Evanildo da Silveira
Enquanto um grupo defende que o Zoneamento Socioeconômico e Ecológico do Estado trará ganhos ambientais e econômicos, outro alega que agropecuária mato-grossense será inviabilizada
Para cumprir o que foi estabelecido pelo Plano Nacional do Meio Ambiente (PNMA) (Lei Federal nº 938/81) e pelo Código Florestal (Lei Federal nº 12.651/2012), o governo de Mato Grosso elaborou em 2018 e colocou em consulta pública entre 18 de janeiro e 16 de março de 2021, uma proposta de Zoneamento Socioeconômico e Ecológico do Estado (ZSEE). Agora, o projeto está sob intensa discussão, contrapondo pesquisadores e ambientalistas ao setor do agronegócio com o governo no meio. Os primeiros dizem que o ZSEE vai trazer ganhos ambientais e para a própria economia do estado e os últimos alegam que irá inviabilizar a agropecuária mato-grossense. O governo, por sua vez, vai abrir nova consulta pública no segundo semestre.
Todos os estados terão que ter o seu ZSEE, que foi instituído como instrumento do PNMA de ordenamento territorial, que indica os melhores usos e ocupação do solo para atividade produtiva. De acordo com o Decreto Federal 4.297/2002, depois de criado, ele deve “ser obrigatoriamente seguido na implantação de planos, obras e atividades públicas e privadas, estabelecendo medidas e padrões de proteção ambiental destinados a assegurar a qualidade ambiental, dos recursos hídricos e do solo e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida da população.”
O centro da polêmica está em torno principalmente das áreas de inundação dos rios Araguaia e Guaporé, que totalizam quatro milhões de hectares em 17 municípios. São as chamadas áreas úmidas, também conhecida como Pantanal do Araguaia. “São terras planas e facilmente mecanizáveis”, diz o biólogo e doutor em Ecologia de Ecossistemas Aquáticos, Dilermando Pereira Lima Júnior, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). “A grande agricultura está avançando sobre essas planícies. Drenagens enormes estão sendo feitas, com áreas de milhares de hectares. Só que ninguém essa avaliando o efeito nos rios.”
De acordo com o engenheiro florestal e doutor em Ecologia Ben Hur Marimon Junior, do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), o Pantanal do Araguaia serve como berçário de muitas espécies de peixes e abriga um enorme estoque de carbono no seu solo orgânico. “É mais vantajoso proteger as principais áreas dele do que transformá-las em lavoura”, defende. “O estado de Mato Grosso, com uma adequada proteção destes ecossistemas inundáveis, pode capitalizar imensos estoques de carbono para o mercado global, preservar áreas com enorme potencial turístico e garantir ainda produção sustentável de peixes de alto valor econômico, como o pirarucu.”
O presidente em exercício da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato), Marcos da Rosa, pensa diferente. Para ele, o ZSEE é importante para os estados que estão iniciando o seu desenvolvimento. “Não é o caso de Mato Grosso, que atualmente possui um desenvolvimento socioeconômico e ecológico consolidados”, diz. “Além disso, com a aprovação do Código Florestal e as regulamentações de outros instrumentos ambientais no Estado, o ZSEE, no formato apresentado, perde o sentido. As regras impostas pelas legislações ambientais vigentes estão mais atualizadas com a realidade atual, trazendo harmonia entre desenvolvimento e meio ambiente.”
Segundo Rosa, a proposta apresentada pelo governo estadual contém informações defasadas. “O diagnóstico (levantamento de campo), que serve como base para ela começou em 1989 e somente em 2004 foi enviado para a Assembleia Legislativa para ser aprovado”, explica. “Em 2005, foi retirado para ser enviado para avaliação da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária].” A partir daí, diz ele, só foram feitas atualizações de informações econômicas e ambientais sem levantamento de campo. Sendo que a última atualização de informações teria sido realizada em 2015.
Por isso, ele afirma que a proposta do ZSEE apresentada não retrata o Estado. “Ao contrário, traz prejuízos econômicos e ambientais para Mato Grosso, pois prevê a criação de novas unidades de conservação sem levar em consideração a antropização do solo e o impacto social da região”, diz. “Também não prevê orçamento financeiro para desapropriação e manutenção dessas áreas.”
