jornalismo, ciência, juventude e humor
Helena Nader: A ciência brasileira ainda não reflete o nosso povo

Fabrício Marques, Pesquisa Fapesp

Primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Ciências, biomédica da Unifesp fala da importância de ações afirmativas e aponta a educação como prioridade

A biomédica da Unifesp ficou conhecida pela postura combativa quando presidiu a SBPC, entre 2011 e 2017 (foto: Léo Ramos Chaves)

Pela primeira vez, em mais de um século de história, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) será presidida por uma mulher. A biomédica Helena Bonciani Nader, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi eleita em chapa única para comandar a entidade pelos próximos três anos e sucede a partir de maio o físico Luiz Davidovich, no cargo desde 2016. Nader coordena um laboratório na Unifesp que é referência em estudos sobre a heparina, polissacarídeo conhecido por sua ação como anticoagulante, e nos últimos anos ficou conhecida por sua postura combativa enquanto presidiu a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Desde 2019, ela era vice-presidente da ABC. Em 2020, passou a integrar o Conselho Superior da FAPESP.

Sediada no Rio de Janeiro, a ABC foi fundada em 1916 por um grupo de pesquisadores interessados em desenvolver  a pesquisa e difundir o trabalho dos cientistas – o astrônomo francês Henrique Morize foi o primeiro presidente. Hoje, congrega 568 membros titulares, entre pesquisadores de vários campos do conhecimento, que participam de debates e municiam estudos sobre temas da ciência e do desenvolvimento do país. Na entrevista a seguir, Nader fala de seus projetos à frente da academia.

Quais são os seus planos para a ABC? Em que frentes pretende avançar?
As pessoas podem ter ideias, mas ninguém faz nada sozinho. Meus antecessores fizeram muito. A gestão de Eduardo Moacyr Krieger [1993-2007] realizou ações de impacto que promoveram a internacionalização da ABC e a criação do IAP [Inter Academy Partnership]. A academia passou a dialogar com diversas organizações internacionais. Depois, Jacob Palis [2007-2016] aprofundou essa estratégia. Ele inclusive se tornou presidente da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento, a TWAS. Na gestão do Jacob, a ABC teve financiamento para elaborar relatórios sobre grandes temas de interesse para a ciência e o desenvolvimento do país. Isso foi importante para garantir o protagonismo da academia. Ele também acentuou parcerias, por exemplo, com a SBPC. As duas instituições passaram a atuar de forma complementar. O Luiz Davidovich [2016-2022], de quem eu fui vice-presidente nos últimos três anos, aumentou ainda mais a internacionalização e intensificou as discussões sobre políticas nacionais de ciência e tecnologia. Eu preciso dar esse histórico, senão alguém vai ler e dizer: “Que mulher pretensiosa, ignorou tudo o que aconteceu antes”. Sou uma pessoa que trabalha em grupo.

Mas o que o grupo agora eleito pretende fazer?
Um dos desafios é estreitar ainda mais o diálogo com o Congresso Nacional. Precisamos mostrar de forma muito clara para os parlamentares, e os governantes de maneira geral, a importância da ciência e da educação em todos os níveis. Nós estamos em 2022. Significa que quase um quarto desse novo século já se passou e nós estamos patinando, para não dizer que, sob vários aspectos, andamos para trás, no que se refere à educação e à ciência. Educação e ciência têm de ser projetos de Estado. Quando os nossos políticos vão ao exterior, independentemente do partido, voltam falando: “Olha o que a ciência norte-americana fez, olha o que a ciência de Israel fez, olha a Coreia do Sul”. Nenhum deles enxerga por que isso aconteceu. Não foi acaso. Foi um projeto. Na Coreia, hoje quem mais investe em ciência é o setor empresarial, mas houve uma decisão de Estado lá atrás de investir em educação. A educação é o começo. A educação gera a ciência, que gera a tecnologia, que vai gerar inovação. Tem alguns políticos que dizem: quando o Brasil precisar de uma tecnologia ou de uma inovação, ele compra. Tenho alertado há anos, não só a esse governo, que comprar tecnologia não é só apertar botão. Até para isso é preciso ter gente capacitada.

