The Lancet
Tradução de Mariluce Moura
A pandemia da covid-19 alcançou a América Latina mais tarde do que outros continentes. O primeiro caso da doença foi registrado no Brasil em 25 de fevereiro de 2020, mas o país tem agora o maior número de infecções e mortes na América Latina (105. 222 infecções e 7.288 mortes em 4 de maio) e é provável que esses números estejam substancialmente subestimados. Mais preocupante ainda, estima-se que a taxa de mortes dobra a apenas cada 5 dias, e um estudo recente do Imperial College (Londres, Reino Unido), que analisou a taxa de transmissão ativa da covid-19 em 48 países, mostrou que o Brasil é o país que apresenta a maior taxa entre todos (R0 de 2 • 81). Grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, são nesse momento os principais polos da epidemia, mas há preocupações e sinais precoces de que ela está se movendo, interior adentro, para cidades menores, com inadequada disponibilidade de leitos de terapia intensiva e ventiladores. Entretanto, talvez a maior ameaça à resposta do país à covid-19 seja seu presidente, Jair Bolsonaro.
Questionado por jornalistas na semana passada, sobre o número cada vez maior de casos da covid-19, ele respondeu: “E daí? O que você quer que eu faça?” Ele não apenas continua a semear confusão, desdenhando abertamente e desencorajando a adoção das medidas sensatas de distanciamento físico e lockdown tomadas pelos governadores de estados e prefeitos, como também perdeu dois importantes e influentes ministros nas últimas três semanas. Primeiro, em 16 de abril, Luiz Henrique Mandetta, o respeitado e apreciado ministro da Saúde, foi demitido após uma entrevista na televisão durante a qual criticou fortemente as ações de Bolsonaro e pediu unidade de orientação do governo, sem o que se corria o risco de deixar os 210 milhões de brasileiros inteiramente confusos. Depois, em 24 de abril, em seguida à remoção do chefe da Polícia Federal por Bolsonaro, o ministro da Justiça Sérgio Moro, uma das figuras mais poderosas do governo de direita e nomeado por Bolsonaro para combater a corrupção, anunciou sua demissão. Tal desarranjo no coração da administração constitui uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública, além de ser um forte sinal de que a liderança do Brasil perdeu sua bússola moral, se é que algum dia a teve.
Mesmo sem o vácuo de ações políticas no nível federal, o Brasil estaria num momento difícil para combater a covid-19. Cerca de 13 milhões de brasileiros vivem em favelas, em geral com mais de três pessoas por quarto, e escasso acesso a água limpa. Recomendações de distanciamento físico e higiene são quase impossíveis de observar nesses ambientes – muitas favelas se organizaram por conta própria para implementar as medidas da melhor forma possível. O Brasil tem um vasto setor de emprego informal, em que muitas fontes de ganhos já não são uma opção. A população indígena estava sob severa ameaça mesmo antes da epidemia da covid-19 porque o governo vinha ignorando ou mesmo incentivando a mineração e a extração de madeira ilegais na floresta amazônica. Madeireiros e mineradores representam agora um risco de espalhar a nova doença para populações remotas. Uma carta aberta de 3 de maio, assinada por uma coalizão global de artistas, celebridades, cientistas e intelectuais, organizada pelo fotojornalista brasileiro Sebastião Salgado, alerta para um genocídio iminente.
O que a comunidade de saúde e ciência e a sociedade civil estão fazendo, num país conhecido por seu ativismo e franca oposição à injustiça e à desigualdade e que tem a saúde como um direito constitucional? Muitas organizações científicas, como a Academia Brasileira de Ciências e a Abrasco, há muito se opõem a Bolsonaro por causa dos cortes severos no orçamento da ciência e uma demolição mais geral da previdência social e dos serviços públicos. No contexto da covid-19, muitas organizações lançaram manifestos destinados ao público – como o Pacto pela Vida e pelo Brasil – e declarações e documentos escritos a assessores do governo em que pedem unidade e soluções conjuntas. Panelaços nas varandas como protesto durante os anúncios presidenciais acontecem com frequência. Há muita pesquisa em andamento, da ciência básica à epidemiologia, e há uma produção rápida de equipamentos de proteção individual, respiradores e kits de testes. São ações carregadas de esperança. No entanto, liderança no mais alto nível de governo é crucial para rapidamente evitar o pior resultado dessa pandemia, como é evidente em outros países. Em nossa “2009 Brazil Series”, os autores concluíram: “O desafio é, em última análise, político, e exige o engajamento contínuo da sociedade brasileira como um todo para garantir o direito à saúde a todo o povo brasileiro”. O Brasil como país deve caminhar junto para dar uma clara resposta ao “E daí?” de seu presidente. Ele precisa mudar drasticamente o curso ou deve ser o próximo a ir embora.