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Mato Grosso (Seplag-MT), responsável pela implantação do ZSEE, rebate Rosa. “A indicação do uso das áreas na proposta foi elaborada por meio de estudos técnicos e científicos”, diz. “Ela otimiza os investimentos do próprio capital produtivo, ao passo que aponta as terras mais produtivas no Estado e onde se encontram as com solos mais rasos, pedregosos, propensos a erosão. Dessa forma, quando a indicação aponta os melhores usos para cada atividade produtiva, ela acaba por proteger áreas potencialmente frágeis, onde a agropecuária não teria êxito.”
A Seplag garante que o governo do Estado não tem intenção de prejudicar nenhum segmento produtivo, “tanto é que, visando a transparência e a participação social no processo de elaboração da proposta, participaram por meio da Comissão Estadual do ZSEE vários representantes dos setores produtivos, ONGs, poder público federal e estadual, bem como dos municípios”.
Ainda de acordo com a Seplag, todo o estado tem a ganhar com o ZSEE, pois é um instrumento de ordenamento territorial, “que indica os melhores usos e ocupações do território, promovendo a preservação dos recursos naturais e o incentivo à produção com sustentabilidade do grande, médio e pequeno produtor rural, bem como a existência da agricultura familiar e a proteção das comunidades tradicionais”, além de mitigar “as desigualdades regionais, visto que direciona de forma mais assertiva as políticas públicas para todo o Estado, conforme suas potencialidades e fragilidades, tanto no âmbito social e econômico quanto no ambiental, provendo o desenvolvimento de todas as regiões mato-grossenses”.
Para Marimon Junior, se o ZSEE aumentar a proteção das áreas úmidas, como está previsto na proposta, haverá um ganho ambiental. De acordo com ele, muitas delas foram e ainda estão sendo convertidas em pastagens e lavouras pela drenagem. “São terras baratas que podem agregar muito valor quando drenadas ao se tornarem novas áreas de produção”, diz. “São, portanto, potencialmente excelentes ativos financeiros, beneficiando a economia de Mato Grosso. Em contrapartida, o estado tem um potencial muito maior de expansão agrícola para lavouras em terras de pastagens degradadas adotando tecnologias adequadas do que em áreas úmidas, que requerem drenagem.”
Ele cita como exemplo o sistema de integração lavoura-pecuária, uma tecnologia que, associada ao plantio direto e agricultura de precisão, pode, no mínimo, dobrar a produção de soja e gado sem a necessidade de derrubar uma árvore sequer, mantendo as áreas úmidas preservadas. “O ganho ambiental nesse caso se refere à proteção delas no Pantanal do Araguaia, um vasto ecossistema ainda desconhecido do grande público”, explica Marimon Junior. “Mato Grosso, na verdade, tem dois pantanais. O do Araguaia é considerado a maior área úmida contínua do Brasil, já que o seu ‘primo’ mais famoso, é uma área descontínua, com vários pantanais conectados.”
Além disso, diz ele, a preservação dessas áreas facilita as articulações no mercado global para a certificação ambiental dos produtos mato-grossenses, especialmente soja e carne para a exportação. “Os frigoríficos do estado já se alinham fortemente nessa direção, visando a melhoria da certificação da carne ‘made in MT’”, diz. “Dessa forma, grandes passivos ambientais deixam de ser criados e o estado passaria a ter mais ativos para nossas commodities agropecuárias. É necessário mostrar ao mundo que conseguimos conciliar preservação com produção agropecuária, garantindo a proteção da nossa biodiversidade, considerada um patrimônio importante pelo povo mato-grossense, principalmente para o turismo e pela preservação de nossa imagem no exterior.”
Lima Júnior, por sua vez, reconhece que a discussão em torno do ZSEE não é simples. Para ele, parte dos argumentos dos representantes do agronegócio são válidos. “Não dá para trabalhar com conservação da biodiversidade sem considerar a melhoria das condições de vida das pessoas da região, no caso, os produtores rurais”, diz. “Mas eles estão esquecendo de uma questão séria. A maior parte das áreas que estão sendo ocupadas para a expansão agrícola estão sendo drenadas. Isso é um crime ambiental. É preciso achar um meio termo, em que se consiga o desenvolvimento econômico local, também protegendo a biodiversidade e as áreas úmidas, que são de extrema relevância ecológica.”