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Mês das mulheres: Nathalia Silva Carneiro
Dia internacional da mulher

por | 10 mar 2021

Aluna de doutorado da USP, a cientista política articula Hannah Arendt e Frantz Fanon

Jovem pesquisadora, com o doutoramento ainda em curso, de imediato chama a atenção em Nathalia Silva Carneiro, 30 anos, os sinais de uma coragem intelectual invulgar misturada a certa maturidade pessoal que vêm lhe permitindo abordar o pensamento político de uma pensadora da dimensão extraordinária de Hannah Arendt (1906-1975) a partir de chaves como o colonialismo e o racismo, entre outras, que estão diretamente entre seus próprios incômodos existenciais.

Nathalia Carneiro fez isso no mestrado sob orientação de Patrício Tierno, defendido em 2019, na área de teoria política do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), que resultou na dissertação que leva o título “Hannah Arendt autora e paciente: uma revisão de A Condição Humana”. E faz isso agora, no doutorado no mesmo departamento, sob orientação de Jean Tible, quando, na busca por aprofundar o que emergira no mestrado, põe Arendt em diálogo com Frantz Fanon (1965-1961) e a Denise Ferreira da Silva, professora na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá.

Em termos mais fáceis, neste momento ela está fazendo conversar uma pensadora alemã de origem judaica, autora de obras portentosas como Origens do totalitarismo, A condição humana e Eichmann em Jerusalém – de caráter mais jornalístico, digamos assim –, com dois pensadores negros, Fanon, original das Antilhas francesas, falecido muito precocemente aos 36 anos, e a brasileira Denise Ferreira da Silva, radicais no melhor sentido.

“Hannah Arendt é uma pensadora fundamental para se entender como o mundo lidou com a crise ética do pós-guerra”, diz Nathalia. Assim, não dá para ser simplista e anacrônico ao trabalhar nela a questão do colonialismo, “não dá para dizer é racista e ponto”, e ignorar o esforço da época em “separar nazismo e colonização”, pondera. Ao começar o mestrado, ela conta, o que tinha claro era estudar a política em Hannah Arendt, valendo-se sobretudo de A condição humana.

No entanto, no decorrer do curso e da pesquisa, no mestrado, “o projeto foi se modificando. Enquanto mergulhava na teoria, fiz as contas de meus incômodos em relação à autora, ao racismo, por exemplo. Via muitas críticas, mas não abordavam as coisas que me concernem. Acabei partindo de sua crítica ao nazismo e do tratamento da colonização, para entrar no racismo, detendo-me na diferença que ela estabelece entre pessoas que têm mundo e as que não têm mundo, têm civilização ou não a têm”.

De uma certa maneira, o novo patamar de militância que Nathalia Carneiro estabeleceu quando, em 2017, participou da fundação do GIRA, Grupo Interdisciplinar de Raça e Política, no próprio Departamento de Ciência Política, alimentou suas indagações para a pesquisa do mestrado. Ali nascia um grupo de estudos, que ia se debruçar sobre questões epistêmicas, mas também organizador de intervenções que teriam efeitos sobre suas reflexões.
E de novo aqui há sinais de sua coragem intelectual, porque ela estava ajudando a dar corpo a esse grupo claramente comprometido com a diversidade, composto principalmente por pessoas negras, num departamento tipicamente dominado por homens brancos. “Fizemos eventos, assinalamos o quanto a questão epistêmica ganha com a diversidade de pessoas estudando certas coisas”, ela observa. O grupo congrega hoje pouco mais de uma dezena de pessoas ligadas às humanas e às artes, e agora já não somente da USP, nem só da pós-graduação. “Estamos ganhando força para pesquisar questões sobre as quais não se encontrava muita ressonância aqui, embora existisse em outros lugares”.

