Raquel Saraiva, Rede CoVida
“Essa pandemia não é democrática, não é igualitária e nós não somos igualmente vulneráveis”. A ideia amplamente divulgada de que a pandemia atinge a todos os indivíduos sem distinção foi refutada pela pesquisadora Estela Aquino no webinário “Covid-19 e aprofundamento da desigualdade de gênero”, realizado na última quinta-feira (11). Junto a outras três especialistas, a pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Ufba e da Rede CoVida debateu por que as mulheres que têm sofrido os maiores impactos da Covid-19 no Brasil.
Entre março e abril de 2020, quando começaram a ser decretadas as medidas de distanciamento social, houve um aumento de 22,2% em casos de feminicídio em 12 estados brasileiros, comparando-se com o mesmo período de 2019. “O espaço doméstico sempre foi, e continua sendo, um lugar de desigualdade, e muitas vezes um lugar de violência”, explicou a antropóloga Heloísa Buarque de Almeida, da Universidade de São Paulo (USP). “A violência doméstica aumenta a partir do momento que os homens se sentem mais vulneráveis”.
“Quando falamos em mulheres, nos referimos a uma população particularmente sujeita a violências, desde microviolências diárias até o feminicídio”, destacou Tessa Lacerda, filósofa e professora da USP. As pesquisadoras concordaram que a pandemia deu mais visibilidade às desigualdades sociais pré-existentes, não só de gênero. As assimetrias refletem também o modo como a Covid-19 se instalou e está se espalhando pelo país, completou Estela Aquino. “Não é à toa que as primeiras mortes no país foram de uma mulher trabalhadora doméstica e de um homem que exercia a função de porteiro”.
Citando Judith Butler, Tessa Moura alertou que não só as mulheres têm as chamadas vidas precárias, as “vidas que são mais difíceis de serem vividas”. No Brasil, ela destacou a população preta, os indígenas e a população periférica como as mais coagidas por violência de Estado. Embora um novo estudo sobre coronavírus seja publicado a cada três horas, os artigos não discutem com ênfase os marcadores sociais. “Para as respostas serem mais efetivas a gente precisa desses marcadores sociais, não só para identificar grupos mais vulneráveis mas para entender a própria dinâmica da pandemia”, criticou Estela Aquino.
A morte do menino Miguel, de cinco anos, ocorrida em Recife (PE) no último dia 03, expõe como as condições de precariedade são distintas entre as mulheres.“Esse caso traz um emblema do que é a sociedade brasileira e como as desigualdades se refletem nessa dinâmica”, disse Estela. Mirtes Renata Souza, a empregada doméstica negra, não tinha com quem deixar o filho. Sua patroa, a primeira-dama Sarí Côrte, branca e rica, estava fazendo as unhas e prometeu olhar a criança enquanto Mirtes passeava com os cachorros da casa. O menino morreu por negligência da patroa de sua mãe.
“O que estamos vendo no Brasil hoje é de fato um genocídio. A população é conduzida para a morte por um governo que nega os riscos diante de uma pandemia mundial”. A ideia neoliberal de que as pessoas são autosuficientes também foi destacada por Tessa Moura como um dos marcos que explicam o atual cenário. “É uma condição que vivemos de maneira aguda no Brasil hoje. Não há mais qualquer direito garantido pelo Estado”.
Violências
A desigualdade de gênero é “longamente estrutural” no nosso país, enfatizou a jornalista Mariluce Moura, mentora e coordenadora do Ciência na Rua e colaboradora da Rede CoVida. “A resistência do sexismo, do patriarcalismo, e do machismo na sociedade é muito profundamente introjetado nas formas sociais do viver contemporâneo”.
Por isso, além da violência doméstica, as mulheres que estão trabalhando de casa sofrem com a sobrecarga de trabalho. Muitas se viram obrigadas a assumir sozinhas as tarefas de cuidar da família e da casa, tarefas associadas ao feminino. “Falar de gênero é falar dessas classificações de masculino e feminino que ordenam a nossa vida. Esse modo de pensar afeta nosso cotidiano”, disse Heloísa de Almeida.
