Diferentemente do que se sabia até agora, não foram os homens modernos os primeiros artistas. Descobertas arqueológicas divulgadas na quinta feira, 22/02, na revista Science, mostram arte feita 20 mil anos antes dos modernos. Muito provavelmente pelos homens de Neandertal.
“Esta é uma descoberta incrivelmente emocionante que sugere que os neandertais eram muito mais sofisticados do que se acredita popularmente”, disse o repórter Reinaldo José Lopes, da Folha de São Paulo, o autor principal do artigo, Chris Standish, arqueólogo da Universidade de Southampton. “Nossos resultados mostram que as pinturas que datamos são, de longe, as mais antigas artes das cavernas conhecidas do mundo”.
Os pesquisadores da equipe de Stadish investigaram três cavernas na Espanha, La Pasiega, Maltravieso e Ardales, e encontraram várias artes rupestres com data de até 64 mil anos. Para determinar essa idade, que muda tudo, os cientistas avaliaram os carbonatos que ficam sob e sobre as imagens encontradas. Ou seja, parece que nossos ancestrais curtiam mesmo desenhar, hábito que até ontem se atribuía aos modernos, que ficaram por aqui entre 45 mil e 40 mil anos atrás.
Em outro estudo, publicado na Science Advances, os pesquisadores mostram que conchas marinhas tingidas e decoradas encontradas também em cavernas espanholas sugerem que os Neandertais possuíam sistemas de comunicação simbólicos e complexos.
Junto com as imagens propriamente ditas, os cientistas acabaram encontrando uma nova ideia, a de que os neandertais – nômades e sem organização em torno de um Estado – eram capazes de fazer arte. Essa proposição sacode um pouco a própria noção do que é arte e a que ela se presta. O professor de filosofia da Escola Viva e do Colégio Pentágono, José Bento Ferreira, pesquisador no programa Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA-USP), acredita que o mais importante da notícia é o etnocentrismo da história da arte.
“A ideia de que a história da arte é uma narrativa construída num determinado momento com um determinado ponto do vista que corresponde a determinados interesses. Por exemplo, a própria descoberta dos desenhos de Lascaux (complexo de cavernas na França), em 1940, foi revolucionária porque não se esperava encontrar desenhos com movimento e volume produzidos por pessoas do Paleolítico (De 2,5 milhões de anos atrás até 10mil a.C), que eram nômades e sem Estado”, explica o professor.
Naquele momento, a história da arte privilegiava um determinado modo de vida e uma ideia de civilização. Por centenas de milhares de anos o ser humano viveu de caça e coleta e “do ponto de vista da ‘civilização’”, alerta Ferreira, “esses seres humanos não podiam passar de ‘homens das cavernas’”. Imagine então fazer arte, que petulância!
Lembra dOs Croods, desenho animado dirigido por Chris Sanders e Kirk DeMicco e lançado em 2013? Os homens do Paleolítico – neandertais inclusos – eram vistos assim. “Só podiam se preocupar com a subsistência, não podiam ter imaginação, técnica, conhecimento e cultura, muito embora conhecessem a rota migratória dos animais e dominassem o fogo. Sabiam produzir e manter o fogo e ensinar como fazer isso”, diz Ferreira.
Em 2008, antropólogos descobriram um pingente conhecido como Vênus de Schelklingen, em Hohle Fels, na Alemanha, “mais antigo que a estatueta de Willendorf, e com ele uma flauta! Então eles tocavam música e faziam festas! E Hohle Fels já tinha vestígios de Neandertais!”, chama atenção o professor de filosofia.
Tudo isso significa que a nova fronteira entre homens que faziam arte e que não faziam arte não era política, mas biopolítica. Em outras palavras, o homem de Lascaux era como nós, mesmo sendo nômade e sem Estado. “Mas ele era da nossa espécie, porque é típico da nossa espécie ter pensamento simbólico, etc”, provoca.
Um grande problema apontado por Ferreira é que quando se trata do Paleolítico há um enorme vazio de informações. Ao contrário do Neolítico (de 10 mil antes de Cristo para frente), não se sabe ao certo por que as imagens eram feitas, como eram usadas. Os paleontólogos têm hipóteses baseadas em observações contemporâneas. Os pesquisadores de hoje, lembra, estão restritos aos achados materiais, “imagens muito mais antigas podem ter sido produzidas e que não chegaram até aqui. Nossa esperança é o progresso tecnológico, que pode revelar novas imagens”. É parecido com o que acontece com a descoberta da equipe de Chris Standish divulgada pela Science: os desenhos parecem ser conhecidos, mas a datação obtida agora os atribui aos neandertais.
Então, a grande questão contida no achado de Standish, defende Ferreira, “não é sobre a arte, mas sobre a humanidade. É filosófica: o que é um ser humano? a espécie? será que o conceito de espécie é assim tão essencial? Houve várias espécies de hominídeos, várias espécies humanas?”.
À reportagem da Folha de São Paulo, o coautor do artigo, Dirk Hoffmann, pesquisador do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, também segue essa linha: “O surgimento da cultura material simbólica representa um limiar fundamental na evolução da humanidade”, disse . “É um dos principais pilares do que nos torna humanos.” E o pesquisador do Interunidades em Estética e História da Arte da USP fecha a reflexão: “Arte e ciência são atividades humanas, não da espécie homo sapiens sapiens, mas muito anteriores, o impacto da descoberta dos desenhos na Espanha é começar a provar que a ideia de humanidade vai muito além do conceito de espécie”, sugere José Bento Ferreira.