jornalismo, ciência, juventude e humor
“Levo a responsabilidade de ser mais uma ponte para promover a cooperação sul-sul entre África, a América Latina e o Caribe”
Política científica

por | 17 dez 2021

Entrevista com Lidia Brito, diretora do Escritório Regional de Ciências da Unesco para a América Latina e o Caribe

Promover a ciência em uma região tão marcada pela desigualdade como a América Latina não é uma tarefa fácil. Em 1949, foi criado com esse objetivo o Escritório Regional de Ciências para a América Latina e o Caribe, com sede em Montevidéu, no Uruguai, primeiro Centro de Cooperação Científica da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Nos últimos sete anos, esteve à frente desse escritório a moçambicana Lidia Brito, 60 anos, nascida em Cabo Delgado, engenheira florestal de formação, mestra e doutora em ciências florestais pela Universidade Estadual do Colorado (EUA), com uma longa trajetória entre a academia e as políticas públicas: foi vice-reitora acadêmica da mais antiga universidade de Moçambique (cargo mais parecido com os de pró-reitor nas universidades brasileiras), assessora da prefeitura de Maputo para Planejamento Estratégico e Relações Internacionais e ministra do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia de Moçambique, antes de ser recrutada pela Unesco em 2009. Prestes a trocar o sul da América pelo sul da África, ela concedeu por e-mail ao Ciência na Rua a entrevista a seguir, que optamos por manter, em nome da fraternidade lusófona, com a sintaxe e a grafia próprias, em vez de adaptar para o português brasileiro.

Antes de entrarmos nos temas da Unesco na América Latina, eu gostaria de conhecer, e apresentar a meus leitores, um pouco mais da sua trajetória acadêmica e profissional. Por que a senhora quis estudar engenharia ambiental? Por que foi para os Estados Unidos na pós-graduação?

Eu tinha 13 anos quando Moçambique ficou independente de Portugal, em 1975, e por isso sou de uma geração de jovens moçambicanos que tiveram a sua educação muito orientada às necessidades do nosso país independente. Engenharia Florestal foi uma das prioridades definidas para Moçambique. Tenho o orgulho de fazer parte da primeira geração de engenheiros florestais moçambicanos. Eu optei pela área industrial da minha profissão porque gostei muito desta componente do meu curso. Especializei-me nos Estados Unidos em Tecnologia de Madeira, em particular nos temas de secagem de madeira e de indústria química da madeira. A opção pelos Estados Unidos resultou de uma oportunidade de bolsa através de um programa da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] e também por ter sido aceite na Colorado State University como estudante de mestrado. Fiz o meu doutoramento já trabalhando como investigadora na mesma universidade.

De regresso a Moçambique, reiniciei a minha carreira docente e de investigação, e também assumi o cargo de vice-reitora académica da Universidade Eduardo Mondlane em 1998, para liderar o processo de reforma curricular de toda a Universidade. Fui a primeira mulher a assumir esse cargo na maior universidade publica de Moçambique, e esse facto, em si, foi um fator de crescimento pessoal muito importante.

Trabalhar com políticas públicas já estava em seu horizonte durante a graduação ou a pós-graduação? Como a senhora entrou nessa área e como foi para a Unesco em 2009?

Todos os científicos e académicos têm sempre algum trabalho em politicas publicas, em particular se o país os envolve em processos de esse tipo. Eu tinha participado em algumas comissões de trabalho ligadas a politicas energéticas no país (uma das minhas áreas de trabalho estava ligada a produção sustentável de carvão vegetal) e também em algumas instâncias trabalhei em comissões ligadas ao ensino superior em Moçambique. Mas a verdade é que tudo mudou quando assumi a posição de vice-reitora académica da UEM, o que fez com que estivesse mais envolvida em temas de gestão académica. Com a minha posterior nomeação como ministra do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia de Mocambique, em 2000, tive não só que estabelecer um novo Ministério mas também desenvolver politicas publicas nas várias áreas do mandato de esse novo Ministério.

Foi um desafio imenso, uma jornada de aprendizagem única e um privilégio pois descobri que gostava de trabalhar em política pública, em particular nos temas de desenvolvimento sustentável, de educação superior e da ciência e da tecnologia.