Em contrapartida, é esperado e exigido dos homens que as demandas de trabalho prevaleçam sobre as demandas familiares. “As normas sociais impõe para as mulheres uma escolha que não é dada para os homens”, resumiu Estela Aquino.
Mesmo entre trabalhadores que continuam seu exercício fora de casa, os maiores riscos de adoecer e morrer por Covid-19 também são enfrentados por elas, destacaram as pesquisadoras. “Elas são as responsáveis pelo cuidado, inclusive o cuidado dos doentes – o que, no caso da pandemia, aparece no âmbito doméstico e no atendimento hospitalar”, disse Heloísa de Almeida. Como foi mostrado no Boletim CoVida #5, as mulheres negras são maioria entre enfermeiras e técnicas de enfermagem, a principal frente de trabalho nos cuidados diretos a pacientes com a doença.
Outros tipos de violência ainda devem emergir, como aumento dos casos de gravidez entre jovens e abusos contra crianças e adolescentes, que ocorrem majoritariamente dentro de casa. É o que mostram estudos sobre a epidemia do ebola na África Ocidental, comparou a antropóloga. “Isso ainda não apareceu porque as denúncias muitas vezes são feitas na escola, e as crianças não estão na escola”.
Outras violências sofridas pelas mulheres na pandemia são a busca por abortos inseguros, aumento das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), gravidezes não-desejadas e elevação do número de mortes maternas e infantis. Esses problemas foram discutidos no estudo “Saúde e Direitos Reprodutivos no Cenário da Covid-19”, publicado na última segunda-feira (15) no site da Rede CoVida.
Luta
Segundo a filósofa Tessa Moura Lacerda, a sujeição das mulheres é resultado da construção social secular de uma supremacia masculina sobre as mulheres, que não são vistas como cidadãs ativas. “Está muito profundamente arraigado na cultura ocidental essa sujeição das mulheres à condição mais vulnerável e precária. É uma cultura que precisa ser alterada. Isso demanda muito trabalho, trabalho constante”, explicou.
Mesmo as chefes de família, independentes economicamente e responsáveis pelo sustento da casa, são subjugadas, destacou a jornalista Mariluce Moura. “O trabalho nem sempre nos empodera, ele pode ser mais um lugar de opressão”, acrescentou Heloísa de Almeida, argumentando que a literatura mostra que o aumento da conquista de postos de trabalho por mulheres de classe média foi acompanhado de um aumento na violência doméstica.
Em meio a esse quadro de violência contra as mulheres e pandemia de Covid-19, Mariluce Moura classificou como muito difícil ver o modelo de “macho brutal, agressivo e violento” representado na figura do atual presidente da república. “O reforço permanente e diário desse modelo não massacra toda a ideia de igualdade de gênero, sendo que este modelo tem uma fidelidade de mais ou menos 28% da sociedade brasileira?”, perguntou às debatedoras.
“É muito assustador o lugar de poder dado a uma pessoa que expressa seu machismo, seu racismo e sua homofobia”, disse Heloísa. Nos últimos 30 anos, as questões de gênero estimularam no país uma série de lutas por direitos e por visibilidade. As pesquisadoras concordaram que as conquistas obtidas até o final de 2018 estimularam esses movimentos de reação conservadora. “Isso ofendeu os brios desses machos brutos, violentos e agressivos. Tenho grande esperança de que os jovens não vão permitir que se volte atrás no ganho de certos direitos” disse Tessa, referindo-se às leis Maria da Penha, do Feminicídio e do Casamento Homoafetivo.
“A gente está lidando com questões que estão no plano do simbólico, do cultural e do econômico também. Tornando visível e com muita luta política é que a gente muda”, acrescentou Estela. “Essa iniciativa da Rede CoVida nos permite ressignificar um momento tão sofrido para todos nós, e conferir uma possibilidade de uso social do conhecimento”.
O vídeo completo do debate pode ser visto aqui.