Thais Cardoso, Jornal da USP
Declaração contra obrigatoriedade da vacinação foi incorporada por movimentos que difundem desinformação sobre saúde, mostra análise do grupo União Pró-Vacina
Uma declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre a obrigatoriedade das vacinas a uma apoiadora, divulgada no dia 31 de agosto, teve intensa repercussão em grupos antivacina brasileiros. É o que mostra uma recente análise da União Pró-Vacina, grupo formado por instituições ligadas à USP Ribeirão Preto que atua no combate à desinformação sobre vacinas.
Abordado por uma mulher que pedia a proibição da vacina contra a covid-19 pelo governo, Bolsonaro respondeu: “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. O que parecia apenas uma fala equivocada do presidente foi reforçada, no dia seguinte, em peças da Secretaria Especial de Comunicação da Presidência (Secom).
Repercussão
Nos principais grupos antivacina do Facebook no Brasil, a repercussão foi instantânea. A análise da União Pró-Vacina mostra que entre o dia 31 de agosto e as 23h59 do dia 2 de setembro 14 publicações já reverberavam a declaração e as peças de comunicação, totalizando 773 interações, sendo 426 reações, 264 comentários e 83 compartilhamentos.
Segundo os pesquisadores, neste momento em que as campanhas de desinformação contra as vacinas estão em franca produção, o posicionamento institucional da Presidência da República acaba sendo utilizado por grupos radicais que disseminam em larga escala desinformação sobre saúde nas plataformas digitais para potencializar ataques infundados às pesquisas das vacinas contra a covid-19 e contra outras doenças em geral.
Secom
A Secretaria Especial de Comunicação da Presidência reforçou o discurso de Bolsonaro. Um material publicitário com a fala do presidente foi veiculado no dia seguinte nas mídias sociais do governo e teve ampla repercussão. Até o fechamento deste texto (09/09/2020, às 18h40), no Twitter, por exemplo, foram mais de 10,6 mil compartilhamentos, 8,4 mil curtidas e 4,7 mil comentários. No Facebook, 5,7 mil compartilhamentos, 7,4 mil curtidas e 3,8 mil comentários.
A União Pró-Vacina chama atenção para o fato de que, se por um lado a Secom demonstra ter uma estrutura ágil para criar e disseminar peças que podem gerar desconfiança sobre as vacinas em um momento crucial, por outro, a página Ministério da Saúde – Vacinação no Facebook, dedicada exclusivamente à divulgação de informações sobre vacinas e que possui mais de 1,1 milhão de seguidores, não divulga uma peça de comunicação desde o dia 5 de junho.
Um contexto preocupante
O contexto da declaração do presidente não poderia ser pior. O País vive em meio a uma pandemia de uma doença grave que soma quase quatro milhões de casos e cerca de 123 mil mortes. Em todo o mundo, cientistas correm contra o tempo em busca de uma vacina contra a covid-19. Segundo a Organização Mundial da Saúde existem 165 em desenvolvimento e seis delas já na terceira fase de testes, que verifica a eficácia do imunizante.
Estudo recente realizado pela Avaaz aponta que o volume de desinformação sobre a covid-19 foi quatro vezes maior que o volume de informações verdadeiras. Outra pesquisa, realizada pela agência de verificação Lupa, demonstra que o Brasil é o segundo país do mundo que mais dissemina desinformação sobre covid-19. Por aqui, a União Pró-Vacina analisou a quantidade de conteúdo falso em grupos antivacina nas mídias sociais entre os meses de maio e julho e notou um aumento de 383%. Por trás desse triste pódio, está a atuação de grupos que consideram as vacinas como elementos centrais de diversas teorias da conspiração e de possíveis iniciativas secretas para frear o crescimento populacional.
Soma-se a todo esse contexto o julgamento, pelo Superior Tribunal Federal (STF), de um recurso extraordinário em que se discute a possibilidade de pais deixarem de vacinar seus filhos com base em “convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais”. O recurso está em análise e a decisão deve sair em breve.
Ou seja: ainda que as pesquisas obtenham uma solução contra a covid-19 em curto prazo, esse cenário de desinformação ampla somado a um posicionamento oficial que acaba reforçando a fala de grupos antivacina pode colocar em risco futuras campanhas de vacinação não apenas contra o novo coronavírus, mas até mesmo contra doenças que já estão controladas hoje graças às próprias vacinas.
A própria Organização Mundial da Saúde reconhece o risco que esses grupos representam para a saúde pública. Em audiência no Congresso Nacional sobre vacinas contra a covid-19, a médica e representante da OMS no Brasil Socorro Gross destacou que eles representam um desafio para vencer a pandemia. “Existem desafios importantes quando falamos de uma nova vacina. Existem desafios regulatórios, de planificação, de insumos, de aceitação da população. Especialmente quando temos grupos importantes antivacina e com fake news”, lembra ela.