Em 2005, quando terminei o meu mandato no Ministério, voltei a minha faculdade mas já tinha ficado o amor pelo trabalho em políticas públicas, por isso continuei muito envolvida na área em vários países africanos, em particular nas áreas de educação superior, TICs [tecnologias da informação e comunicação], ciência e tecnologia e gestão ambiental.

No período de 2000-2005, eu trabalhei muito com a Unesco, fazendo parte de várias comissões de alto-nível e, por isso, quando surgiu o convite para me postular para o posto de diretor de políticas científicas e desenvolvimento sustentável, não hesitei e assim comecei a minha carreira na Unesco.

Tenho muito orgulho de ter sido a primeira mulher a assumir um cargo de Diretora de Divisão no sector de Ciências Naturais, um sector que nos últimos anos tem sido liderado por mulheres, incluindo seu mais alto cargo. Menciono isto porque de alguma maneira sou parte de uma geração de mulheres profissionais que abriram caminho a níveis de liderança aonde mulheres nunca antes tinham estado. Uma mudança muito importante para as organizações e para as nossas sociedades.

Depois do escritório da Unesco em Paris, a senhora veio para Montevidéu. Que desafios específicos nossa região colocou para o seu trabalho?

O primeiro desafio foi fortalecer a Oficina Regional de Ciências para América Latina e o Caribe, a oficina mais antiga da Unesco na região agora com 73 anos de existência. Isso implicou recrutar profissionais para os postos vagos na Oficina, construir uma equipa de excelentes profissionais, comprometida, inovadora e capaz de abordar os desafios da região de maneira integrada, interdisciplinar e inclusiva.

Implicou também reativar e fazer crescer as nossas redes regionais dos vários programas da Unesco, das cátedras e Centros Categoria 2 [centros de apoio e pesquisa sobre patrimônio associados à Unesco], e fortalecer as alianças com sócios e parceiros em toda a região. Eu só conhecia o Brasil e a Costa Rica e por isso foi necessário também aprender e reconhecer toda a diversidade cultural, biológica e socioeconómica da região, o que trouxe muitas oportunidades de ação conjunta com os estados membros, com as suas organizações, com a sociedade civil e outros parceiros de cooperação.

Os desafios específicos da região estão centrados numa grande desigualdade entre e dentro dos países, que está relacionada com os níveis de violência. A região é considerada a mais violenta do mundo. Está também muito relacionada com a necessidade de utilizar a ciência, a tecnologia e a inovação para o desenvolvimento sustentável dos países, o que implica mudanças na matriz produtiva da região, na gestão sustentável dos recursos naturais num âmbito de uma emergência climática, para além da necessidade de apontar a sociedades mais democráticas e de conhecimento, que todos aspiramos construir.

Por isso os temas regionais que aborda a Oficina Regional podem ser descritos em três grandes eixos de trabalho: 1) garantir o acesso a ciência e a conhecimento, 2) desenvolver a resiliência socio-ambiental da região e 3) garantir governação democrática e acesso a justiça.

Estes eixos intersectoriais abrem oportunidades únicas para co-construir desenvolvimento, tomando em conta os cinco Ps da Agenda 2030 (Pessoas, Paz, Prosperidade, Planeta e Parcerias), através de politicas publicas e instituições que atuam em conjunto.

Quais foram as principais realizações desses sete anos em que a senhora esteve à frente do escritório de Montevidéu? E frustração, fica alguma?

Hoje temos uma Oficina Regional de Ciências capaz de intervir e responder aos desafios da região na área do nosso mandato e trabalhando com os países e suas organizações.

Aumentamos ao longo destes sete anos as nossas redes de Reservas de Biosfera MAB [Programa o Homem e a Biosfera, da Unesco], aumentamos a nossa rede de geoparques, os nossos comités nacionais dos programas intergovernamentais, a nossa rede de especialistas. Hoje temos também mais cátedras e mais Centros Categoria 2 da Unesco.

A pandemia de covid-19 aumentou os desafios da região, e nós tivemos que repensar a forma como implementamos os nossos programas, assim como desenvolver plataformas digitais em temas cruciais para a região. Como exemplos temos a Plataforma sobre câmbio climático, resiliência e riscos de desastres, a Plataforma sobre inteligência artificial e princípios éticos, uma plataforma para verificar a veracidade e fiabilidade dos dados (o nosso PortalCheck) e, não menos importante, a Plataforma Fórum CILAC, que hospeda o maior Fórum Científico da região. O Fórum CILAC [Fórum Aberto de Ciências da América Latina e do Caribe] teve já três edições (2016, 2018 e 2021), tendo sido o ultimo em modalidade virtual com mais de 7 000 participantes.

