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Por dentro da cabeça dos jogadores de futebol

Lucas Veloso para o Ciência na Rua

Pesquisa buscou o imaginário de jovens em formação futebolística, analisando suas percepções sobre o trabalho, o sucesso e as influências sociais

O atacante Vini Jr, durante Brasil x Colômbia, em março, em Brasília pelas Eliminatórias da Copa do Mundo (foto: Bruno Peres / Agência Brasil)

No Brasil, o futebol é mais do que um esporte – é parte da identidade nacional. Em casa, muitas vezes os meninos são incentivados ao esporte. Desde os primeiros chutes na infância até a consagração nos gramados do mundo, a relação dos brasileiros com a bola é intensa e precoce.

A título de curiosidade, o caso de Neymar — um dos brasileiros mais conhecidos mundialmente — é um exemplo clássico dessa trajetória. Nascido em Mogi das Cruzes em 1992, o atacante começou a jogar futebol aos sete anos na Portuguesa Santista. Em 2003, transferiu-se para o Santos, onde despontou para o cenário internacional e para onde voltou recentemente. Ao longo da carreira, além do alvi-negro da Vila Belmiro e da Seleção Brasileira, defendeu Barcelona, Paris Saint-Germain e Al Hilal, da Arábia Saudita.

Histórias como a de Neymar — sem tanto destaque — se repetem em todo o país, reforçando o papel do Brasil como celeiro de talentos. O futebol, mais do que um sonho, é uma das principais apostas de muitos jovens que veem no esporte a chance de transformar suas vidas.

Neymar, em jogo contra o Corinthians na NeoQuímica Arena em fevereiro pelo Campeonato Paulista (foto: Paulo Pinto / Agência Brasil)

A tese Chuteiras novas para pés descalços: imaginário coletivo de jovens futebolistas, de Annie Rangel Kopanakis Fernandes, defendida em fevereiro de 2022 na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), investiga essa relação profunda entre os aspirantes a jogadores e suas trajetórias.

Segundo a pesquisadora, o estudo surgiu da experiência pessoal como psicóloga do esporte em um clube de futebol. O contato direto com os jogadores revelou a necessidade de compreender não apenas o desenvolvimento técnico, mas também a vivência subjetiva desses atletas, desde as categorias de base. “A investigação buscou dar voz aos jogadores, explorando suas crenças, expectativas e a construção simbólica em torno da carreira no futebol”, resume.

O mercado

De acordo com informações da CBF Academy, entidade vinculada à Confederação Brasileira de Futebol, a maioria dos jogadores brasileiros inicia a carreira ainda na infância, geralmente por volta dos 12 anos, nas categorias de base dos clubes. Os times trabalham com divisões como sub-15, sub-17 e sub-20, e os atletas que chegam ao profissional sem passar por essa formação são cada vez mais raros.

A carreira de um jogador costuma durar entre 15 e 20 anos. O auge acontece por volta dos 24 anos, enquanto os 30 marcam o início da fase considerada experiente. Aos 34 ou 35 anos, muitos começam a se aposentar ou migram para times de menor expressão. Apesar da imagem dos grandes craques milionários, a realidade da maioria é bem diferente. Segundo um levantamento da CBF de 2019, mais da metade dos jogadores profissionais no Brasil (55%) ganha menos de R$ 1.000 por mês. Outros 33% recebem entre R$ 1.001 e R$ 5.000. Apenas 12% superam esse valor, sendo que menos de 1% ultrapassa os R$ 200 mil mensais.

Foto: Rodolfo Barretto / Unsplash

O que pensam os jogadores

Para dar conta da demanda acadêmica, uma das estratégias usadas pela pesquisadora foram os “desenhos-estórias”, nada mais do que “produções derivadas de intervenções psicológicas realizadas com jovens atletas em formação, servindo como material de pesquisa para compreender o imaginário coletivo sobre a vida do jogador de futebol”, explica Annie Kopanakis. “A partir dessas produções, foi possível identificar quatro campos de sentido afetivo-emocional que refletem as crenças e expectativas desses jovens em relação à carreira no esporte”.

A análise mostrou que, enquanto os jovens reconhecem no futebol um espaço de transformação e realização de sonhos, suas narrativas também reproduzem valores meritocráticos e patriarcais. Meritocráticos pela crença de que as recompensas e oportunidades devem ser dadas com base no mérito individual, como esforço e habilidades, patriarcais porque acreditam em uma estrutura social em que os homens detêm poder e autoridade, especialmente nas esferas familiar e social.