Por que vacinar?
Em nota oficial divulgada no dia 2 de setembro, a Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm) reforçou a importância das vacinas como instrumento fundamental para a redução de mortalidade e o aumento da qualidade e da expectativa de vida em todo o mundo.
“A SBIm entende que é dever das autoridades públicas e dos profissionais da saúde conscientizar a população acerca da importância da vacinação, independentemente da obrigatoriedade, sob pena de vivermos retrocessos como a volta do sarampo devido às baixas coberturas vacinais. Entende também que é dever de cada pessoa buscar a vacinação com o objetivo não apenas da proteção individual, mas também coletiva”, diz a nota.
A presidente do Instituto Questão de Ciência, Natália Pasternak Taschner, destaca que a vacinação não pode ser uma escolha individual. Em artigo publicado em 2017 no Jornal da USP, ela explicou que algumas vacinas imunizam apenas a partir da terceira ou quarta dose, quando a criança já tem 5 ou 6 anos. Portanto, uma população vacinada protege bebês e crianças que ainda não estão completamente protegidos, além de pessoas imunocomprometidas, que não podem ser vacinadas.
“Se você escolhe não vacinar seu filho e, aos 6 anos, ele contrai uma doença, e por sua vez contamina o meu bebê de 6 meses que ainda não foi vacinado porque não tem idade, a sua escolha pessoal está afetando a minha família. E meu bebê pode morrer porque você não vacinou seus filhos e permitiu que eles tivessem contato com a minha família. Eu não compartilho da sua escolha, mas sou afetada por ela”, afirma Natália.
Meta de imunização não atingida
Pela primeira vez em quase 20 anos, o Brasil não atingiu a meta para nenhuma das vacinas indicadas para crianças de até um ano, segundo dados de 2019 do Programa Nacional de Imunizações. As coberturas vacinais têm sofrido uma queda nos últimos cinco anos, com uma redução, dependendo do imunizante, de até 27%. Para comentar sobre esse quadro preocupante, o Jornal da USP no Ar recebeu a professora Marta Heloísa Lopes, do Departamento de Moléstias Infecciosas, responsável pelo Centro de Imunizações do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
Ouça a íntegra da entrevista no player abaixo [áudio da Rádio USP].
A professora Marta Heloísa Lopes conta que essa queda, já observada há alguns anos, pode ser explicada por muitos fatores. O primeiro apontado por ela é a complexidade que a vacinação tem adquirido. Com o aumento no número de vacinas oferecidas na infância, é preciso certo conhecimento, segundo ela, para manusear a carteira de vacinação. “A carteira é tão complexa em informações que os responsáveis não percebem quando chega o momento de vacinar as crianças”, aponta.
Outro fator é o desabastecimento de vacinas. “No ano passado, tivemos por algum tempo o desabastecimento da vacina pentavalente, muito importante na infância. Quando o responsável chega a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e é informado que terá de voltar em um outro dia, a chance de não retornar é grande.” Isso porque, segundo Marta, podem não ter tempo ou recursos financeiros para outro deslocamento até a UBS. Outra questão apontada por ela é a dificuldade em atualizar os bancos de dados, onde todas as vacinas distribuídas precisam ser registradas.
Sobre o movimento antivacina, a professora acredita não ser tão forte no País, porém há muita hesitação por parte dos pais. “Infelizmente, cada vez mais, existem mais e mais notícias que levantam dúvidas a respeito das vacinas”, explica. Soma-se a esse quadro a pandemia e o isolamento social. “A mensagem, pelo menos nos primeiros meses, era bem clara: ‘fique em casa’. Bem, se eu fico em casa, não vou à UBS. Então nem sempre é fácil coordenar essas situações”, conta Marta.
Ela reforça o fato de a vacinação ser um ato individual que tem, porém, um benefício coletivo. “Quanto mais pessoas vacinadas, menos o agente etiológico vai se disseminar na população. Se estou doente e as pessoas ao meu redor estão vacinadas, não consigo transmitir o agente etiológico para elas”, diz. Segundo ela, o calendário completo considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de crianças a adultos, contém cerca de 19 vacinas. “A meta seria ter a cobertura de todas. Adianta termos 19 vacinas mas sem cobertura ideal?”, questiona.
Uma das perspectivas que o Ministério da Saúde está propondo é uma campanha de multivacinação para outubro, a fim de tentar reverter a situação e atualizar as carteiras. Mas, para a imunologista, o fundamental no momento é a comunicação. “Precisamos restabelecer a confiança da população no Programa Nacional de Imunizações, um programa muito amplo, que já foi exemplo no mundo inteiro”, completa.
Você sabe como é feita uma vacina? Descubra neste vídeo produzido pela Editoria de Ciências do Jornal da USP sobre a produção da vacina contra a dengue:
Ouça , no link abaixo, o podcast Ciência USP: