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Urgência em mitigar quadros graves é desafio no combate à covid-19
Webinar

por | 28 abr 2020

Webinar sobre os desafios e impasses no tratamento da doença aconteceu na quinta-feira, 23

Marinheiros transportam o último paciente do navio hospital USNS Comfort, em Nova York (foto: Scott Bigley/ Marinha dos EUA / via FotosPublicas)

“O ponto crítico na evolução da doença é esse quadro agudo, o indivíduo entra em contato com o vírus e, depois de um período de incubação, desenvolve a doença, tem o quadro inflamatório predominantemente pulmonar, pode morrer logo em seguida; ou vai para o tubo, fica algum tempo, pode morrer das complicações secundárias, ou depois de um tempo sai do tubo e sobrevive. Essa é a história natural da doença, hoje. E o que a medicina tem para tratar na forma atual? Praticamente nada. Tubo, respirador, alguns antiinflamatórios, alguns antibióticos para pacientes que desenvolvem infecções secundárias etc”. Foi assim que o médico e pesquisador Licio Velloso, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), descreveu, durante o webinar “Tratamentos clínico e farmacológico da covid-19: desafios e impasses”, a situação complicada em que se encontram hoje tantos pacientes e profissionais de saúde na batalha contra a doença que se alastrou pelo mundo.

Velloso, que coordena a Frente de Ensaios Clínicos na força-tarefa da Unicamp contra o novo coronavírus, abordou em seguida as perspectivas terapêuticas. A mais interessante, uma vacina, deve demorar. Os estudos com antivirais, até aqui, não apresentaram bons resultados. A terceira abordagem possível, explicou, é tentar reduzir a gravidade do quadro. “Para isso é preciso entender como é a doença. A doença é inflamatória e causa uma pneumonia gravíssima, de evolução aguda e terrível, então temos que diminuir esse processo inflamatório”

Contou que, naquela semana, estavam começando a testar, na Unicamp, dois agentes antiinflamatórios na via da bradicinina, substância produzida no nosso corpo em diferentes circunstâncias, às vezes pelo nosso contato com microorganismos ou por um trauma físico, que ajuda o corpo a sanar o problema o mais rápido possível. Se produzida muito rapidamente num mesmo lugar do corpo, porém, ela intensifica o dano. Uma forma grave de uma doença chamada angiodema hereditário leva a uma pneumonia muito parecida com a da covid-19. O Sars-CoV-2, o coronavírus causador da doença, por sua vez, para entrar no organismo utiliza a proteína ECA-2, que participa da via de metabolização da bradicinina.

A hipótese do estudo da Unicamp é que, ao se ligar a uma proteína que metaboliza bradicinina, o vírus deve desencadear um acúmulo da substância no pulmão, e, portanto, um atenuante da bradicinina talvez atenue a evolução do quadro. Serão testados os dois inibidores de bradicinina que existem no Brasil. Na primeira fase, chamada prova de conceito, serão 30 pacientes, 10 com cada atenuante e um grupo de controle. Se a hipótese se mostrar correta, parte-se para um estudo com 180 pacientes. Em algumas semanas deve começar a haver resultados.

O webinar, organizado em parceria pelo Ciência na rua, Rede CoVida e Agência Bori, aconteceu na quinta-feira, 23, e foi o terceiro de uma série semanal. Participaram também Glória Teixeira, médica epidemiologista e professora titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (IFSC-UFBA) e Adriano Andricopulo, químico, e professor titular do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), além dos jornalistas Herton Escobar, repórter especial do Jornal da USP, e Mariluce Moura, coordenadora do Ciência na rua.Teixeira dedicou sua fala inicial à alta transmissibilidade do vírus e à consequente importância do isolamento físico enquanto não há tratamentos efetivos. “Os casos graves são relativamente poucos se falarmos em proporção ao número de infecções, mas como são muitas infecções, fica muito elevado, quando isso se concentra nas grandes cidades. Os sistemas de saúde, mesmo universais e bem estruturados, não conseguem absorver a demanda e a necessidade da população que precisa de atendimento hospitalar, principalmente respiradores e UTI”. Ela comparou o vírus com o ebola, que, ao matar grande parte dos infectados, não tem o mesmo sucesso em infectar tanta gente. E comparou também com a pandemia de AH1N1, em 2009, mais fácil de enfrentar, já que era causada por uma variação do vírus Influenza, contra o qual já havia vacina e medicamento – além de ter taxa de transmissibilidade mais baixa.

Andricopulo tratou das abordagens para a obtenção de fármacos, seja para vacina ou tratamento. Disse que há dois caminhos, um partindo do zero, muito demorado, outro adaptando princípios ativos já disponíveis no mercado ou em fase avançada de desenvolvimento, o chamado reposicionamento de fármaco, mais rápido. Uma das vantagens do segundo caminho é que o processo de formulação do princípio ativo já foi feito, assim como o processo de produção em escala industrial. “Imagina, hoje, um novo medicamento. Quantos milhões de toneladas não teriam que ser feitas, preparadas, formuladas e entregues em todas as partes do mundo?”. Apontou como exemplo promissor o antiviral Remdesivir, da empresa americana Gilead Sciences, que começou há pouco dois estudos de fase clínica 3 para avaliação em pacientes com covid-19. “Esse é um dos medicamentos que tem mostrado potencial com base em resultados pré-clínicos e clínicos de protocolos bem feitos e bem executados”. Estudos pré-clinicos são aqueles realizados com animais. Estudos clínicos, por sua vez, são feitos já com seres humanos.