A sociedade brasileira valoriza a ciência?
Sim. O brasileiro já acreditava na ciência e a pandemia mostrou de forma muito clara para a sociedade o valor da ciência. Mas precisamos dialogar mais com a população, traduzir o que a ciência brasileira está fazendo para a sociedade, a fim de que ela se apodere desses conhecimentos e aumente suas demandas. O político dos Estados Unidos não é melhor do que o nosso – é a sociedade que cobra dele. Aqui a maioria das pessoas esquece em quem votou para o Parlamento. Quando elegemos deputado federal, estadual ou vereador, estamos dizendo: “Eu passei uma procuração para você falar em meu nome”. Eles não estão falando em nosso nome. No ano passado, quando o Congresso cortou recursos do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], eles não falaram em nosso nome.

A mobilização que a senhora sugere tem sido uma das marcas da SBPC, que a senhora presidiu por seis anos, entre 2011 e 2017. A ABC não corre o risco de ter iniciativas redundantes?
Nós e a SBPC somos complementares. A ABC congrega grandes nomes da ciência brasileira em diferentes áreas do conhecimento, e a SBPC congrega cientistas e sociedades científicas das diferentes áreas do conhecimento. A ABC sempre produziu documentos e livros sobre temas de ciência relevantes para o Brasil e tem buscado influenciar a política científica. Ela pode discutir esses temas com muita propriedade, com os membros que ela congrega e trazendo outros pesquisadores que não fazem parte dos quadros da ABC. A diretoria que foi eleita conta com 13 pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes regiões do Brasil e será esse grupo que trabalhará para levar a ABC aos novos desafios que fazem parte da ciência do século XXI. Mas não adianta fazer isso se não houver, do lado dos governantes, quem se disponha a ouvir, por isso essa busca pelo diálogo continuará muito presente.

Que tipo de tema vocês pretendem abordar nos estudos que a academia vai produzir?
Isso ainda não foi delineado, mas uma das coisas que quero fazer, e sei que isso vai ter apoio de toda a diretoria, é um estudo profundo sobre educação. Muita gente diz: “Temos que ter mais cientistas”. Eu concordo, mas a minha preocupação com a formação em ciências não é ter mais cientistas. É ter cidadania. Um indivíduo que não consegue pensar cientificamente também não consegue ouvir uma informação e julgar se é real ou não. A nossa escola ainda é segregadora e está acentuando as diferenças. O Brasil perde muitos talentos por falta de oportunidades. A academia pode dar contribuições nesse e em tantos outros temas, como meio ambiente, direitos humanos, energia.

Como a ABC financia suas atividades?
Nenhum dos membros da diretoria é remunerado, mas a ABC tem uma sede e precisa manter seu corpo de funcionários. A ABC, como a SBPC, recebe recursos via Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, aprovados pelo Congresso Nacional a cada ano na Lei Orçamentária Anual. Esses recursos são destinados à infraestrutura da instituição. Para outras atividades, temos buscado sócios institucionais, que, é claro, preencham os critérios éticos e de respeito ao meio ambiente. Mas muitas pessoas e empresas que se enquadram nesse perfil não se interessam em colaborar. Aqui no Brasil, diferentemente do que acontece na Europa, no Reino Unido e nos Estados Unidos, o empresário não enxerga essas parcerias como algo importante para eles, com algumas exceções. Mas vamos insistir. Mapeamos nomes e vamos atrás deles agora.

A ABC teve apoio de governos e agências públicas de fomento para produzir documentos e relatórios. Esse tipo de suporte não tolhe sua independência?
A ABC tem se manifestado de forma contundente, em especial nesses últimos três anos, em relação a posturas de pessoas e de governos. Em março, um documento lançado pela Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento [ICTP] contra a ditadura e ameaças de golpe militar teve a academia e a SBPC como signatárias. Talvez a ABC preferisse não assinar documentos como esse anos atrás. O patrocínio de governos a nossos projetos pode causar algum ruído, mas isso não nos intimida. A ABC se manifestou claramente em relação aos pseudotratamentos contra a Covid-19, à eficiência das vacinas, à defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. Temos buscado estreitar o diálogo com a sociedade. Em 2021, a ABC elegeu como membro colaborador o escritor, xamã e líder político yanomami Davi Kopenawa, e tenho muito orgulho de ter participado dessa diretoria.

