Jennifer Ann Thomas, Mongabay
Projeto da ditadura militar foi abandonado em 1988
Bastou que o governo federal manifestasse interesse em retomar as obras na BR-319 para que os sinais de desmatamento disparassem na região. Segundo artigo escrito por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Universidade do Kansas (EUA), os alertas de desmatamento na zona de influência direta da rodovia somaram 16,4 km2 entre julho e setembro de 2020 – um aumento de 25% em comparação com o mesmo período nos anos anteriores.
A BR-319, conhecida como a Rodovia Manaus-Porto Velho, foi construída entre 1968 e 1973 durante a ditadura militar e abandonada em 1988 – com o impacto de chuvas e sem a manutenção adequada, ela se tornou intrafegável ao longo do tempo. Com 885,9 quilômetros de extensão, a estrada é a única que poderia conectar por via terrestre a capital do Amazonas com as regiões Sul e Sudeste.
Dividida em lotes, cada pedaço da estrada tem uma regra diferente. As extremidades, chamadas de lotes A e B, equivalentes aos primeiros 198 quilômetros e aos 164 quilômetros finais, estão pavimentadas e não precisam de novos licenciamentos ambientais. A polêmica gira em torno do trecho do meio – 400 quilômetros não pavimentados – e o lote Charlie, ou C, de 52 quilômetros, que precisa ser repavimentado.
Com relação ao lote C, o governo federal publicou no Diário Oficial da União, em junho de 2020, o edital para a contratação da empresa que ficaria responsável pelas obras. O contrato com a empresa responsável pela obra foi assinado em dezembro, para depois ser suspenso em março deste ano em decorrência de ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF). Em abril, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) autorizou a reconstrução do lote C.
Para o MPF, é necessário elaborar um Estudo de Impacto Ambiental, o EIA/Rima, enquanto o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) entende que as obras são uma recuperação da estrada construída na década de 70 e portanto dispensam a necessidade do estudo.
Sob o pretexto da pandemia, o DNIT argumentou que “a inibição da realização das obras na rodovia causa grave lesão à ordem, à segurança e à economia públicas, pois se trata da única ligação rodoviária de Rondônia com os estados do Amazonas e de Roraima, e, consequentemente, com todo o restante do Brasil”, principalmente no contexto da covid-19.
No entanto, para o procurador da República Rafael Rocha, o argumento não poderia ser aplicado na situação em questão. “Quanto tempo levaria para a pavimentação? A situação que a região Norte viveu não teria sido solucionada por causa das obras na estrada”, disse.
Enquanto isso, em janeiro deste ano, o DNIT publicou edital de licitação para contratar a empresa responsável pelos estudos ambientais dos 400 quilômetros do trecho do meio, já com vistas à pavimentação. Especialistas temem que a retomada do projeto original da ditadura possa expandir o Arco do Desmatamento para o sul do Amazonas. Segundo os autores do estudo conduzido pelo Inpe, cerca de 90% da zona de influência direta da BR-319 é composta por vegetação intocada.
“A região é dominada por áreas de proteção ambiental e terras indígenas. Ela requer uma avaliação cuidadosa devido à importância do local para a Amazônia como um todo”, explicou Luiz Aragão, coautor do artigo e chefe da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Inpe.
8 bilhões de toneladas de CO2
Em novembro de 2020, pesquisadores do Centro de Sensoriamento Remoto e Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) publicaram uma nota técnica sobre o desmatamento que pode ser impulsionado pela pavimentação da BR-319. Os resultados foram usados como referência no estudo conduzido pelo Inpe.
Os pesquisadores compararam dois cenários. O primeiro, em que a estrada não é pavimentada, mantém as médias dos últimos cinco anos para o desmatamento. Já o segundo, que inclui as obras para consolidar a rodovia, prevê os impactos decorrentes de fluxos migratórios, expansão agrícola e ocupação de terras. De acordo com a nota técnica, “as taxas de desmatamento nessas condições são altas, atingindo 9,4 mil km2 por ano em 2050”.
Além disso, os pesquisadores da UFMG identificaram que, nesse ano, “o desmatamento acumulado alcançaria 170 mil km2, quatro vezes maior do que o projetado com a média histórica. As emissões acumuladas de CO2 também mais que quadruplicariam, alcançando 8 bilhões de toneladas, o equivalente à emissão de 22 anos de desmatamento na Amazônia com base na taxa de 2019”.
Para o coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da UFMG, Raoni Rajão, um dos pesquisadores envolvidos com a formulação da nota técnica, não há justificativa para a pavimentação da BR-319. “A obra não faz sentido do ponto de vista ambiental, econômico ou social. Ela é uma demanda política que abrirá o acesso a uma das principais áreas ainda não griladas no país”, afirmou.
Pela perspectiva da integração com as outras regiões do país, Rajão também não concorda com a pavimentação. “A Zona Franca de Manaus produz 80 bilhões de reais por ano, consumidos principalmente fora dela. Ela tem um meio de transporte específico, mas não quer dizer que esteja isolada”, afirmou.
Ao falar sobre um meio de transporte específico, Rajão se refere aos rios da região amazônica, a principal forma de locomoção entre os municípios. “Há diferentes tipos de condução fluviais que poderiam receber investimento, como escolas aquáticas e ‘ambulanchas’, para atender a população local”, afirmou.
Aragão, do Inpe, concorda com o raciocínio. “Existe uma via fluvial consolidada para o escoamento de produtos pelo Rio Madeira. Há que se pensar em qual seria o real ganho com o asfaltamento da rodovia, levando em consideração o custo com a manutenção dela”, disse. Rajão destaca que o trecho entre Porto Velho e Manaus tem quase mil quilômetros – a distância é similar à extensão entre São Paulo e Goiânia. “Manaus está distante do sudeste do Brasil não pela falta de asfalto, mas porque está em uma posição geográfica distante. O asfalto não vai encurtar a distância”, afirmou.