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Zika: vírus pode ter sido trazido do Haiti por militares e não aumentou microcefalia

Os fronts da pesquisa em zika continuam a produzir boas e, às vezes, surpreendentes, novidades. Por exemplo, um estudo genético elaborado por um grupo de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco e publicado, há poucos dias pelo periódico científico International Journal of Genomics refez as rotas da zika até sua eclosão no Brasil e concluiu que o vírus da doença chegou ao país vindo do Haiti.

Essa proposta escanteia a hipótese de sua entrada durante a Copa do Mundo em junho/julho de 2014 ou durante o campeonato mundial de canoagem no Rio de Janeiro, em agosto do mesmo ano. Reafirma que o vírus saiu da Polinésia Francesa, o que já era amplamente aceito, mas cobre as lacunas que se tinha a partir daí, estabelecendo com clareza que, desse primeiro ponto, o vírus migrou para a Oceania, daí foi para a Ilha de Páscoa, chegou em seguida à América Central e Caribe, e a partir daí aportou finalmente no Brasil em fins de 2013.

“Isso coincide com o caminho percorrido pelos vírus da dengue e Chikungunya”, diz Lindomar José Pena, coordenador do estudo que resultou no artigo Revisiting Key Entry Routes of Human Epidemic Arboviruses into the Mainland Americas through Large-Scale Phylogenomics (Revisitando as principais rotas de entrada de arbovírus epidêmicos em humanos no continente americano por meio de filogenômica de grande escala).

O rastreamento do caprichoso caminho percorrido pelo vírus demandou dos cientistas envolvidos na pesquisa usarem todas as sequências genéticas do zika disponíveis no mundo, ou seja, um total de 275, nelas estudando particularmente o acúmulo de suas mutações

Curiosidade extra nessa rota do Zika agora proposta: teriam sido militares brasileiros que participaram da missão de paz no Haiti, além de imigrantes, os o transporte preferencial do vírus que, segundo outros estudos, já aqui no país ganharam novas e importantes mutações.

No cerco a Zika, múltiplas abordagens vêm sendo empregadas nos últimos três anos, e foi da Fiocruz, dessa vez da Bahia, um estudo publicado há poucos meses cujo alvo era identificar os genes diretamente responsáveis pela infecção viral no Aedes. Ou melhor, dois estudos, um publicado no periódico Frontiers in Bioengineering and Biotechnology e outro em Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.

O grupo coordenado por Artur Trancoso partiu de dados públicos de trabalhos anteriores de expressão gênica voltados a mostrar os mecanismos alterados em resposta à infecção viral do Aedes. Muitos trabalhos estavam relacionados a infecção por dengue, zika e chicungunya, e um deles, além de dengue, examina mosquitos infectados também por febre amarela e febre do Nilo.

O diferencial do trabalho do grupo baiano, com a colaboração de colegas de São Paulo (Ribeirão Preto), Minas Gerais (Uberlândia) e Paraná, foi focar na relação entre alimentação e infecção, compreendendo que esses dois mecanismos estão profundamente conectados durante o processo de infecção do mosquito, dado que a alimentação é condição indispensável ao contato inicial do Aedes com o vírus. Em outros termos, a expressão gênica observada nesse processo poderia ser também relativa à alimentação, e não só à infecção viral.

Compreendido isso, a equipe liderada por Trancoso fez uma comparação entre mosquitos alimentados e mosquitos não alimentados e aí conseguiu identificar genes ligados exclusivamente à infecção viral. Dessa forma, dos aproximadamente 17 mil genes do mosquito, foi possível identificar apenas 4 altamente correlacionados com a infeçção viral, o que pode ser uma imensa vantagem para pesquisas direcionadas à prevenção da infecção do vetor, o mosquito, ou à sua morte quando infectados.

O grupo baiano também chegou ao grupo de 110 genes já identificados para facilitar testes rápidos de diagnóstico de infecção por febre amarela e febre do Nilo em seres humanos e os está testando para zika. Ou seja, trabalho antenado nos vínculos entre pesquisa básica e suas aplicações para a saúde pública.

Em meio a avanços do conhecimento sobre zika e outros arbovírus num ambiente de recursos tão escassos que beira um clima de hostilidade à pesquisa científica no país, um estudo repercutido pela coluna do conhecido biólogo Fernando Reinach no Estadão, em 19 de maio passado, produziu alguma perplexidade.

“A novidade é que agora sabemos que os números estavam errados, a microcefalia no Brasil não aumentou com a chegada da zika”, dizia Reinach a certa altura, comentando o estudo Prevalence and Risk Factors for Microcephaly at Birth in Brazil in 2010, elaborado por pesquisadores da USP de Ribeirão Preto e da Universidade Federal do Maranhão.

O biólogo sempre contestou o aumento de 147 casos de microcefalia em 2014 para 9.814 entre novembro de 2015 e outubro de 2016, que “se tornou a narrativa oficial”. Ele argumentava com o 0,6% de incidência de microcefalia entre recém-nascidos nos Estados Unidos para dizer que era impossível número tão ínfimo no Brasil antes da zika.

Qual deveria ser o verdadeiro número de microcéfalos que nasceram no Brasil em 2014? 

Difícil saber, mas era razoável supor que a frequência de microcéfalos deveria ser parecida em todas as populações humanas. Mas onde esse número havia sido medido cuidadosamente (sem ser por notificações)? Foi fácil identificar um estudo científico feito nos Estados Unidos. Esse estudo afirmava que 0,6% das crianças nascidas nos EUA apresentam uma forma severa de microcefalia. Corrigindo para o número de nascimentos no Brasil foi fácil calcular que no Brasil, se a taxa fosse igual (0,6%), deveriam ter nascido 19.250 microcéfalos e não 147.

O estudo publicado em maio trabalhou sobre os dados de 6.174 crianças nascidas em Ribeirão Preto (SP) e 4.220 crianças nascidas em São Luís no ano de 2010, “cinco anos antes da chegada do zika ao Brasil e cada criança havia sido examinada cuidadosamente”.  O resultado mostrou, entre os nascidos em Ribeirão Preto, 0,8% com microcefalia e, do nascidos em São Luís, 0,7% com a mesma condição.

Na conclusão de seu comentário, Fernando Reinach ressalta em tom provocativo a dificuldade que temos de questionar os números das autoridades de saúde, derivada da incapacidade nacional de analisar com um olhar científico a realidade que nos cerca. “Ou seja, o pensamento científico ainda não faz parte de nosso repertório mental. E sem a perspectiva do pensamento científico só nos restou entrar em pânico”.

Isso depois de alertar que, se a zika não aumentou significativamente o número de microcéfalos no Brasil, não significa que “não possa causar microcefalia em algumas crianças ou afetar o cérebro das crianças durante a gestação, só significa que, no Brasil, a zika não aumentou o número de nascimentos de crianças com microcefalia”.

Bem, toda verdade científica é provisória, mas vale muito refletir quanto à observação de o pensamento científico não fazer parte de nosso repertório mental.

Em tempo: este ano, de acordo com o Ministério da Saúde, foram registrados 5.941 casos prováveis de zika em todo o Brasil, uma redução de 60,9% em relação ao mesmo período do ano passado (15.214).

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