Nara Lacerda Ferreira*, para o Ciência na Rua
Autora aborda o desaparecimento forçado do avô durante a ditadura pela ótica do trauma segundo Freud e Ferenczi

Gildo Macedo Lacerda, militante da Ação Popular sequestrado, preso e assassinado pela Ditadura Militar em 1973
Em 2023, ilustrei a capa do livro Pela memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, Presente, uma coletânea de quatro ensaios escritos pela minha mãe, Tessa Moura Lacerda, sobre a morte sob tortura e o desaparecimento forçado de meu avô na Ditadura Militar.
As únicas referências que tenho do meu avô são sua história e algumas poucas fotos — só isso; nunca pude e, mais tarde, aceitei que nunca poderei conhecer, de fato, seu cheiro, seu jeito, sua voz. Certa vez, em um museu com minha avó Mariluce Moura, fui consultar o nome do artista de uma obra e, quando voltei para informá-la, ele me disse, chocada, que eu tinha “andado igual a ele”. Por anos tentei acreditar que eu sabia o que isso significava e me sentir mais próxima dele, apesar de não conseguir imaginar ou reproduzir a forma que eu caminhei aquela certa vez.
Imaginei, ao ilustrar, que escolheria uma foto da qual gostasse, desenharia e pronto — uma atividade simples, com fim em si mesma. No entanto, ao sentar com aquele rosto que eu pensava conhecer como a palma da mão, mas para agora reproduzí-lo, tive que enfrentar a tarefa de re-conhecê-lo, conhecê-lo de outra forma, não mais estática, e sim dinâmica, compreendendo pela primeira vez como a luz batia nele e como ele produzia sombras sobre si mesmo. A produção de um material, no sentido do trabalho que Hannah Arendt traz em A Condição Humana, conseguiu me pôr em contato com minha história de formas que eu não pensava serem possíveis.
Digo minha história porque entendo, agora, que a história de meu avô é parte constitutiva de quem eu sou e me atravessa em todos os momentos da minha vida — não carrego essa história comigo somente ao ilustrar essa capa ou escrever este texto, mas também quando saio para caminhar com meu cachorro, quando vou ao bar com meus amigos e na minha formação em Psicologia na faculdade. Ilustrar a capa do livro me mostrou que minha produção acadêmica também pode se encaixar nesse trabalho que me aproxima, aos poucos, de compreender a história de meu avô. Apresento a seguir reflexões que consegui formular graças a essa formação.
A clínica de Freud era repleta de pacientes histéricas – que apresentavam distúrbios corporais como dores ou até paralisias em membros, sem nenhuma alteração fisiológica verificável. Quando Freud trabalha para formular uma teoria sobre a etiologia da histeria, elabora a teoria do trauma em dois tempos, baseado, principalmente, no caso Katharina (disponível em Estudos sobre histeria).
No primeiro tempo do trauma, ocorre o factual, material. No caso de Katharina, ela vivencia, em sua infância, uma violência sexual, e seu psiquismo infantil não tem recursos para interpretar o que aconteceu, e recalca a cena (bane a lembrança da consciência para o inconsciente). Adulta, tem uma vivência que a remete para a cena traumática original e, então, com recursos para compreender seu trauma, adoece — e este é o segundo tempo do trauma. É importante fazer a ressalva de que o saber ou compreender na psicanálise é constituído como experiência, subjetiva e emocionalmente; sendo assim, é possível ter o conhecimento racional de algo sem compreendê-lo.
A teoria do trauma em dois tempos foi abandonada por Freud posteriormente, por conta da aparente impossibilidade de todas as histéricas terem sofrido abusos na infância — e, consequentemente, de todas as famílias burguesas abrigarem um abusador. Além disso, Freud postula que o inconsciente não diferencia a realidade factual (os eventos) da realidade psíquica (as fantasias). Discute-se que, por mais que o abandono da teoria do trauma em dois tempos de Freud faça sentido no movimento epistemológico do autor, ele representa uma perda do olhar atento para a dimensão real e material do trauma.
Sándor Ferenczi, contemporâneo de Freud, seu discípulo e analisando, propôs o terceiro tempo do trauma. É importante notar aqui, antes de discorrer sobre sua teoria, que não nos restringimos somente a casos como o de Katharina. Inclusive, a psicanálise concebe o trauma em três dimensões: a intrasubjetiva (individual), intersubjetiva (coletiva) e trans-subjetiva (política). O terceiro tempo do trauma se dá quando acontece a Verleugnung, que pode ser traduzido do alemão como desautorização. Seria, então, após o trauma e o sofrimento dele recorrente, a desqualificação do testemunho de uma vítima por um terceiro, que pode ser uma pessoa ou uma instância social ou política.
O grande absurdo produzido pela Ditadura, além de seus crimes hediondos que configuram em traumas nas três dimensões apresentadas, está em seus mecanismos cruéis de desautorização. As falsas notícias divulgadas para encobrir mortes em tortura, como aconteceu com meu avô e como o filme Ainda Estou Aqui retratou sobre a morte de Rubens Paiva, são uma forma de desqualificação das reais condições traumáticas das mortes provocadas pela Ditadura.
O desaparecimento forçado, termo escolhido pelo Relatório da Comissão da Verdade, representa para as famílias uma desautorização do fato da morte de um ente querido, ao impedir a realização dos processos rituais de luto e, portanto, sua elaboração. A falta de um corpo constitui, para o enlutado, uma lacuna no processo de elaboração do luto que, em muitos casos, quando se trata de Ditadura, é preenchida por uma fantasia extremamente dolorosa de se manter e, mais ainda, de se dissolver — “talvez ele tenha conseguido fugir”.
O último exemplo que trago do que é um leque imenso é o da Lei da Anistia como desautorização do trauma das vítimas (intrasubjetivo), dos amigos e familiares (intersubjetivo) e do Brasil como nação (político) causado pela Ditadura. A falta de condenação de torturadores e cúmplices e da emissão de um mea culpa pelo Estado sela o Brasil como um país traumatizado pela Ditadura, fadado a repetir sua sina até que elabore seu trauma.
Freud introduz em Além do princípio do prazer, e a noção é elaborada por muitos psicanalistas a seguir, que o trauma não elaborado, discutido, colocado em pauta, olhado, leva o sujeito a repetir a sua situação traumática, seja no papel de agressor ou colocando-se de novo como vítima, uma forma patológica de “assumir controle” da situação. Para mim é claríssimo que a tentativa de Golpe de Estado orquestrada por Jair Bolsonaro, seus colegas e as Forças Armadas é o retrato, a prova cabal, de que o Brasil precisa urgentemente elaborar sua história traumática com a Ditadura Militar — mas, além disso, todos os eventos que possibilitaram que Bolsonaro pudesse tentar um Golpe de Estado, fosse presidente, pudesse votar a favor do “impeachment” de Dilma homenageando seu torturador, também, em meu ponto de vista, se enquadram como a repetição patológica do trauma pelo Brasil.
É aí que enxergo a importância da produção de material (de trabalho), artístico, acadêmico, etc. acerca da questão da Ditadura — são formas de elaboração do trauma. Existe um interesse muito claro por trás do discurso de que “já passou”, “o Estado tem questões mais importantes para se ocupar além de remediar o passado” (fala em Ainda estou aqui), “quem procura osso é cachorro” — e é de quem tem o interesse nas repetições incessantes de nosso trauma. É preciso se ocupar da Ditadura, para que não se repita.
* Nara Lacerda Ferreira é estudante de psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)