O primeiro desenho-estória foi o “Trabalho dos sonhos”, baseado na ideia de que jogar profissionalmente traz realização pessoal, combinando paixão e profissão. “Superando a pobreza” foi o segundo, refletindo a crença de que o futebol é um caminho para a ascensão social e econômica que permite ao jogador melhorar a vida da família.

Já o terceiro, “Esforço individual como chave do sucesso”, reforça a noção de que dedicação e persistência são os únicos fatores determinantes para alcançar o sucesso, sem considerar as desigualdades estruturais. Por fim, o campo “Coisa de homem” revela como o futebol ainda é associado a atributos masculinos, reforçando ideais de virilidade e resistência que podem gerar pressões psicológicas nos jovens atletas.

Foto: Hugo Cornuel / Unsplash

Chance de “dar bom”

A percepção de muitos jovens brasileiros de que é uma possível saída da pobreza e da vulnerabilidade social varia conforme a realidade de cada jogador em formação. “Existe uma maioria que necessita sair de condições de indignidade humana, e uma minoria que pode sonhar com uma carreira de sucesso por vocação e interesse mais singulares”, explica a pesquisadora.

O cenário reflete a desigualdade estrutural do país, onde poucos conseguem trilhar o caminho do futebol sem a pressão econômica como motivação principal. Nesse contexto, a ideia de que o sucesso depende exclusivamente do esforço individual se faz presente, reforçando o chamado “embuste meritocrático”, uma crítica à ideia de meritocracia quando ela é usada de forma injusta ou enganosa. A meritocracia diz que as pessoas devem ser recompensadas pelo seu esforço e talento, mas, na prática, essa ideia pode mascarar desigualdades.

Segundo a pesquisadora, essa crença se manifesta na visão de que bastam dedicação e trabalho árduo para uma carreira bem-sucedida, ignorando barreiras como a falta de suporte financeiro, infraestrutura e condições familiares adequadas. “Muitos atletas acreditam que, se trabalharem duro, inevitavelmente alcançarão o sucesso, sem considerar as dificuldades impostas pelo sistema esportivo”, afirma.

Dessa forma, o imaginário dos jovens jogadores oscila entre o desejo genuíno de realização profissional e as armadilhas de um discurso que desconsidera os obstáculos estruturais do futebol no Brasil. Enquanto alguns conseguem transformar o talento em carreira, a maioria lida com um sistema que privilegia poucos e reforça desigualdades, mantendo vivo o sonho, mas sem garantir que ele se concretize para todos.

Além do campo

A pesquisa utilizou a psicologia psicanalítica concreta — uma abordagem que busca aplicar os conceitos da psicanálise de forma prática e acessível, focando nas questões reais e cotidianas das pessoas — para entender como os jovens jogadores de futebol enxergam a carreira e as influências sociais que a cercam. Isso permitiu analisar tanto os sentimentos e expectativas dos atletas quanto os fatores externos que impactam suas trajetórias.

Com esse olhar, foi possível identificar não só os sonhos e motivações dos jogadores, mas também desafios estruturais, como a pressão social e econômica sobre esses jovens e a influência do sistema no qual estão inseridos. “Isso possibilitou a identificação dos campos ambientais, ampliando a compreensão do imaginário dos jovens e das contradições que eles vivenciam”, aponta. A pesquisa revelou como muitos enxergam o futebol como um caminho para mudar de vida, mas nem sempre percebem as barreiras impostas pelo próprio meio esportivo.

Além de analisar essas questões, a metodologia também garantiu que os jogadores tivessem lugar no estudo. “É uma abordagem especialmente elencada para ‘dar voz’ aos participantes da pesquisa e produzir conhecimento compreensivo sobre a vida humana concreta”, destaca a pesquisadora. Com isso, o estudo não apenas mostrou como esses jovens sonham com o futebol, mas também trouxe à tona os desafios que enfrentam para transformar esse sonho em realidade.


Esta reportagem é parte de uma série sobre pesquisas brasileiras com temáticas relacionadas à juventude, compiladas em uma ferramenta de busca própria do Ciência na Rua, que em breve estará disponível em nosso site.

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