A essa altura, vale contar um pouco sobre os trajetos de Nathalia Carneiro antes que chegasse ao campo fecundo da produção científica. Carioca, caçula dos três filhos de Rosimari Silva Carneiro, 57 anos, dona de casa, e de Francisco de Assis Caneiro, 58 anos, advogado, ela nasceu no Méier e viveu até os 13 anos na zona oeste do Rio, em Realengo e arredores. O pai estudou direito em faculdade privada já casado e com os filhos, fortemente incentivado pela mãe. “Minha avó, Idevori da Silva Gomes, 83 anos, técnica de enfermagem, sempre teve esse traço de incentivar as pessoas a investir na educação, ensinava vizinhos a ler e escrever” e assim segue, conta. Na verdade, Nathalia e um irmão mais velho, foram os primeiros da família a cursar a universidade pública, ele no bacharelado de Ciência e Tecnologia na Federal do ABC (UFABC) e agora estudante de Letras. “Nós tivemos momentos de muita dificuldade”, ela diz, entendendo que a família estava muito longe de uma classe média tradicional.

Aos 13 anos, a família mudou-se para São Paulo, que depois temporariamente trocaria por Sorocaba, onde Nathalia cursou o ensino médio no Colégio Salesiano. “Eu gostava da escola, era boa aluna, mas sentia uma falta de identificação completa”, ela diz. Continuou indo com frequência ao Rio visitar a família grande e os amigos. Pensava então em fazer psicologia ou filosofia, mas de algum lugar lhe surgiu a possibilidade de cursar ciências sociais. E como não sabia, então, como tantos jovens ainda hoje no país, que existia carreira acadêmica, “imaginava que com ciências sociais poderia trabalhar no IBGE, por exemplo, enquanto não teria emprego se fizesse filosofia, por exemplo”.

Entre o ensino médio e a faculdade, num momento de menos aperto econômico da família, Nathalia fez um intercâmbio de um ano em Colônia, Alemanha – enquanto sua família recebia em Sorocaba um estudante vindo daquele país – e pôde estudar com empenho a língua alemã.

Já no primeiro ano da graduação, estudava e trabalhava. Muito, ela diz, como auxiliar de secretaria de escolinha. Teoria. “Eu precisava de uma bolsa para me dedicar mais à faculdade e no segundo ano entrei num projeto para pessoas que não tinham muita renda, de leitura e escrita acadêmica, coordenado pela professora Eunice Ostrensky”. E se tratava de estudar a sério tópicos de teoria política e, ao mesmo tempo, fazer monitoria com os alunos de primeiro ano. Em 2014, conseguiu uma bolsa de extensão para um estágio por sete meses na Universidade de Heidelberg – um ano antes descobrira Hannah Arendt, e a essa altura lia com fervor inúmeros textos. Isso lhe dava forças para vencer a inibição que a USP lhe fazia sentir no começo da graduação. “Eu queria fazer perguntas, propor questões, e o coração começava a bater acelerado”, ela lembra, expressando um sentimento e uma atitude relatado com certa frequência por estudantes, principalmente alunas. Mas isso passou.

Hoje, no doutorado, Nathalia busca compreender, com Denise Ferreira da Silva, entre outros autores, “como a filosofia moderna foi formada a partir da colonização, e como é como é possível conhecer hoje outras experiências de mundo, garantindo esse lugar de sujeito”, algo fundamental na história da filosofia para pensar a teoria política. Vai a Fanon, “um autor que abriu muitas questões superinteressantes e atuais, mas não teve tempo para fechá-las”, para capturar seu duplo movimento: “estava na luta anticolonial, e buscava entender as questões epistemológicas e metodológicas, sem o que não dá para entender inclusive a questão racial”.

O título provisório de seu projeto de tese é “Sobre a (não) crítica de Hannah Arendt a Frantz Fanon”. Adiante pode mudar, mas Nathalia quer investigar a fundo como a luta política, em articulação com questões teóricas, com a dimensão epistemológica, estruturam o mundo, impelem a imaginação transformadora. “E é ainda num mundo colonial que vivemos, com nossos corpos, territórios e instituições”, ela pensa. Nesse trajeto, talvez a presença de Hannah Arendt se reduza, e “a oposição mundo público/ mundo privado não baste para explicar o racismo nem essa sujeita feminina”. Sujeita como feminino de sujeito e como um sinônimo para sujeição.

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