– Estou muito mal, doutor. Péssimo. Nas últimas.
– O que o senhor está sentindo?
– Melhor perguntar o que eu não sinto.
– Pode ser mais específico? Não temos muito tempo.
– Calma. Só um pouquinho de paciência. Acabei de entrar. A consulta nem começou. Fiquei quase quarenta minutos na sala de espera, apesar do horário marcado.
– Os sintomas?
– Meu nariz vai cair. Não para de escorrer. Parece as cataratas do Iguaçu. É fungação o tempo inteiro. Não tem lencinho que dê conta. Não saio da farmácia. A mocinha que atende na que fica na esquina de casa já me chama pelo nome. A desgraçada da napa arranha também. É como se uma gilete fizesse um tour pelas minhas narinas, indo e voltando, indo e voltando.
– Coça?
– Nossa, na mosca. Coça demais. É irritante. Esfrego, aperto, dou piparotes na ponta. Nada alivia. Vontade monstro de arrancá-lo. Sinto a todo instante um cheiro azedo, fedorento.
– O senhor está fanho mesmo.
– Parece que tem um fogareiro na minha garganta. Arde de dar desespero. Queima. Perdi a voz na semana passada. Puxava, forçava. Nada. Não saía. Fiz uma apresentação na agência só com gestos. Os clientes não ficaram cinco minutos na sala. Desistiram do negócio. Nunca fui bom de mímica. Era expulso da brincadeira quando criança. Preferia mil vezes esconde-esconde. Ninguém me achava.
– Foco…
– Infeccioso? O senhor nem me examinou.
– Vou examiná-lo, fique tranquilo. Não vamos perder o foco da conversa. O senhor estava se queixando que o nariz e a garganta incomodam.
– Os olhos também, doutor. Tem areia neles. Ainda estão muito vermelhos?
– Recomendo que consulte um oftalmo. Posso indicar um colega.
– Agradeço.
– Sente-se aqui na maca, por favor. Pode relaxar. Abra bem a boca e coloque a língua para fora.
– Fora, Temer!
– Senhor, o Comitê Organizador proibiu manifestações políticas durante a Olimpíada também nas arenas médicas. Não quero problemas.
– Entendo. Golpistas canalhas. Cínicos. Hipócritas. Ditadura nunca mais!
– Senhor… são as regras.
– Impostas pelo governo ilegítimo e usurpador daquele que não deve ser nomeado.
– Se não parar, vou ter de solicitar apoio dos comensais da guarda nacional médica. Condução coercitiva. Lamento.
– Esse palitinho de sorvete na goela incomoda, hein?!
– Diga trinta e três, trinta e três, trinta e três.
– Pneumotórax. Manuel Bandeira. Bonito, doutor. Só não vá me dizer que o que resta é tocar um tango argentino.
– Não é o caso. Garganta irritada, inflamada. Nariz cheio, com secreção. Quadro típico. É a poluição.
– Quando acordei hoje e abri a janela, dei de cara com aquela crosta cinza nojenta no horizonte. Deprimente. São oito milhões de automóveis na cidade, a maior frota do país, doutor. E aquele lixo fumacento saindo dos escapamentos dos carros, ônibus, caminhões, motos. Quem aguenta?
– Para o senhor entender, bem resumidamente: o monóxido de carbono causa redução do oxigênio no sangue, provocando vertigens e tonturas.
– Putz, é assim mesmo. Tem horas em que me sinto aéreo, atordoado. Meio lesado, sabe? Sequelado. Perco a concentração. É como se tivesse fumado um baseado. Não me leve a mal, doutor. O senhor já deve ter dado seus tapinhas. Confessa, vai. Brincadeirinha. Não fumo nem cigarro. Careta total.
– Melhor assim. Voltando. O ozônio é responsável pelas dores de garganta e ouvido, as coceiras no nariz. Otite, faringite, laringite, amidalite, rinite.
– Maldito Tite. Tem remédio para as retrancas? A Seleção vai se classificar para a Copa da Rússia? Jamais ficamos fora de um Mundial, doutor.
– Me deixe terminar, por gentileza. Perigoso é também o material particulado, aquela poeira invisível, que agrava os quadros de asma e bronquite. Portanto, repouso, muita água e inalação com soro fisiológico. Vou receitar antialérgico e anti-inflamatório também.
– Atestado para o trabalho?
– Não há necessidade.
– Um descansinho sempre ajuda, doutor. Dois dias. Emendo com o final de semana e estamos combinados. Nada feito? Tudo bem. Tentei. Caminhar faz bem?
– Com certeza.
– Mesmo com esse ar imundo? Doutor, um amigo pesquisador, fera mesmo nessa área, daqueles que fez mestrado e doutorado, me contou que a poluição mata mais que os acidentes de trânsito nessa cidade maluca. Tomei um susto. É isso mesmo, doutor?
– Seu amigo tem razão.
– Ele disse também que respirar o ar de São Paulo durante duas a três horas, principalmente em locais de grande circulação de carros, como a avenida Paulista, corresponde a fumar um ou dois cigarros por dia. Fumo sem botar um cigarro na boca, doutor!
– É fato. Mais alguma dúvida?
– Fico imaginando o que acontece com os amarelinhos, os fiscais de trânsito, sabe, que passam o dia nas marginais Pinheiros ou Tietê. Os pulmões desses caras devem ficar estourados.
– Sofrem muito.
– O senhor anda de ônibus, doutor? É um inferno no inverno. As pessoas fecham todas as janelas. Tudo abafado, ar não circula. Os vírus podem escolher quem querem atacar. Livre circulação. A mão invisível do mercado. Lei da oferta e da procura. Adam Smith já explicou tudo isso.
– Procure caminhar nas áreas verdes e arborizadas. Combinado?
– Certo. Só mais uma dúvida. Comprei uma bicicleta. Pedalar ajuda?
– É … pedalada pode causar outros impedimentos. Não é bom. Prefira mesmo as caminhadas.
– Entendi. Pedalar não é bom. Mas impedimento sem crime de responsabilidade é golpe, né, doutor? Diga aí. Sério. O que o senhor acha?
– Pela última vez, por favor, senhor. Basta. Não me obrigue a retirá-lo à força. Aliás, estouramos o horário. A consulta terminou. Aqui está a receita. Passar bem.
– Doutor, nas suas costas, cuidado com o golpe…
– Tem golpe nenhum! Saia! Já!
– Doutor, só quis avisar que a janela está escancarada. Vento frio, corpo quente. Não faz bem. O senhor pode pegar uma gripe. Travar a coluna. E ficar impedido. De trabalhar. Cuidado com o golpe de ar, doutor. Golpe de ar. Não precisa estressar. Vou dar o fora. Temer.