A descoberta de que um hormônio produzido naturalmente pelo organismo tem influência nos efeitos da doença de Alzheimer pode indicar um caminho para tratar essa demência e talvez outras. Os resultados das pesquisas dos grupos liderados pela neurocientista Fernanda De Felice e pelo bioquímico Sergio Teixeira Ferreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foram bastante promissores: entre outros aspectos, camundongos com a doença que se exercitavam ou que eram tratados com a substância passaram a agir como os camundongos saudáveis. O artigo foi publicado no início de janeiro na Nature Medicine. O Ciência na Rua conversou, por e-mail, com Rudimar Luiz Frozza, pesquisador do Instituto Osvaldo Cruz (Fiocruz) e um dos autores do artigo.
O estudo de vocês concluiu que a irisina pode ajudar a prevenir e combater o mal de Alzheimer. O que é essa substância e como ela age?
A irisina é um hormônio produzido pelo músculo quando praticamos atividade física e liberado na corrente sanguínea com ação em diversos órgãos. Embora o mecanismo de ação da irisina tenha iniciado a ser compreendido, principalmente na regulação do metabolismo, seus efeitos no cérebro ainda não são conhecidos. Nosso estudo mostrou que a irisina melhora a comunicação entre os neurônios preservando as sinapses, espaços entre os neurônios onde os neurotransmissores (substâncias que fazem a comunicação entre as células nervosas) são liberados.
A irisina também impede que toxinas responsáveis pelas alterações neurodegenerativas que levam ao desenvolvimento da doença se liguem aos neurônios. Além disso, ela também promove alterações químicas dentro dos neurônios, as quais levam a melhora na memória. Dessa forma, a irisina protege o cérebro contra a perda da capacidade de armazenar informações e também ajuda a restaurar a memória perdida com o avanço da doença.
Por que vocês decidiram pesquisar o funcionamento da irisina?
Nosso grupo de pesquisa vem tentando compreender os mecanismos envolvidos no desenvolvimento da doença de Alzheimer há mais de 10 anos. Sabíamos que alterações no metabolismo, como aquelas que ocorrem no diabetes do tipo 2, são muito semelhantes às alterações que ocorrem no cérebro de pacientes com doença de Alzheimer. Desde a descoberta da irisina em 2012 por um grupo de pesquisa dos Estados Unidos, diversos estudos vêm sendo desenvolvidos tentando compreender o efeito da irisina sobre as alterações metabólicas que ocorrem no diabetes tipo 2 e na obesidade, entretanto seus efeitos no cérebro não haviam sido explorados. Nosso interesse em pesquisar o funcionamento da irisina surgiu a partir do conhecimento prévio relacionando diabetes e Alzheimer. Dessa forma, nos perguntamos se a irisina, funcionando como um mensageiro químico da atividade física, poderia exercer algum efeito benéfico nas alterações de memória que são observadas na doença de Alzheimer.
Como foram os testes de laboratório?
Inicialmente, descobrimos que os níveis de irisina estão diminuídos no cérebro de pacientes afetados pela doença de Alzheimer. A partir desta observação, passamos a usar camundongos manipulados geneticamente para desenvolver alterações de memória como aquelas observadas em pacientes com a doença para tentar entender os efeitos da irisina sobre o funcionamento dos neurônios e sobre as alterações da memória. Para isso, usamos três testes onde os camundongos tiveram sua capacidade de memorizar avaliada. Inicialmente, os camundongos foram colocados em uma caixa onde eram expostos a dois objetos diferentes podendo explorá-los livremente. Em seguida, os animais eram retirados da caixa e um dos objetos era substituído. Na sequência, os camundongos foram colocados novamente na caixa para explorar os objetos. Nós medimos, então, a perda de memória de acordo com o tempo em que os animais passavam explorando o objeto antigo e o novo. Enquanto os animais modificados geneticamente para desenvolver Alzheimer que não receberam irisina passavam mais tempo explorando o objeto antigo (eles não conseguiam lembrar que já o conheciam), os animais tratados com o hormônio ou que praticavam exercício físico recuperavam a capacidade de lembrar tal qual os camundongos normais.
Em outro teste, os animais eram colocados em um labirinto aquático onde eles deveriam encontrar uma plataforma e, então, não precisariam nadar. Embora a plataforma estivesse escondida, pistas visuais auxiliavam o caminho até ela. Após alguns treinos, os camundongos normais, sem Alzheimer, conseguiam lembrar do caminho. Entretanto, os animais que desenvolviam a doença demoravam muito mais tempo para encontrar a plataforma, muitas vezes nem a encontravam. Quando estes camundongos eram tratados com irisina (ou aumentavam sua produção através do exercício) eles conseguiam encontrá-la facilmente, lembrando do caminho.
Um terceiro teste, chamado de medo condicionado, também foi usado. Neste teste, os camundongos foram colocados dentro de uma caixa onde levavam pequenos choques durante 2 segundos e em seguida eram retirados da caixa. Vinte e quatro horas após este treino, os animais eram colocados nesta caixa novamente e os que lembravam que haviam levado um choque permaneciam imóveis (com medo) por mais tempo, já os que desenvolviam Alzheimer, não. Camundongos tratados com irisina ou que haviam praticado exercício físico anteriormente conseguiam reter a memória da mesma forma que camundongos normais.
Os resultados indicam a importância de atividades físicas ao longo da vida para prevenir Alzheimer. Além disso, a substância poderá vir a ser usada para terapias em pacientes que já tenham a doença?
É importante ressaltar que ainda que tenhamos observado que os níveis de irisina estão diminuídos no cérebro de pacientes com Alzheimer, nosso estudo foi realizado em camundongos. Dessa forma, é preciso mais estudos sobre a ação deste hormônio para confirmar a hipótese com mais testes e posteriormente envolver pessoas antes que um tratamento para pacientes possa ser implementado.
Entretanto, nossos resultados podem embasar a criação de medicamentos contra a doença que atualmente não possui um tratamento efetivo. O fato de a irisina ser produzida pelo próprio organismo diminui as chances de efeitos colaterais, o que dá esperança para novos tratamentos. Assim, já é possível pensar na possibilidade de desenvolver medicamentos à base de irisina, que serão usados tanto por pacientes com a doença de Alzheimer quanto por pacientes que apresentam alguma limitação que impeça a prática de atividade física, como por exemplo pacientes com doenças articulares.
Quais são os próximos passos dessa pesquisa?
Nosso próximo passo é compreender melhor a função da irisina no cérebro. É preciso descobrir mais detalhadamente como este hormônio desencadeia seus efeitos benéficos sobre os processos de memória e no funcionamento das células nervosas. Além disso, iremos tentar determinar quais exercícios, e realizados com que freqüência, são mais eficazes em produzir irisina, além de tentar entender melhor o efeito da atividade física no cérebro de pacientes com doença de Alzheimer.