à tona a importância dos saberes populares, das línguas negras e das expressões culturais, como o candomblé, o samba e a oralidade ancestral. É a partir desta ideia que temos contato com uma de suas principais teses: o pretuguês, que sinaliza a africanização ou crioulização do português falado no Brasil, e, por consequência, a própria africanização da cultura como um todo – traço tão estruturalmente negado e recalcado, que leva Lélia a diagnosticar o país com uma neurose cultural, que tem no racismo seu sintoma por excelência. Dessa forma, ela analisa como a sociedade brasileira é atravessada pelo mito da democracia racial, disfarçado por um manto de cordialidade que encobre o racismo por denegação que, tragicamente, nos é tão característico.
Durante o semestre, debatemos com muita alegria e entusiasmo em aulas nas quais todos nós tomávamos a voz – o curso foi construído em roda: tanto em pequenas rodas para discutirmos os textos em pequenos grupos, como na grande roda com a turma toda. Muito afeto foi trocado, muitas experiências foram compartilhadas e criadas conjuntamente, reforçando o que para nós não poderia estar mais claro: filosofia se faz na troca, sem desprezar que o outro é presente. Experimentamos diferentes dinâmicas em sala de aula, que nos mobilizaram a pensar, discutir e contribuir de diversas formas. Contemplamos os ensaios mais importantes de Lélia, intervenções e diálogos que teve ao longo da vida, produzimos fichamentos semanais sobre suas teses, assistimos ao documentário ‘Ôrí’ – dirigido por Raquel Gerber e narrado e roteirizado por Beatriz Nascimento –, e, depois de todas as discussões, nos engajamos na elaboração de questões centrais que vieram a ser nossos temas de dissertação ao final do curso. Em outras palavras, construímos coletivamente todo o semestre, com a orientação sempre precisa, acolhedora e gentil da professora Tessa, a quem somos muito gratos!
No fim do semestre, tivemos a oportunidade de conceber conjuntamente um projeto de extensão, cujo objetivo era permitir que os conhecimentos e discussões articulados em sala chegassem à comunidade externa à universidade. Foi nessa ocasião que optamos por fazer um samba-enredo em homenagem a Lélia – dentre os vários projetos imaginados por nós (escrever uma cartilha explicando por que o Brasil é um país amefricano, organizar uma exposição de fotos com o tema “Amefricanidade no dia a dia”, organizar uma roda de conversa em escolas ou na Ocupação 9 de Julho, entre outros), o samba foi o projeto eleito! A iniciativa surgiu principalmente após entendermos que a turma se sentia fortemente contemplada pelo samba, de tal modo que nos nomeamos um Quilombo Filosófico. Além de termos um excelente intérprete de samba na turma, nossa escolha teve em mente que Lélia compreendia o samba como uma forma de resistência ativa e incisiva e como uma forte afirmação da identidade negra do Brasil. Assim, exploramos traduzir conceitos filosóficos em uma linguagem poética e musical, buscando demonstrar como o samba é capaz de carregar, em seus versos potentes, críticas sociais e epistemológicas. A homenagem expressa a relevância dessa intelectual negra brasileira e sua defesa da valorização dos saberes populares afro-latino-americanos.
Reivindicamos Lélia, quando ela diz que a rasteira já está dada: o Brasil é negro! Reivindicamos Beatriz Nascimento, quando diz, em ‘Ôrí’, que a dança é a forma da comunidade negra esquecer, no gesto, que é cativa; e que “poder”, é deixar algo para os que vem depois. Eis o que deixamos para os que vem depois: nossa homenagem a Lélia Gonzalez!
Samba-enredo, do Quilombo Filosófico e Grêmio recreativo Tessa Lacerda:
Pisa forte nesse chão
Meu quilombo vai cantar
Pretuguês é nossa língua
Não se pode mais negar
A força da Amefricanidade
Lélia Gonzalez
Nossa voz vai ecoar!
A dor virou tambor
Na encruzilhada de uma língua e de uma cor
E fez do pretuguês nosso clamor
Nosso clamor!
Falou de África com alma Ladina
E em todo continente a mesma ginga
E quem é ela?
E quem é ela?
Filósofa, Negra, uma mulher!
Ora yê yê ô
Ora yê yê ô
Hoje nós vamos cantar
Nosso quilombo filosofia
O seu ori vamos, saudar!
Ora yê yê ô
Ora yê yê ô
Hoje nós vamos cantar
Nosso quilombo filosofia
O seu ori vamos, saudar!
Da Améfrica mãe-preta
A negativa contra a denegação
Fez de uma rasteira, uma construção
Nasce a cultura brasileira
Não sou tua ilusão vulgar
Sou història negada
A mulher negra, querendo falar!
A mulher negra, querendo falar!
Pisa forte nesse chão
Meu quilombo vai cantar
Pretuguês é nossa língua
Não se pode mais negar
A força da Amefricanidade
Lélia Gonzalez
Nossa voz vai ecoar!