Escobar perguntou aos pesquisadores como eles equilibram a cobrança por resultados rápidos com a manutenção da qualidade e do rigor científicos. Perguntou também se a segurança de medicamentos já no mercado para uma doença segue válida ao usá-los para tratar outra doença. Moura aproveitou para perguntar sobre o uso do saturímetro (aquela espécie de pregador que os médicos botam no dedo do paciente para medir a oxigenação no sangue), defendido por um pesquisador em artigo do jornal americano The New York Times e publicado na Folha de S. Paulo. Ela perguntou ainda por que existe uma variação tão grande nos quadros de pacientes, mesmo entre jovens sem comorbidades ou doenças pré-existentes conhecidas.

Os pesquisadores explicaram que é necessário verificar novamente a segurança dos fármacos quando usados para outra doença. “O comitê de ética em pesquisa normalmente solicita que se faça uma pré-fase para testar segurança em um grupo menor de pacientes e, nesse teste, se vai ver se a medicação desencadeia algum tipo de resposta inesperada especificamente em pacientes com covid-19”, disse Velloso. Andricopulo defendeu que é preciso um cuidado muito importante nesse momento de estabelecer a segurança e a eficácia de qualquer candidato a medicamento, para não gerar falsas ilusões. Ele mencionou ainda a possibilidade do tratamento vir a ser por meio de uma combinação de medicamentos, como no caso do “coquetel” contra o HIV, nos anos 1990.

Sobre o equilíbrio entre a urgência por resultados e a manutenção da qualidade e do rigor científicos, Teixeira lembrou que os protocolos foram desenvolvidos por décadas e hoje estão muito bem estabelecidos, para proteger as pessoas, não para impedir o desenvolvimento da ciência. “Esses protocolos são desenvolvidos dentro dos preceitos éticos de proteção à saúde humana, e isso precisa ser dito também pela grande mídia. Não é porque a ciência gosta de coisas confusas ou complicadas, é porque se faz necessário não se pagar para a pessoa ser voluntária”. Ela mencionou o filme O Jardineiro Fiel, que mostra como a indústria farmacêutica usava pessoas vulneráveis para administrar drogas, muitas vezes fatais, “como se fossem animais de experimentação”. Acrescentou que algumas etapas dos protocolos podem ser puladas em função da pandemia, contanto que isso não traga malefícios à população ou aos pacientes. Citou o exemplo da cloroquina: “A cloroquina está no mercado para determinadas condições e dosagens, mas sempre foi uma droga tóxica e mais tem se mostrado tóxica quando usada contra a covid. Não é que se vá jogar a cloroquina fora, mas é preciso conduzir os testes de forma a não prejudicar quem já está doente e hospitalizado, com muito cuidado”.A respeito da diferença nas evoluções de quadros, Velloso apontou a probabilidade de alguns polimorfismos, pequenas alterações genéticas, fazerem com que o vírus tenha maior capacidade de ligação no receptor.

Quanto ao uso do saturímetro, se mostrou favorável. Explicou que se considera grupo de risco quem apresente 94% ou menos de saturação de oxigênio no sangue. Mencionou que, até agora, esse acompanhamento vinha sendo feito principalmente por medição de temperatura, mas que 30 a 40% dos pacientes não desenvolve febre de forma precoce, então talvez não seja um bom método, ao passo que todos os pacientes que evoluem de forma grave têm redução da saturação.

Em outro momento, Escobar perguntou se o ano e meio que se está calculando como prazo para o desenvolvimento de uma vacina não seria demasiado otimista. Velloso entendeu que normalmente seria, mas talvez não seja o caso no atual contexto. “Hoje, por causa da magnitude da crise, o número de pessoas que trabalham primariamente com outras condições e se voltaram para a covid-19 é muito grande. Quando você tem muitas mentes, e pessoas com ideias diferentes porque vêm de outras áreas, talvez seja um fator que contribua para acelerar um pouco a produção dessa vacina. Mas acho que devemos deixar nossas esperanças ainda baixas, acho que vai demorar”. Em tom menos pessimista, ele lembrou que o Brasil tem boa capacidade de produção de vacinas, com Fundação Oswaldo Cruz e Instituto Butantan à frente – Teixeira acrescentou o Plano Nacional de Imunização e o Sistema Único de Saúde como trunfos do país no combate à pandemia. Mais cedo, ela havia lembrado que, quando surgir uma vacina, a disputa para o material necessário para produzi-la será intensa, comparável à que hoje ocorre em relação aos respiradores, por exemplo.

Ao final, Teixeira, após criticar enfaticamente a ideia de criar imunidade de grupo por uma infecção generalizada da população – “imunidade de grupo a gente busca com vacinas, é um absurdo, em pleno século 21, pensar em se trabalhar nessa perspectiva” –, voltou a defender o siolamento social. “É a única medida cientificamente comprovada capaz de diminuir o crescimento exponencial da doença para fazer com que o serviço de saúde atenda o máximo de pessoas possível e possa salvar vidas”. Fique em casa!

 

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