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Estudo sobre educação em São Paulo foca cultura anarquista

Assessoria de Comunicação do CEDEM, da Unesp

João Penteado com alunos da Escola Moderna (imagem: Arquivo Edgard Leuenroth)

A dissertação “A par dum trabalhador, devemos fazer um pensador”: a cultura anarquista paulistana nas práticas artísticas e pedagógicas das Escolas Modernas n. 1 e 2, apresentada por Levi Fernando Lopes Vieira Pinto ao Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Câmpus de São Paulo, expõe a história das Escolas Modernas de São Paulo, que funcionaram na década de 1910 nos bairros operários do Brás e Belenzinho.

Segundo o pesquisador, o trabalho busca contribuir para o enriquecimento da história do anarquismo, da educação e da arte/educação no Brasil. “Há pouca bibliografia sobre essas escolas, talvez pela omissão nas narrativas oficiais,” destaca. Ele afirma que a dissertação ganhou mais consistência graças ao acesso a documentos preservados em alguns acervos, como o do Centro de Documentação e Memória (CEDEM), da Unesp, um centro de memória que custodia, entre outros, o Fundo Astrojildo Pereira, com material sobre o movimento operário do início do século XX. Outra questão da pesquisa foi tentar compreender de que maneira a cultura libertária, formada no interior da classe trabalhadora, conciliava com o programa curricular das escolas oficiais.  A pesquisa foi orientada pela docente Rita Luciana Berti Bredariolli, do Instituto de Artes.

Contexto

No final do século XIX, a imigração em massa, sobretudo de italianos, espanhóis e portugueses, contribuiu para a industrialização do país. No caso de São Paulo, os bairros Brás, Belenzinho e Mooca abrigaram grande quantidade de operários. Nas indústrias, as condições de trabalhado desagradavam os trabalhadores. O pesquisador esclarece: “A carga horária invariavelmente ultrapassava 13 horas. Havia espaços muito pequenos para o almoço e para o café da tarde, com duração máxima de 15 minutos. As idas ao banheiro eram reguladas, os funcionários eram vigiados para que não conversassem entre si; podiam sofrer agressões físicas caso descumprissem as regras da empresa. O ambiente ao qual os trabalhadores eram expostos era insalubre, sem nenhuma proteção; os salários eram baixos; crianças ingressavam no trabalho para ajudar na renda familiar e sofriam as mesmas agressões, assim como as mulheres – até mesmo grávidas. Os salários desses grupos eram ainda mais baixos que o ordenado dos homens”.

Nesse cenário, o anarquismo enquanto ideologia dissidente do sistema vigente – um estado social onde as relações e suas organizações não orbitam entorno de um governo ou de representatividade política – trazido da Europa por esses trabalhadores –, começou a ganhar força entre os paulistanos, assim como entre operários de todo o país. Em seu trabalho, o autor enfatiza que o anarquismo brasileiro ganha características próprias, em especial na cidade de São Paulo. “Mas não representou uma ruptura ou uma contrariedade com o pensamento libertário europeu. Ao contrário, preceitos que constituem a base da ideologia foram preservados e se atualizaram diante do nosso contexto”.

À moda espanhola

O pesquisador relata que, a partir dos anos 1900, o governo republicano começou a investir em escolas na periferia de São Paulo. “Somente em 2 de fevereiro de 1909 foi criado o Grupo Escolar do Belenzinho,” diz. De acordo com a dissertação, 1909 foi um ano emblemático para o movimento anarquista e para a educação libertária. Foi o ano em que os grupos libertários de São Paulo criaram a Comissão Pró Escola Moderna com o objetivo de fundar duas unidades de mesmo nome e em referência a experiência espanhola.

“No dia 13 de outubro de 1909, em Barcelona, aos gritos de ‘Viva la Escuela Moderna’, Francisco Ferrer, um educador libertário catalão, era fuzilado. Foi preso no dia 1 de setembro do mesmo ano sob a acusação de ter sido um dos principais autores da série de greves ocorridas em Barcelona, que ficou conhecida como Semana Trágica. Preso, condenado e fuzilado sem encontrarem nenhuma prova do seu envolvimento com o episódio, Ferrer acabou se tornando um mártir para o movimento anarquista,” escreveu Pinto.

