Na semana que passou, a Folha de São Paulo publicou boa e curiosa reportagem sobre trabalhos científicos apresentados no Congresso Mundial do Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado em Buenos Aires, que destacavam como o filme ‘Divertida Mente’, da Pixar, nos ensina a lidar com todas as nossas emoções, ‘mesmo as mais difíceis’. Lembrei-me imediatamente de uma crônica que escrevi em julho de 2015 (por coincidência, faz um ano) sugerindo, com graça e bom humor, como Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojinho entram em campo, batem um bolão, disputam cada jogada e definem os esquemas táticos dos nossos comportamentos durante uma partida de futebol. O texto faz parte de meu mais recente livro, “Crônicas Boleiras”, lançado em maio pela Chiado Editora. Tomo a liberdade de trazê-lo para cá e compartilhá-lo com os leitores e leitoras de Ciência na Rua.
FUTEBOL DIVERTIDA MENTE
A animação da Disney/Pixar que faz estrondoso sucesso no cinema, incentivando inteligências e arrebatando sensibilidades de crianças e de adultos, foi exibida em sessão doméstica especial ontem, com as devidas adaptações e em sua versão ludopédica. Porque foi assim que nasci – com uma ilha do futebol que ocupa espaço gigantesco na minha cabeça. Acabou se espalhando por terras improdutivas e ocupou inclusive lugar de várias outras ilhas. Reforma agrária neuronal democrática. Nessas terras férteis de sinapses, um montão das bolinhas das memórias de longo prazo – e, vejam só a coincidência, estamos falando de bolas – estão relacionadas a campeonatos, gols, artilheiros, tabelinhas e partidas inesquecíveis. Quando o jogo finalmente começa na telinha da TV (queria estar na arquibancada, a chuva não deixou), Copa do Brasil, mata-mata, noite fria de quarta-feira, a bagunça começa na zona mista da minha cachola, todos lá, gesticulando de montão, falando sem parar e brigando para ver quem aparece mais e manda nessa sinfonia. A Alegria, bela e formosa, confetes e serpentinas, chama logo a atenção e tenta me convencer que ‘hoje é barbada, saíremos da Vila classificados’. Tristeza, sábia e prudente, insiste em me obrigar a acessar as caixinhas guardadas de lembranças melancólicas de horrorosas derrotas conhecidas naquele mesmo palco futebolístico. É empurrada de lado pela Raiva, chega para lá, ombrada e cotovelada, cutuco na canela, bicuda no tornozelo, aos berros e sem pedir licença, vociferando contra a diretoria que não paga salários e dizendo que é inadmissível que o Santos, com tanta história, tantas glórias, esteja na zona do rebaixamento do Brasileirão. ‘Impeachment do Modesto já!’, grita, para lá de vermelha, quase explodindo. O Medo amigo de todas as horas faz disparar meu coração. E se a gente não ganhar? E se acontecer o pior? Lá vem então a Nojinho, plumas e paetês, vestidinho modernoso, requebrando na passarela, desdenhando da competição. Bem, meus amores, quem quer ganhar a Copa do Brasil? Já temos esse troféu. Se perder, disputa a Sul-Americana. Sem dramas. Muito melhor. Torneio internacional, de prestígio. Chacoalho a cabeça. Que confusão. Será que meu amigo imaginário de infância tem algo a dizer, para aliviar a tensão? Ele era bem legal. Claro, jogava bola comigo. Eu era o goleiro, ele batia pênaltis. Depois a gente invertia. Eu ganhava sempre. Era tudo tão mais fácil e divertido. No jogo de verdade, o Santos marcou logo aos três minutos. Gabriel, camisa 100. Sorrisos e comemorações. A Alegria não se conteve – eu te disse, eu te disse, eu te disse. Quase mandei desligar a buzina. O time até que jogava bem, surpreendentemente. Marcação pressão, velocidade no ataque, trocas de posições, defesa bem postada. Não demorou muito saiu até o segundo gol. De novo Gabriel, passe de Ricardo Oliveira. Alegria foi às nuvens, única e soberana, apertando todos os botões de euforia do painel de controle da minha mente. Darling, quem é esse timeco que está jogando contra a gente? Bem fraquinho, hein?, exagerou Nojinho. Cantou vitória muito antes da hora. Gol do Sport. De falta. Com desvio na barreira. A Raiva surtou e correu para empurrar com força as alavancas. Chutou o pau da barraca, espumando e espalhando fumaça por toda a sala cerebral principal. Quem mandou essa besta que estava na barreira virar de costas? O técnico fez o time recuar! Anta, estava tudo sob controle. Agora vamos para os pênaltis. Outra vez. Porcaria de time. Diretoria incompetente. Saio xingando pela sala. Sobra chute para o banquinho, o controle remoto quase voa na parede. Os vizinhos já estão acostumados com a barulheira. É assim toda quarta, domingo também; às vezes, quintas e sábados. Culpa do calendário maluco e mal planejado da Confederação Brasileira de Falcatruas/Fiascos. Relaxa, meu querido, somos um dos únicos times que não sabe o que é segunda divisão, sussurra a Nojinho. Medo. Não vamos chegar nem às oitavas? Vai ser uma vergonha, tiração de sarro federal. Tristeza. E pensar que só faz quatro anos estávamos levantando o tri da Libertadores. O que fizeram com meu Santos… Como o cérebro de boleiro destrambelhado em dias de jogo de futebol só pode mesmo ser explicado por psiquiatras de excelência – tripolaridade, tetrapolaridade, múltiplas polaridades simultâneas, sei lá – tudo volta a ficar lindo e maravilhoso no início da segunda etapa. Três a um. Geuvânio. Classificação à vista. A Alegria samba, batuca e canta ‘nascer, viver e no Santos morrer é um orgulho que nem todos podem ter’. O diabo é que aí começa a martelar na minha cabeça um personagem que não fazia parte do filme original. A Angústia. Esse cronômetro não anda. Juizão, foi falta. Segura a bola no ataque, no ataque. Tira, tira, tira! Quer me matar do coração? Nossa, essa passou raspando a trave. Caraca, o time estava bem, por que substituir e colocar esse morto-vivo em campo? Vixi, olha o tombo que esse jumento levou! Calma, pai, foi escanteio nosso. Cinco minutos de acréscimo?! Ficou louco, meu senhor? Vá para o inferno. Filhote de Eduardo Cunha! Apitou! Fim! Acabou, ganhamos, estamos classificados. Agora é só festa. Minha cabeça, porém, continua rodando a mil. Algazarra. Zorra. Alegria, Nojinho, Medo, Raiva e Tristeza adoraram o jogo. Resolveram engatar mesa-redonda na madrugada, terceiro e quarto tempos, debate-bola, linha de passe, arena, tudo junto e ao mesmo tempo. Estão elétricos. Indomáveis. Quem disse que consigo dormir?
Estarei em férias durante o mês de julho. ‘Papos sobre Ciência’ retoma sua programação normal na primeira semana de agosto. Obrigado, abraços e até lá!
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Francisco Bicudo é professor, jornalista e cronista, autor de Memórias de uma Copa no Brasil e de Crônicas Boleiras, os dois lançados pela Chiado Editora