Entre fortes críticas, cientistas fazem recomendações ao governo para controlar a pandemia
Numa espécie de anamnese contundente e muito bem fundamentada em cerca de três centenas de atos normativos do executivo federal e do próprio presidente da República, o boletim número 20 da Rede de Pesquisa Solidária, formada por aproximadamente 70 cientistas de todo o país, procura responder por que, afinal, chegamos em 8 de agosto à trágica marca das 100 mil mortes por covid-19, num período de cinco meses, e continuamos a ampliá-la. Nesta quarta-feira, 19, o país ultrapassou as 110 mil vidas perdidas em decorrência da doença e, entre os dias 2 e 8 de agosto, assumiu a liderança mundial no número de novas mortes por milhão de habitantes, à frente até mesmo dos Estados Unidos.
Até 8 de agosto, o país registrou 468 óbitos acumulados por milhão de habitantes, um pouco abaixo do que se deu nos EUA, com 487 óbitos por milhão. Mas observado o registro de novos óbitos por milhão de habitantes entre 2 e 8 de agosto, o Brasil, com 33 novos óbitos por milhão, enquanto os Estados Unidos marcaram 24 novos óbitos, passou ao primeiro lugar neste índice desalentador.
O documento publicado em 14 de agosto (disponível na íntegra aqui) considera, na altura da página 14, num total de 16, que ainda é tempo de frear a marcha da tragédia com novas e consistentes medidas de saúde pública. Essa visão, no entanto, soa mais como exercício desesperado de esperança e convencimento do que como previsão cientificamente embasada, uma vez que a implementação das medidas exigiria, na verdade, que o governo de Jair Bolsonaro deixasse de ser temporariamente o que de fato é.
“Ainda é tempo para controlar a pandemia e evitar mortes desnecessárias”, diz o intertítulo com destaque no alto da página, para observar imediatamente que “o primeiro passo, ainda que difícil, é reposicionar o governo federal de modo a assumir efetivamente a coordenação dos esforços para combater a pandemia”. Assim, o país “ganharia em coesão, a qualidade da informação aumentaria, a precisão das orientações facilitaria a conscientização e até mesmo o custo financeiro tenderia a diminuir”, segue a nota técnica, antes de listar nove medidas essenciais para o almejado controle (ver no final deste texto).
Mais realista na abordagem da situação em que o país efetivamente se encontra, o documento a resume nas primeiras linhas nos seguintes termos: “Sem estratégia, o governo federal estimula a fragmentação do país e deixa de coordenar a resistência à covid-19. A desmobilização do Ministério da Saúde, a desorganização das políticas de testagem e de distanciamento social realçam o fracasso do governo diante da pandemia e a triste liderança assumida pelo Brasil em número de novos óbitos-por-milhão de habitantes, ultrapassando os Estados Unidos”.
Coordenado por Tatiane Moraes de Sousa, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Lorena Barberia, da Universidade de São Paulo (USP), e elaborado com a participação de outros 26 pesquisadores, a maior parte da USP, mas incluindo profissionais também da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Fundação Getúlio Vargas (FGV), Centro de Estudos da Metrópole (CEM), Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e universidades federais de Brasília (UnB) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), o documento compara as opções de política pública adotadas pelo Brasil, no âmbito federal, com as de outros países que são também federações, como Alemanha, Argentina e Estados Unidos. Isso é feito à luz das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e vai tornando muito claro o quanto o governo brasileiro construiu, passo a passo, a expansão desmedida da tragédia que tinha vias claras para seu controle e delimitação.
Um país na contramão
Todos os atos oficiais do executivo federal e, em particular, as 267 normativas do Ministério da Saúde emitidas desde março até 8 de agosto, foram examinados pelos pesquisadores, que identificam uma reorientação importante da política, em mau sentido, já na segunda quinzena de março. “No dia 20 de março, o presidente Jair Bolsonaro promulgou a Medida Provisória n° 926 e alterou o texto da lei 13.979 determinando que as medidas seriam geridas no nível subnacional, o que enfraqueceu as portarias anteriores emitidas pelo Ministério da Saúde”. Entre essas portarias estava a do dia 12, que estabelecera as medidas de isolamento dos casos suspeitos, um dia apenas depois de a OMS confirmar que estava em curso uma pandemia e quando o Brasil registrava apenas 53 casos confirmados.
“A decisão de descentralizar as estratégias de enfrentamento da pandemia no Brasil contrasta com a decisão da maioria dos países aqui analisados. Salvo no caso de Estados Unidos, as outras federações se destacam pela coordenação das respostas por meio de suas lideranças nacionais, motivadas pela necessidade de coesão nas respostas como forma de convencer a população a atuar em conjunto contra a pandemia”, diz o documento.
Um passo amplamente identificado para a construção de mais uma absurda tragédia brasileira está nas decisões governamentais quanto aos testes que, em princípio, deveriam ter sido aplicados em massa para controlar o espalhamento do vírus.
No início da pandemia, observam os cientistas, “a capacidade de testagem de covid-19 no Brasil foi limitada e esteve concentrada em São Paulo e nos laboratórios da Fiocruz”. Em março, sua capacidade era de processar apenas 400 testes por dia, enquanto o laboratório privado do Hospital Albert Einstein, sozinho, processava 300 deles. “Para uma rápida comparação, neste mesmo período, os EUA realizavam em média cerca de 80 mil testes diários e a Alemanha mais de 50 mil”.