A finalidade do Comitê Pró Escola Moderna foi congregar pessoas interessadas nas propostas da educação racionalista e também arrecadar fundos para a fundação de escolas similares à Escuela Moderna de Barcelona, ou seja, onde as concepções da educação racional pudessem ser colocadas em prática, além simpatizantes do movimento anarquista e também das ideias de Ferrer sobre educação.

A Escola Moderna n. 1 foi inaugurada em 13 de maio de 1912, sob a direção do professor João Penteado, na rua Saldanha Marinho n. 66, no bairro do Belenzinho. Posteriormente, a Escola seria transferida para a avenida Celso Garcia n. 262. Bem próxima a ela, na rua Miller n. 74, provavelmente em 1913, foi criada a Escola Moderna n. 2, sob a organização da Comissão Pró Escola Moderna. As Escolas passaram a funcionar após a obtenção de um alvará da Secretaria de Instrução Pública do Estado.

Segundo consta na dissertação, a ideia da Escola Moderna era promover a emancipação moral e intelectual com base no ensino racionalista. “O ensino racionalista buscava promover uma metodologia de aprendizado em que o sujeito em formação fosse trilhado por processos de experimentação e observação do mundo. Buscava conferir às mulheres e aos homens uma autoridade sobre si mesmos, sobre suas relações, sobre o meio que os cerca e sobre o mundo”.

Além de disciplinas como português, aritmética, geografia, história e princípios de ciências naturais, os currículos das Escolas Modernas também se apoiavam no ensino de música e artes em geral. O ensino de religião não fazia parte do currículo. Ferrer, o idealizador das escolas libertárias, dizia que elas deveriam ultrapassar os interesses de instituições como  igreja e Estado que, segundo ele, atrasam o progresso. “O ensino racionalista de Ferrer é uma ação direta contra essa lógica que procurava desenvolver sujeitos dóceis, obedientes,” destaca o educador em seu estudo.

As escolas utilizaram fartamente os jornais como instrumentos de apoio curricular. Nascidos em 1914, esses periódicos eram considerados atividades escolares. O Inicio foi o primeiro jornal lançado pela a Escola Moderna n. 1, segundo Pinto. “O Inicio era produzido pelos próprios alunos e boa parte dos conteúdos eram de autoria deles,” diz. Os textos reportavam as atividades extraclasse, os passeios, as festas para arrecadar fundos para as escolas, os horrores da Guerra que se desenrolava na Europa, as ações administrativas, entre outros fatos. Em 1918 começou a circular o jornal chamado “Boletim da Escola Moderna.” A finalidade do novo jornal era divulgar o ensino racionalista. Além da produção de jornais, a Escola Moderna fazia propaganda em periódicos de circulação comercial, como em A Plebe (1917 – 1951).

Os anos em que a Escola Moderna manteve suas atividades foram também de conflitos na Europa – Primeira Guerra Mundial, Revolução Soviética. Aqui no Brasil, em 1917, ocorreu a grande graves operária, nascida espontaneamente entre os trabalhadores  anarquistas. Como consequência, em novembro de 1919, a Secretaria de Instrução Pública entrou com um pedido na Secretaria de Justiça Pública de fechamento da Escola Moderna n. 1 e n. 2 de São Paulo, sob um conjunto de acusações. A principal seria a de que a Escola promovia a doutrinação de ideias anarquistas, ou seja, ideias, segundo eles, que perturbavam a ordem pública.

Segundo análise do pesquisador, na cidade de São Paulo, a experiência educacional libertária que mais deixou rastros e que teve relativo impacto nos bairros operários foram as Escolas Modernas n. 1 e n. 2, dirigidas respectivamente por João Penteado e Adelino de Pinho. “A par dum trabalhador, devemos fazer um pensador”, escreveu Pinho, de maneira a sintetizar a força e a importância do pensamento pedagógico libertário e suas práticas no interior da classe operária: “pela educação, formar sujeitos livres, capazes de agir e transformar a sociedade e o mundo em que vivem”.

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