Marina Martinez, Mongabay
- Estudos recentes mostram que o sistema agrivoltaico pode servir como estratégia de desenvolvimento sustentável ao otimizar duas atividades produtivas num mesmo espaço: a produção de alimentos e a geração de energia solar.
- Integrando tecnologias que incluem o reúso da água e a captação de água da chuva, o sistema pode reduzir significativamente o uso de recursos naturais e aumentar a renda familiar a um custo baixo de investimento, especialmente em regiões como o semiárido nordestino.
- O primeiro sistema agrivoltaico no Brasil, chamado Ecolume, foi desenvolvido por uma rede nacional de mais de 40 pesquisadores e instalado em uma escola de agroecologia de Pernambuco em 2019.
- O Ecolume demonstra resultados promissores, mas desafios estruturais, especialmente a falta de políticas públicas de incentivo, estão barrando a replicação desse sistema em outras localidades do país.
O alto grau de insegurança alimentar, hídrica e energética causado por questões socioeconômicas e agravado pelas mudanças climáticas vem despertando o interesse de grupos de pesquisa na busca por soluções. Um estudo recente mostra que uma possível solução é o chamado sistema agrivoltaico. Trata-se da combinação da produção de alimentos e da geração de energia solar num mesmo espaço, com objetivo de maximizar resultados e diminuir o uso de recursos naturais.
No Brasil, o primeiro sistema agrivoltaico, chamado Ecolume, foi desenvolvido por uma rede nacional de mais de 40 pesquisadores, com financiamento do CNPq. Em 2019, uma unidade demonstrativa do Ecolume foi instalada na escola de agroecologia Serta, em Ibimirim, Pernambuco, sob coordenação do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA).
Francis Lacerda, climatologista do IPA e coordenadora do Ecolume, conta que esse projeto surgiu do anseio de testar formas para o semiárido brasileiro produzir alimentos o ano todo e com menos água, já que a região vem enfrentando períodos de seca mais prolongados e temperaturas cada vez mais altas.
Além disso, ela conta que outra motivação foi mostrar que a região Nordeste, apesar de possuir o menor Índice de Desenvolvimento Humano do país atualmente, é abundante em recursos naturais, como o sol e a biodiversidade da Caatinga. “Através do Ecolume, desenvolvemos um modelo de produção que enxerga [no semiárido] suas potencialidades e suas riquezas”, diz Lacerda.
Sustentabilidade alimentar e hídrica
O Sistema Agrivoltaico Ecolume (Save) é um modelo de produção consorciada de alimentos e energia solar, com uso integrado de tecnologias de reúso de água e captação de água da chuva. Sua estrutura consiste em 10 placas fotovoltaicas instaladas a aproximadamente dois metros do solo, numa área total de 24 m². Embaixo da estrutura está instalado um sistema de aquaponia, onde são cultivadas hortaliças e peixes de modo combinado, além de um galinheiro.
Heitor Sabino, engenheiro de produção que colaborou na instalação do sistema Ecolume na escola Serta, diz que esse modelo melhora a produtividade agrícola no semiárido, pois o sombreamento gerado pelas placas solares barra a exposição solar excessiva e garante um microclima mais ameno e úmido, os quais são fatores ideais para o desenvolvimento de plantas e animais. O sombreamento também ajuda a reduzir perdas de água por evapotranspiração e o consórcio com aquaponia e reúso da água permite uma irrigação mais sustentável do que na agricultura convencional.
Simulações feitas por pesquisadores da rede Ecolume mostraram que o sistema agrivoltaico pode proporcionar um aumento de até 70% na produção de hortícolas e menor demanda por água, a depender da cultura agrícola e ambiente de cultivo. Um estudo da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, também em região suscetível à seca, mostrou um aumento de duas a três vezes na produção de alguns tipos de vegetais e frutas debaixo de painéis solares, em cultivo direto no solo. O Save, por integrar ao sistema tecnologias que tratam e reciclam água, permite ainda economizar 90% no uso desse recurso para irrigação.
Segundo Lacerda, o Save é uma prova de como é possível adaptar a agricultura ao clima do semiárido nordestino, que tem uma alta variabilidade espacial e temporal da chuva e agora está ficando mais árido — ou seja, mais seco e quente, devido às mudanças climáticas — para produzir alimentos saudáveis o ano inteiro, com pouca água e sem agrotóxicos.
