Reportagem: Lucas Veloso
Doutorado de professor da USP de Ribeirão Preto investigou as perspectivas de egressos do ensino médio público e do Senai

foto: Senai Bahia – divulgação
João* tinha um sonho: juntar dinheiro suficiente para trocar de tênis e, quem sabe, um dia comprar um videogame. Aos 17 anos, ele frequentava as aulas do ensino médio pela manhã e, à tarde, fazia um curso técnico no Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) de Poços de Caldas (MG). Entre a escola e o trabalho como jovem aprendiz em uma empresa local, seu dia começava cedo e terminava tarde, marcado por corridas de ônibus pela cidade.
O curso técnico, no entanto, não era só uma ponte para o consumo. Era também um espaço que o colocava em contato com ideias novas e, aos poucos, despertava nele um senso crítico sobre o trabalho, o consumo e a sociedade.
A trajetória de João é uma entre muitas histórias que ilustram a tese de doutorado de Cleiton Donizete Correa Tereza, intitulada Trabalho, educação e cultura pelos jovens batalhadores: das ideologias capitalistas às possibilidades de insurgência, defendida em 2022 na Universidade de São Paulo (USP). Tereza investigou como o ensino público e profissionalizante interagem com as condições concretas e aspirações de jovens da classe trabalhadora, conhecidos como “batalhadores brasileiros”.
A pesquisa, que incluiu entrevistas e questionários com egressos do ensino médio público e cursos do Senai, revela um cotidiano de contradições, marcado pela influência do neoliberalismo e, ao mesmo tempo, pela resistência e potencial emancipatório desses jovens.
Professor doutor no Departamento de Educação, Informação e Comunicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, Tereza é graduado em história pelo Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé (UNIFEG), em Minas Gerais, especializou-se em história contemporânea (Pontifícia Universidade Católica – PUC Minas) e em educação a distância (Universidade Federal Fluminense – UFF), obtendo mestrado e doutorado na USP em Ciências, com foco em educação, juventude e trabalho.
Com extensa experiência no ensino fundamental, médio e na coordenação de políticas educacionais, ele também atuou na formação de professores e foi presidente do CACS-Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) em Poços de Caldas. Autor do livro Educação é compromisso: reflexões sobre escola, juventudes e políticas públicas (Ed. Dialética), seu trabalho acadêmico e militante se concentra na defesa da educação pública, com ênfase em história oral, formação de professores, juventudes e questões étnico-raciais.
O horizonte do consumo e os espaços de crítica
A tese expõe como o consumo surge como o principal horizonte para os jovens batalhadores. “Essas famílias conseguem oferecer algum suporte, mas não podem comprar tudo que os filhos desejam”, explica Tereza. É nesse contexto que muitos buscam cursos profissionalizantes. “Eles querem um dinheiro para trocar de tênis, comprar roupas ou tirar a habilitação para dirigir. São desejos legítimos, mas moldados por uma lógica de consumo exacerbada”.
Apesar disso, o pesquisador identificou que, durante o processo de formação técnica, os jovens entram em contato com novos mundos que podem fomentar uma visão crítica. Um dos entrevistados, por exemplo, começou a trabalhar em um supermercado enquanto cursava um curso no Senai. Mais tarde, ingressou em uma universidade federal para cursar Química e passou a integrar movimentos estudantis críticos. Outra jovem mergulhou em debates sobre negritude e encontrou na religiosidade de matriz africana um espaço para questionar estruturas de opressão.
“Mesmo no ambiente do Senai, onde a lógica neoliberal é evidente, esses jovens acabam sendo atravessados por experiências que instigam reflexões e subversões”, analisa o pesquisador.
A escola pública entre resistência e precariedade
Na escola pública, por outro lado, Tereza encontrou um ambiente mais propício à formação integral. Ele observa que “a educação básica pública oferece atividades e projetos pedagógicos significativos, que contribuem para o refinamento crítico dos jovens”. No entanto, o pesquisador também aponta os desafios impostos por uma política educacional dominada pelo neoliberalismo.
“A Base Nacional Comum Curricular e o Novo Ensino Médio técnico-profissionalizante foram consolidados em um contexto de intervenção autoritária e instrumentalização do ensino, voltado mais para o mercado do que para uma formação humanista”, critica. Ainda assim, a tese demonstra que, mesmo nesses cenários, a qualidade do trabalho humano permite que professores e estudantes criem experiências transformadoras.
Tereza rejeita o rótulo de “nem-nem” — termo frequentemente associado à juventude que “nem estuda, nem trabalha” — para o grupo sobre o qual a pesquisa se debruçou. “Esses jovens não estão nem estudando nem trabalhando? É absurdo. Eles estudam, trabalham e ainda fazem o ‘corre’ para complementar a renda ou ajudar suas famílias”. O pesquisador critica a invisibilização de atividades não remuneradas, como o trabalho doméstico realizado por muitas jovens mulheres.
O que emerge das histórias coletadas é uma juventude que, mesmo diante de dificuldades estruturais, demonstra consciência crítica. “Durante as entrevistas, percebi como esses jovens possuem posições claras sobre questões raciais, sociais e políticas. Em alguns casos, eles até revisitaram discursos que reproduziam na adolescência, compreendendo que eram falas carregadas de preconceitos herdados”, comenta.
A tese também reflete sobre como os resultados da pesquisa podem influenciar políticas públicas. Tereza defende que o Brasil valorize as experiências já existentes na escola pública e em institutos federais, que integram ensino técnico e formação propedêutica (que prepara para a etapa seguinte, os cursos superiores). “As escolas públicas produzem muito, mesmo com recursos limitados. É necessário olhar para essas práticas com mais atenção”, sugere.
Por outro lado, ele critica iniciativas autoritárias, como as escolas cívico-militares e a privatização do ensino. “São soluções que desconsideram o potencial emancipatório da escola pública e reforçam as desigualdades”.
Ao final do trabalho, Tereza reforça que o trabalho humano é um campo de resistência. “Mesmo sob uma lógica neoliberal que tenta reduzir tudo ao mercado, o trabalho guarda um potencial criativo e transformador”. Ele conclui que a educação deve se comprometer com a emancipação da classe trabalhadora, oferecendo aos jovens batalhadores ferramentas para transformar suas vidas e a sociedade.
*Nome fictício para preservar a identidade do participante da pesquisa.
Esta reportagem é parte de uma série sobre pesquisas brasileiras com temáticas relacionadas à juventude, compiladas em uma ferramenta de busca própria do Ciência na Rua, que em breve estará disponível em nosso site.