Antônio Carlos Quinto, Jornal da USP
Historiadora analisou como as fotos em publicações de imprensa e revistas influenciaram na construção da figura dos craques no futebol
Em nosso esporte mais popular, ser uma “celebridade” não é um fenômeno dos dias atuais. Na primeira metade do século 20, a imagem dos jogadores de futebol já era explorada pela imprensa no sentido de torná-los famosos. Em um estudo realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a historiadora Diana Mendes traz uma análise da produção fotográfica de dois atletas: Leônidas da Silva e Marcos Carneiro de Mendonça. A tese de doutorado avaliou o período entre os anos 1910 e 1942 e buscou compreender como as fotos ajudaram a construir as “celebridades” da época.
A pesquisa Futebol e Cultura Visual: a construção da figura do craque de futebol. Marcos Carneiro de Mendonça e Leônidas da Silva (1910-1942) teve a orientação do professor Maurício Cardoso e foi defendida em 2019, após cinco anos de pesquisas em acervos fotográficos de futebol do Brasil e do exterior, e de entrevistas a familiares dos dois jogadores e especialistas do esporte.
“Leônidas da Silva é considerado o primeiro ‘craque’ do futebol e é, sem dúvida, o primeiro jogador negro a ter sua imagem muito bem explorada pela imprensa da época”, afirma a historiadora. Antes dele, como conta Diana, outro jogador, Fausto dos Santos, foi considerado um dos melhores do Brasil, tanto que atuou em equipes do exterior e com destacada participação no mundial do Uruguai em 1930. Lá pelos idos de 1936, segundo a historiadora, quando Leônidas estava no auge de sua carreira, Fausto estava parando de jogar.
Mas a comparação entre os personagens centrais de sua pesquisa, Leônidas e Marcos, permitiu à pesquisadora descobrir por que motivos o primeiro pode ser considerado o primeiro “craque” do futebol brasileiro. Aliás, Diana descreve de onde vem a expressão: “A palavra vem do inglês, crack, que significa quebra ou rachadura. Assim, o termo ‘craque’ era usado em quase todos os esportes, até mais populares que o futebol na época, como o turfe e o remo”, descreve. “Mas foi no futebol que o termo ganhou força e ficou em definitivo”, diz a historiadora.
Elite e família
Marcos Carneiro de Mendonça era um atleta branco, oriundo da classe alta da época e foi goleiro do então Fluminense Football Club, entre 1910 e 1922. “O futebol ainda era amador, mas Marcos era considerado um ícone e tinha sua imagem explorada. Mas as fotos eram todas posadas”, explica Diana. Imagens do goleiro circulavam em periódicos esportivos e de variedades da época, como a Revista da Semana, Careta ou A Cigarra. E também em álbuns de famílias e nos clubes. Mas, em geral, como ressalta Diana, eram fotos em que os jogadores apareciam em retrato posado, com suas roupas extremamente cuidadas. “Uma das marcas de Marcos Carneiro era uma fita roxa que amarrava o seu calção”, destaca a pesquisadora.
Já Leônidas foi beneficiado pela “especialização” dos fotógrafos que ganharam técnica e puderam passar a fotografar mais os lances acontecidos no campo. Ao contrário de Marcos, Leônidas era oriundo das classes populares e atuou desde o início da profissionalização do futebol no Brasil, entre 1930 e 1950. E por suas atuações no Clube de Regatas do Flamengo, São Paulo Futebol Clube e Seleção Brasileira foi então considerado o primeiro “craque” do País.
Assim, as imagens de Leônidas circulavam em revistas como O Cruzeiro e o Globo Sportivo, e em diários como o Jornal dos Sports, e A Gazeta Esportiva, de São Paulo. Uma dessas fotos eternizou um lance de um jogo que tornou Leônidas famoso em praticamente todo o mundo: a bicicleta. “Ele nunca admitiu ter sido o inventor da jogada, como cita Diana, e isso de certa forma o favoreceu”, acredita.
A primeira celebridade
Além dos lances no campo de jogo, Leônidas também passou a despertar o interesse da “mídia” da época por suas ações fora de campo. Boêmio assumido e conhecido como rebelde, o jogador passou a ser fotografado em outros momentos de sua vida o que alavancou sua imagem e o tornou uma “celebridade”.
Segundo Diana, esse fenômeno ajudou, inclusive, a que a população melhor entendesse o futebol. Antes praticado quase que exclusivamente pelas elites, o esporte ganhara então aquela “celebridade” negra com origem nas classes populares. “Na época de Marcos, o futebol quase que exclusivo da elite concorria com outros esportes, como o ciclismo, o remo e o turfe”, cita Diana. Enfim, o que pode ser considerado o “primeiro protagonista negro” do futebol foi favorecido por uma série de fatores que o transformaram em um eficiente “garoto propaganda”.
Depois de sua excelente atuação na Copa de 1930, a empresa Lacta batizou um de seus produtos, um chocolate, de Diamante Negro. “E não parou por aí! Ele fez comerciais de carros e relógios”, conta a historiadora.
Veja no vídeo abaixo, produzido pela Revista Pelota, um resumo da pesquisa, com narração da historiadora Diana Mendes
Lugar de negro?
Para a historiadora, ao destacar e tornar celebridade a figura de Leônidas da Silva, a sociedade brasileira, que ainda convivia com os desdobramentos da escravidão. Ao destacar e tornar celebridade a figura de Leônidas, a sociedade brasileira abriu um pequeno espaço para outra forma de visibilidade do negro: o futebol. Para uma sociedade totalmente estruturada em cima do trabalho escravo, tornar positiva a imagem de um homem negro foi uma importante transformação. “Posteriormente, a mesma imagem foi mobilizada para criar a ideia de que o lugar do negro estaria associado somente ao universo do entretenimento”, constata a historiadora.
Dois antigos craques do futebol e a construção visual de suas figuras [áudio da Rádio USP]
Pesquisa realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou o futebol e a sua cultura visual. Dois jogadores foram o tema central de seu estudo: Marcos Carneiro de Mendonça e Leônidas da Silva, os mais fotografados entre 1910 e 1942
Mais informações: e-mail dmendesmachadodasilva@yahoo.com.br