Os dados disponíveis na plataforma “Painel de Testes” do Ministério da Saúde, segundo o boletim número 20 da Rede de Pesquisa Solidária, indicavam até 7 de agosto que o governo federal disponibilizara 13,2 milhões de testes para todo o país, dos quais, 5,3 milhões ou cerca de 40% foram do tipo RT-PCR, considerado padrão de excelência para diagnóstico da covid-19, e perto de 7,9 milhões de testes sorológicos rápidos. “Embora não tenha sido identificado nenhum plano de ação relativo a testagem de covid-19, (…) é possível afirmar que o governo Federal privilegiou a realização de testes rápidos”.
As críticas se desdobram no quesito que aborda a efetiva ausência de uma política nacional de saúde pública, situação profundamente distinta daquela em que o país se encontrava quando encarou as pandemias de Aids, H1N1 e Sars – o que lhe rendeu crédito internacional. Embora disponha de uma rede de assistência de atenção primária estruturada com cerca de 280 mil agentes comunitários de saúde, já capacitados antes da pandemia, a primeira proposta de utilização da atenção primária no controle da pandemia, lembram os pesquisadores, só se deu em junho, com a criação dos Centros Comunitários de Referência e Atendimento para Enfrentamento à covid-19. já mencionados. Mas, “as portarias emitidas no mês de junho destacam que os municípios que aderirem à criação destes centros não mais receberão dos recursos de combate à pandemia direcionados às unidades básicas de saúde.”
O documento conclui nesse aspecto que “as falhas imensas no tratamento da crise na Saúde, com especial destaque para os desencontros na testagem em massa, no distanciamento físico e na identificação dos infectados ou suspeitos, foram acompanhadas de uma série de medidas na economia, no apoio às empresas, na defesa do emprego e em auxílios emergenciais. Medidas que exigiram um esforço fiscal imenso de uma economia que já mostrava um baixo desempenho e com pouca energia para superar a recessão iniciada em 2014.”
Os dados e as tabelas são abundantes nesse trabalho da Rede Solidária, de modo a não deixar dúvidas quanto à sua afirmação de que “o governo Federal atuou para enfraquecer as medidas de distanciamento social dos estados e municípios”, e ainda, que se valeu da “descoordenação como opção política”.
“A atuação do executivo Federal durante a pandemia teve um caráter desorganizador e predatório das medidas contra a covid-19. A trajetória do governo pautou-se pela ausência de legislação sobre temas fundamentais, por um comportamento adversativo em relação aos governadores e pela banalização da defesa da população. Colocou a economia contra a Saúde. Ignorou que a prioridade é a defesa da vida e que a economia seria e será mais poupada quanto mais rapidamente a pandemia for controlada”, afirma.
Adiante, observa que “a fala do presidente, do ministro da Economia e dos responsáveis pela Saúde expressam de modo inequívoco o distanciamento em relação à OMS desde o início da pandemia”. Constituem base para essa afirmação as “113 citações que a Rede retirou dos principais veículos da imprensa nacional”, das quais, 88 do presidente da República, 13 do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, duas do ex-ministro Nelson Teich, cinco do interino Eduardo Pazuello, e cinco do responsável pela economia, ministro Paulo Guedes.
Recomendações, apesar de tudo
Eis as recomendações que a Rede de Pesquisa Solidária tem a fazer, neste momento, ao governo brasileiro:
• Massificar efetivamente os testes, ainda mais diante de do debate sobre a volta às aulas.
• Aumentar os recursos alocados pelo governo Federal para a disponibilidade e realização de testes RT-PCR, especialmente em estados com carência de estrutura e equipamentos necessários para realização deste tipo de testagem.
• Investir em estratégias de vigilância, como o rastreamento, a identificação e o isolamento de contatos e de pessoas infectadas. Os agentes comunitários de saúde são excelente ponto de apoio para ações dessa natureza.
• Deflagrar campanhas de esclarecimento e conscientização sobre a necessidade das medidas de proteção, como o uso das máscaras e o distanciamento físico.
• Interromper declarações de autoridades que minimizam a COVID-19 e tentam, artificialmente, induzir a população que o pior já passou. A sensação falsa de que o país vive um momento de declínio da epidemia encobre a realidade dos números, que apontam um aumento dos óbitos com a manutenção do nível de isolamento atual, que oscila entre 40% a 50%.
• Alterar a legislação para adequar a lista de serviços essenciais e a obrigatoriedade do uso de máscaras como forma de sintonizar o país com as diretrizes da OMS e da Organização Pan-Americana de Saúde.
• Abrir diálogo com a comunidade de pesquisadores e entidades da sociedade civil sobre as formas de monitoramento da pandemia em populações vulneráveis, como as comunidades indígenas e a população existente no sistema carcerário. Medidas especiais são necessárias para diminuir a exposição ao vírus, assegurar a testagem, o isolamento e o tratamento de casos suspeitos e confirmados.
• Atenção especial deve ser dispensada aos povos indígenas, que vivem a tragédia da contaminação via o aumento da invasão de suas terras por madeireiros, mineradores e grileiros. A negligência do governo é tão grande que a COVID-19 chegou às suas comunidades até mesmo por meio de agentes de saúde infectados. A situação crítica exige medidas de urgência para se evitar o extermínio pelo descaso.
• Dar transparência e divulgar para a sociedade dados sobre a evolução da pandemia em tempo real incluindo a incidência da média móvel de novos casos diários identificados por testes RT-PCR e sorológico separadamente.