A ABC reflete a diversidade da ciência brasileira?
A ciência brasileira – não vamos pôr a culpa na academia – ainda não reflete o povo brasileiro. É uma ciência muito mais do branco e do europeu do que do negro. As ações afirmativas vêm sendo fundamentais. É preciso festejar quando uma mulher chega à minha posição na academia, mas isso deveria ser algo corriqueiro, pois as mulheres são mais de 50% da população. Não é só no Brasil. Na Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, que é muito mais velha, a primeira mulher presidente veio agora, com a Marcia McNutt. A do Reino Unido nem teve.

Como a ABC se posiciona em relação às ações afirmativas?
Mérito vai sempre ser o objetivo da ABC. Mas o fato de a academia ser meritocrática não significa que só os que estão dentro dela têm mérito. Em relação às mulheres, a academia fez um diagnóstico e viu que havia uma participação feminina muito baixa. Antes de mim, houve uma vice-presidente espetacular entre 1995 e 1997, que poderia ter sido presidente, a Johanna Döbereiner [1924-2000], pioneira na biologia de solos. Não posso julgar, mas eu posso constatar que ela tinha todas as qualidades para ter sido presidente. Por que havia poucas mulheres na academia? Porque tinha menos mulheres sendo indicadas como membros. Se elas são menos indicadas, com o mesmo currículo de qualidade, elas vão ser minoria para sempre. Então começou, sem abrir mão dos critérios de mérito, uma busca ativa por membros do sexo feminino. Após a Assembleia Geral Ordinária para escolha dos novos membros a serem diplomados em 2022, entre os 13 titulares eleitos 8 são mulheres.

E em relação à inclusão de pesquisadores negros na ABC? Eles ainda são raros…
Há poucos cientistas negros na ABC. Não sei responder quantos são. Conhecia um, o químico Oswaldo Alves [1946-2021], da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], que morreu recentemente. Era um grande amigo e faz uma falta enorme. Você poderia pedir: “Cite outros”. Eu não saberia dizer. “Mas que raio de presidente ou presidenta é essa, que não sabe responder quantos negros há na academia?” Eu sou transparente: eu não sei. Precisamos fazer esse diagnóstico. Sabemos que poucos negros chegaram ao topo de titulação no Brasil. O país tem um passado escravocrata e, ao fim da escravidão, disse para os negros: “Agora vão. Vocês são livres, se virem”. Demorou muito para o país começar a ter esse olhar das ações afirmativas. Política afirmativa não é só cota. A busca ativa, como a que fizemos com as mulheres, é uma ação afirmativa. Vamos fazer esse diagnóstico para que se reverta esse quadro. Quando era pró-reitora de Graduação na Unifesp, nós fomos, junto com a UnB [Universidade de Brasília], as primeiras universidades federais a criar uma política de ação afirmativa, que era 10% de vagas novas para alunos de escolas públicas, negros e indígenas. Com a política de 50% de cotas para alunos de escolas públicas negros e indígenas, vemos que as universidades federais refletem mais a diversidade da sociedade brasileira.

Queria que a senhora falasse um pouco sobre a rotina na ABC. Os acadêmicos se reúnem presencialmente?
Temos um conjunto enxuto e altamente capacitado de funcionários. Eles tocam o dia a dia da academia de forma excepcional. Desenvolvemos projetos, os funcionários escrevem esses projetos, que depois são revisados pela diretoria. É preciso valorizar esse trabalho. Com os acadêmicos a história é outra: temos de trazer o pesquisador para dentro da instituição. A pandemia acabou ajudando nesse sentido, com os seminários virtuais, mas hoje tem tanta gente fazendo seminário ao mesmo tempo que não sabemos mais qual escolher. Durante a pandemia tivemos outras atividades. Fizemos dois megaeventos com o Nobel Prize Outreach, que é o braço de comunicação da Fundação Nobel, um que alcançou todos os estados brasileiros e outro com toda a América Latina e Caribe. Estive à frente disso como vice-presidente. A ABC tem um papel muito relevante no diálogo com outros países latino-americanos e com o Brics [Brasil, Rússia, Índia. China e Africa do Sul]. Desde 2019 sou copresidente da Ianas, a Rede Interamericana da Academia de Ciências que se iniciou em 2004 graças à visão e ao trabalho do professor Hernan Chaimovich, que foi seu primeiro copresidente. São atividades que nós temos que manter com mais intensidade.