Entretanto, o sistema Ecolume foi prototipado para produzir alimentos, principalmente vegetais, e energia elétrica em pequena escala. É capaz de suprir necessidades básicas de uma família de, pelo menos, sete pessoas ou gerar um faturamento anual de aproximadamente R$ 11 mil. Sabino destaca que, se esse sistema fosse replicado ao redor do Nordeste, como pequenas unidades distribuídas, poderia ajudar a solucionar grandes problemas como fome, má nutrição e pobreza energética.
Para Lacerda, esse sistema também pode combater outros problemas no semiárido. Na Caatinga, apesar de sua rica biodiversidade animal e vegetal, 46% da vegetação original já se encontra desmatada — devido, principalmente, a atividades de exploração de biomassa florestal para fins energéticos e agropecuária. Ao combinar ambas as atividades de produção de energia e alimentos numa única área através do sistema agrivoltaico, é possível reduzir o desmatamento e restringir o uso da terra, assim como liberar mais áreas para serem reflorestadas e restauradas, o que pode ajudar a mitigar a crise climática na região, explica a coordenadora.
Sustentabilidade energética
“Hoje a Caatinga está sendo desmatada para a instalação de megafazendas de produção de energia fotovoltaica, mas isso é contraproducente”, acrescenta Lacerda. Segundo a climatologista, além de ser ambientalmente insustentável produzir energia dessa forma, o modelo agrivoltaico é mais eficiente e tem um melhor custo-benefício.
Estudos mostram que o calor em excesso faz com que as placas solares percam eficiência na geração de energia. Por isso o cultivo agrícola embaixo dessas estruturas é estratégico, pois o vapor de água gerado pela transpiração das plantas diminui a temperatura do ar e evita o superaquecimento das placas, aumentando sua eficiência. Simulações da Ecolume mostraram um aumento médio de 75 kWh na produção de energia solar após a instalação do sistema de aquaponia embaixo das placas devido ao arrefecimento dessas estruturas, diz Sabino.
Além disso, é um modelo de produção barato — o Save, por exemplo, custou cerca de R$ 20 mil — que pode contribuir tanto para o aproveitamento econômico de terras degradadas ou desertificadas quanto para a segurança energética do Brasil. “Se espalhássemos pequenos conjuntos de placas solares [como o modelo Ecolume] apenas nas áreas já degradadas ou desertificadas, produziríamos energia para o país inteiro”, diz a coordenadora. Ao mesmo tempo, “ao sombrear essas áreas, é possível fazer a recuperação do solo”.
Similarmente, pesquisadores da Universidade do Estado do Oregon concluíram que, se sistemas agrivoltaicos fossem instalados em menos de 1% das terras agrícolas nos Estados Unidos, 20% da eletricidade no país seria suprida, junto com uma redução significativa nas emissões de carbono.
Desafios para replicar em outras localidades
“Já provamos que o Sistema Agrivoltaico Ecolume promove segurança alimentar, hídrica e energética”, diz Sabino. “O que nós precisamos agora é de investimento, principalmente do poder público, para podermos capacitar mais pessoas e instalar mais sistemas.”
Porém, o modelo de produção proposto pelo Ecolume de “unidades familiares” ou pequenas unidades distribuídas — de forma a gerar benefícios ambientais, sociais e econômicos a um grande número de pessoas no semiárido nordestino, e possivelmente em outras regiões do país — ainda não tem despertado o interesse do poder público. Lacerda conta que já apresentou o projeto em audiências na Câmara dos Deputados e Senado, e tem conversado com secretários de estado, mas até o momento “não há interesse”.
Até mesmo o Instituto Nacional do Semiárido (Insa), que apoiou a rede no início do projeto, não tem feito o esforço de divulgá-lo. Não há menção sobre o Sistema Agrivoltaico Ecolume na plataforma digital Renova Semiárido, desenvolvida em 2021 pelo Insa para divulgar projetos de energias renováveis e sustentáveis na região.
Também não houve menção sobre o sistema no evento digital Conecta Semiárido, organizado recentemente pelo Insa para conectar atores e debater oportunidades na cadeia de energias renováveis. A atual diretora do instituto, Monica Tejo, foi contatada pela reportagem para comentar sobre isso, mas não houve reposta.
Segundo Lacerda, as políticas públicas atuais continuam a privilegiar o “velho paradigma” da produção em larga escala, de monoculturas e de forma a concentrar riquezas, o que acaba por desincentivar a replicação do sistema Ecolume. “Precisamos de políticas públicas para incentivar esse novo sistema. É pra ontem isso”, destaca a coordenadora.