Desenvolvemos cada vez mais cursos em linha (Massive Open Online Course – MOOCs) em desigualdades e juventude, em cidadania global, em transformação digital, em temas ligados a gestão sustentável de recursos hídricos, em inteligência artificial, entre muitos outros temas.

As nossas campanhas regionais sobre a desinformação, sobre a contribuição cientifica para responder à covid-19 e sobre cidadania digital chegam a muitas audiências, em particular aos jovens.

O programa regional Estamos Comprometidos junta jovens empreendedores sociais de todos os países da região e vai crescendo em termos de impacto e relevância.

Poderia falar de muitos outros programas, mas refletindo sobre estes sete anos sinto que muito foi feito para posicionar melhor os programas da Unesco na região, o que originou mais alianças, mais sítios Unesco e mais pessoas envolvidas no que fazemos.

Temos parcerias mais fortes com a OEI [Organização dos Estados Ibero-Americanos], com a SEGIB [Segretaria-Geral Ibero-Americana], com o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento], com a CAF [Banco de Desenvolvimento da América Latina, antiga Corporação Andina de Fomento] e com muitos outros sócios importantes para o desenvolvimento sustentável da nossa região.

Há sempre frustração quando se trabalha, e sem dúvida teria gostado de deixar mais recursos humanos e financeiros na Oficina. Crescemos muito, mas os recursos continuam a não ser suficientes para tudo o que temos de fazer e apoiar para a sua realização.

Teria gostado de visitar cada um dos 33 países da região, só consegui visitar 20 países e tenho ainda muito para conhecer e aprender. Regresso ao meu continente com uma sensação de enorme gratidão por toda a generosidade dos povos e governos desta linda região. Aprendi muito como profissional e como pessoa.

O pensamento do Sul estará sempre comigo e sem duvida farei tudo para continuar a colaborar. Levo a responsabilidade de ser mais uma ponte para promover a cooperação sul-sul entre África, a América Latina e o Caribe.

É senso comum dizer (e constatável pela distribuição populacional concentrada no litoral ou próximo) que o Brasil historicamente dá as costas para a América Latina. Como alguém que passou os últimos anos pensando ciência na América Latina e no Caribe, a senhora observou um maior distanciamento do país em relação aos demais? Tem alguma outra observação sobre o papel do Brasil no desenvolvimento científico da região?

A verdade é que não, sempre trabalhei muito com o Brasil desde que era ministra em Moçambique, no meu trabalho na sede da Unesco e nestes últimos 7 anos na região. O Brasil tem muito para oferecer a esta região e ao mundo. Tem uma ciência de primeiro nível, tem infraestrutura, tem científicos altamente formados, tem uma cultura que busca soluções através da inovação, tem empresas que podem apropriar-se e desenvolver produtos de base científica e tecnológica. Por tudo isso, é um país que muito pode trazer a região através de cooperação científica e tecnológica.

A nossa experiência é que sempre podemos contar com o Brasil e com os brasileiros nos nossos programas regionais na América Latina e no Caribe.

Nós temos um escritório nacional da Unesco no Brasil, que é bastante forte, e temos também cátedras e centros categoria 2 da Unesco como o CETIC [Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação], que trabalham conosco de forma permanente em termos de apoio técnico aos países, da monitoria de indicadores e da capacitação de funcionários e de jovens.

Agradeço todo o apoio do governo brasileiro, das suas instituições nacionais e estaduais, das organizações da sociedade civil e das empresas que sempre respondem aos nossos chamados de cooperação.

Qual é seu próximo passo, após sair do escritório de Montevidéu? Já se sabe quem substituirá a senhora aqui?

Vou assumir o escritório regional da Unesco para África Austral localizado em Harare, Zimbabwé. É uma oportunidade de voltar ao meu continente e a minha região com experiências e aprendizagens que espero possam reforçar a cooperação sul-sul entre o continente africano, a América Latina e o Caribe. O Brasil tem muita cooperação com os países da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], e espero que essa cooperação se possa ampliar a outros países da África Austral.

Esperamos que a nomeação da nossa direção seja para breve, e a equipe de Montevidéu está pronta a continuar a trabalhar como sempre o tem feito.

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade