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Novos lagartos do pico da Neblina
Biodiversidade

por | 18 fev 2020

Gilberto Stam, Pesquisa Fapesp –  CC BY-ND 4.0

A neblina é a vista mais frequente na paisagem da montanha (foto: Agustin Camacho)

Duas novas espécies de lagarto coletadas em 2017 na região do pico da Neblina, exclusivos (endêmicos) daquela região, acabam de ser descritas oficialmente: Riolama grandis, apelidada de marrom-gigante, mede cerca de 26 centímetros, o dobro de R. stellata, ou céu-noturno, repleta de pontos brancos sobre as escamas negras, que lembram estrelas espalhadas na região ventral e lateral do corpo. O trabalho, publicado na revista Zoological Journal of the Linnean Society no dia 27 de janeiro, apresenta também uma análise do parentesco dessas espécies com outros grupos de lagartos, com base no DNA ‒ parte mais trabalhosa do estudo e o motivo pelo qual a publicação se dá dois anos após a coleta. O resultado indica que o ancestral comum das duas espécies teria vivido há 16 milhões de anos e a origem do gênero Riolama, composto por mais quatro espécies endêmicas da mesma região, no norte da Amazônia, na fronteira com a Venezuela (ver mapa), remonta a 26 milhões de anos.

“Como o endemismo resulta do isolamento das espécies, a origem do gênero deve ter coincidido com o processo de erosão e formação de picos do planalto das Guianas”, sugere o zoólogo Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e líder da expedição de 2017. “Quando algumas áreas se tornaram mais baixas, os ancestrais desses lagartos ficaram presos no alto, dando origem às novas espécies que por lá ficaram.” Ao mesmo tempo, a Amazônia se desenvolvia de forma independente na região baixa, com flora, fauna e ambiente bem distintos. “Ao contrário do que acontece na Mata Atlântica, onde a fauna dos picos da serra do Mar é parecida ou aparentada com a que está na base, nos picos da Amazônia ela em nada se parece com a da floresta”, diz Rodrigues.

As pintas brancas que lembram estrelas renderam o nome a Riolama stellata, ou céu-noturno (foto: Renato Recoder)

Antes da erosão, o planalto ‒ uma gigantesca formação rochosa que ocupa a região norte da Amazônia e se estende até o oceano Atlântico e o rio Orinoco, na Venezuela ‒ servia como um corredor entre os Andes e a Mata Atlântica, por onde as espécies migravam. O lagarto Anolis neblininus, por exemplo, coletado na expedição de 2017, pertence a uma linhagem que inclui outras espécies restritas a esses dois locais, indicando a relação pretérita entre as áreas. A formação inclui dezenas de outros picos, ou tepuis, que significa morada dos deuses na língua dos indígenas Pemon. No conjunto deles, chamado de Pantepui, reside um dos maiores índices de endemismo do mundo.

As montanhas isoladas por gigantescos paredões de pedra e a ideia de que bichos e plantas ancestrais vivessem no topo ‒ também conhecida como hipótese do platô ‒ inspiraram o escritor britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930), criador do detetive Sherlock Holmes, a escrever o livro O mundo perdido, ao qual o título do artigo faz referência. Os indícios a favor da teoria, porém, não invalidam a possibilidade de que animais tenham vindo de outros lugares. Sapos do gênero Tepuihyla teriam chegado a diferentes picos do planalto das Guianas galgando a rocha a partir de 5,3 milhões de anos atrás, muito tempo depois dos Riolama terem surgido, de acordo com estudo da bióloga venezuelana Patricia Salerno, à época estudante de doutorado na Universidade do Texas, publicado em 2012 e citado no artigo do grupo liderado por Rodrigues.

Riolama grandis, ou marrom-gigante, é o maior lagarto do grupo (foto: Renato Souza Recoder)

Uma subida também épica foi empreendida pelos 11 biólogos da USP que participaram da expedição de 2017. Eles chegaram de helicóptero até a base próxima ao pico da Neblina graças ao apoio do Exército brasileiro. No caminho observaram o ambiente. Rodrigues relata uma mudança brutal de temperatura na subida, que começou em torno de 34 graus Celsius (°C) na floresta, caiu para 8 °C durante o dia e 2 °C à noite — não por acaso, o local do primeiro acampamento se chama bacia do Gelo. Conforme aumenta a altitude, as árvores diminuem de tamanho e, depois de 1.700 metros (m), a floresta desaparece e o solo se torna rochoso, com arbustos baixos e árvores baixas e esparsas.

Assim que desceram do helicóptero, a 2 mil m de altitude ‒ em local previamente preparado por uma equipe destacada do Exército ‒, os pesquisadores se depararam com espécies de plantas e animais completamente diferentes do que se vê nas terras baixas da Amazônia e em outros biomas. “À primeira vista a fisionomia é semelhante à das montanhas do litoral, mas a composição florística é bem diferente. É uma vegetação de campo, com concentração de arbustos em alguns locais”, diz o botânico Renato de Mello-Silva, também do IB-USP. “Mas há menos gramíneas, o substrato é rochoso e existem grandes campos de bromélias.” Chove muito na região e as turfeiras, solo composto por matéria orgânica vegetal decomposta, transformam-se em brejos, formando pântanos onde se afunda até os joelhos. Rodrigues entrou nos charcos e coletou espécies de répteis e anfíbios.

Festa Yanomami na aldeia de Maturacá (foto: Agustin Camacho)

Mello-Silva foi um dos membros da equipe que ‒ auxiliados por indígenas Yanomami, que consideram o pico um local sagrado ‒ empreenderam uma subida que exigia a escalada de um paredão com a ajuda de cordas até chegar ao pico, a 2.995 m de altitude, e voltaram no mesmo dia. Coletaram durante todo o percurso, incluindo o topo, onde a concentração de espécies endêmicas é ainda maior. “O pico ocupa uma área estreita, com cerca de 30 m de comprimento e 5 de largura, e não se vê o horizonte por muito tempo, por causa da neblina.” O botânico coletou plantas com flores, necessárias para a identificação, e amostras de folhas para análise de DNA. Entre elas, há uma candidata a espécie nova, do gênero Psammisia, da família das ericáceas, a mesma da azaleia. O pesquisador explica que as plantas demoram mais a ser identificadas do que os animais devido ao maior número de espécies. Além disso, na equipe havia zoólogos especialistas em cada grande grupo de animais enquanto ele era o único botânico.

Durante a coleta, a equipe de Rodrigues fez um experimento simples com lagartos R. grandis para medir a chamada temperatura voluntária máxima. Os animais foram colocados em uma lata que era aos poucos aquecida, até que se sentissem desconfortáveis e deixassem o refúgio ‒ no caso, entre 32 °C e 34 °C. “Esses lagartos suportam as temperaturas máximas atuais do pico e, quando esquenta, procuram refúgio em áreas com microclima mais ameno, embaixo de troncos ou buracos”, conta o zoólogo. “Mas se a temperatura aumentar muito, eles morrem. Não tem área de escape.” Vem daí a preocupação de que a tendência de aquecimento global possa levar essas espécies à extinção, aumentando a importância de se fazer um levantamento da fauna da área.

A expedição, que ao todo durou cerca de um mês, ajudou a preencher uma lacuna notável das coleções brasileiras, que, até então, não contavam com nenhum exemplar da região. R. grandis e R. stellata já haviam sido capturados por pesquisadores norte-americanos em uma expedição na Venezuela nos anos 1980. Mas, na época, o material era preservado em formol, que destrói o DNA, e a equipe dos Estados Unidos não fez a descrição das espécies. Como o material coletado por eles foi aproveitado no estudo do grupo do IB-USP, um deles, Roy Mc Diarmid, da Smithsonian Institution, em Washington, também assinou o artigo. “Há dezenas de espécies novas encontradas em expedições estrangeiras anteriores. O nome de muitas delas faz homenagem ao pico, mas poucas estão disponíveis nas coleções brasileiras”, diz Mello-Silva, que já recebeu contato de pesquisadores interessados em estudar o material.

Enquanto identifica e descreve plantas e animais, a equipe prepara uma segunda expedição para outra localidade, na serra do Imeri, um maciço a 70 quilômetros a sudeste do pico da Neblina e totalmente incluído em território brasileiro. A área, a 2.500 m de altitude, nunca foi explorada. “É possível que encontremos outras espécies de Riolama ou parentes próximos, já que, há 26 milhões de anos, a erosão ainda não havia desgastado tanto os picos, que eram mais amplos e faziam conexão entre si”, diz Rodrigues. Espécies que evoluíram de modo isolado podem acrescentar novos detalhes à história do gênero e à compreensão dos processos de diversificação da fauna daquela área. Enquanto isso, Rodrigues ainda tem 10 espécies novas de sapos, rãs e pererecas para descrever. Cada uma delas pode abrir uma nova janela para a história do Pantepui.

Projeto
Filogeografia comparada, filogenia, modelagem paleoclimática e taxonomia de répteis e anfíbios neotropicais (nº 11/50146-6); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota; Pesquisador responsável Miguel Trefaut Urbano Rodrigues (USP); Investimento R$ 5.628.077,57.

Artigo científico
RECODER, R. et alLizards from the Lost World: two new species and evolutionary relationships of the Pantepui highland Riolama (Gymnophthalmidae)Zoological Journal of the Linnean Society. zlz168. on-line. 27 jan. 2020.

 

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

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