Em 2013 a senhora concedeu uma entrevista a Pesquisa FAPESP, quando assumiu o segundo mandato à frente da SBPC, e discutiu questões como a repartição dos royalties de petróleo para a ciência e o programa Ciência sem Fronteiras. Evoluímos em relação às preocupações daquela época?
Vou começar pelo lado positivo. Naquele momento estávamos lutando por um arcabouço jurídico para ciência, tecnologia e inovação que foi bem-sucedido. Tivemos uma emenda à Constituição em 2015, depois a Lei nº 13.243, de 2016, conhecida como marco legal da ciência, tecnologia e inovação, e a regulamentação da lei em 2018. Outro ponto positivo daquele período foi aproximar os diferentes atores, o meio científico trabalhando junto com empresários, legisladores, fundações de apoio. A legislação existe, mas como fazer para que seja aplicada de fato? Esse ainda é um desafio grande e a ABC precisará ter protagonismo. O governo quer fazer uma legislação para definir o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação e tem pressa, para atender a uma demanda do Tribunal de Contas da União. Isso tem que ser muito bem acordado entre todos os atores. Estamos tendo grandes dificuldades. Os acadêmicos, a universidade, os institutos de pesquisa, os financiadores, incluindo as fundações de amparo à pesquisa, fundações das instituições e os empresários, além do governo, todos têm que trabalhar em conjunto.

E o lado negativo?
Sobre financiamento à ciência nem preciso falar. O que aconteceu foi trágico. Conseguimos aprovar a lei para descontingenciar o FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], mas o FNDCT virou agora tábua de salvação. Era para ser um complemento ao orçamento existente, mas virou o essencial. A verdade é que as coisas não vão acontecer apenas por meio do FNDCT. Os recursos para ciência, tecnologia e inovação na Lei Orçamentária Anual têm diminuído significativamente ao longo dos últimos anos.

Mas o orçamento da ciência melhorou em relação ao ano passado, não? Qual é a perspectiva deste ano?
A perspectiva é que o recurso seja liberado em 1/12 avos dos recursos do FNDCT a cada mês. Vamos ver. O conselho do FNDCT é responsável por alocar os diferentes recursos e estabeleceu que 50% dos recursos são empréstimos reembolsáveis, que a gente sabe que não são utilizados porque as empresas não se interessam por pagar os juros. Propusemos 15% para reembolsáveis, uma vez que esse é o percentual que vem sendo utilizado. Perdemos essa votação, vamos ter que continuar lutando.

A senhora falou, no começo da entrevista, da dificuldade de arrumar quem ouça. A quem se referia?
Quando a gente fala com pessoas do Ministério da Economia, eles dizem que são a favor da ciência. Mas seus atos vão em sentido contrário, assim como na Secretaria de Governo da Presidência da República. Não dá para acreditar que sejam a favor. No final do ano passado, o Congresso aprovou um corte de recursos destinados ao CNPq. E os projetos aprovados estão sendo pagos agora com recursos do FNDCT deste ano. Não vou julgar se as ações que receberam o valor cortado tinham ou não mérito. Mas eu sei que a ciência foi muito prejudicada, porque havia um acordo e quem rompeu o acordo foi o Legislativo. Isso para mim é quebra de pacto, eu não aceito. Eu torno a insistir, eu dei o meu voto para deputado e senador para eles fazerem o que é interesse da nação, não o que é interesse deles. Eu não sei se as emendas parlamentares que receberam recursos são válidas ou não. Não estou julgando. Mas o destino dos recursos que iríamos receber era aberto, todo mundo sabia para onde ia. Eu sou briguenta, só espero não prejudicar a academia. Sou filha e neta de imigrantes sírio-libaneses e italianos. Esse país recebeu a minha família de braços abertos. Nós somos, minha irmã e eu, a primeira geração com acesso à universidade e esse país nos ofereceu tudo. Eu não vou desistir do Brasil. Espero que ele não desista de mim.

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade