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Fêmeas também cantam: a bioacústica da outra metade dos sapos

Amanda Nascimento, Jornal da USP

Pesquisadoras identificam vocalizações femininas em 112 espécies e propõem novas categorias para compreender o fenômeno

A “cantoria” vinda de sapos, pererecas e rãs é o que a biologia chama de coaxo. Essa vocalização desempenha um papel vital nas interações interespecíficas e intraespecíficas relacionadas à sobrevivência, aquisição de recursos e reprodução da espécie (foto: Dr. Vinícius Matheus Caldart)

O coaxar de sapos, rãs e pererecas está entre os sons característicos da natureza. Há décadas essa “cantoria” tem sido atribuída estritamente aos machos da ordem Anura, grupo taxonômico ao qual estes animais pertencem. Porém, um artigo publicado na Proceedings of the Royal Society B desafia essa lógica. Pesquisadoras do Brasil e da Colômbia encontraram registros de vocalizações femininas em 112 espécies, distribuídas entre 53 gêneros e 29 famílias, o que corresponde a 1,43% de todos os anuros descritos no mundo. O achado indica que o comportamento pode ser mais comum entre fêmeas do que se pensava.

A família Ranidae, conhecida como rãs verdadeiras, reúne o maior número de espécies com registros de cantos femininos, com 18. Na sequência aparecem Hylidae (nome científico das pererecas), com 15, Leptodactylidae (jias, rãs ou caçotes) contabilizam 14 e Eleutherodactylidae, 10.

O estudo indica que o canto delas costuma ser baixo e discreto. A razão é anatômica: diferentemente dos machos, as fêmeas não possuem saco vocal, que serve como amplificador do som dos cantos. Em temporadas reprodutivas, quando o coro de machos se torna evidente para atrair parceiras e disputar território, as vocalizações femininas ficam ofuscadas, o que explica em parte o motivo pelo qual elas ficaram tanto tempo fora do radar científico.

Na opinião de Érika M. Santana, primeira autora da pesquisa, a outra parcela corresponde a uma omissão motivada por um viés social, que contribuiu para o apagamento de cantos de anuros fêmeas. “A gente que é bióloga aprende que se você está no mato e ouve um sapo cantando, é macho. E isso é um problema, porque vai passando, de geração em geração, de biólogos e herpetólogos, o que gera um viés”, afirma a pós-doutoranda do Instituto de Biociências (IB) da USP.

O impacto mais evidente dessa exclusão é nas pesquisas, já que testes funcionais de vocalizações das fêmeas são quase inexistentes. Na revisão bibliográfica conduzida pelas biólogas, apenas 10% dos casos reportados contavam com alguma avaliação experimental de função, como experimentos comportamentais.

“Testes de função são testes experimentais para saber se o canto observado tem a função que achamos que tem. Será que, de fato, esse canto de agonia evita a predação? Ou o canto de corte altera a interação macho-fêmea? O canto de anúncio realmente atrai machos? A gente não sabe”, complementa.

A comunicação vocal é peça-chave na vida dos anuros. O consenso na comunidade científica é que machos usam o canto para atrair fêmeas, estimular a produção de hormônios para manter o status reprodutivo, anunciar a posição do macho para outros machos da mesma espécie e até reconhecer vizinhos. Em contraste, relatos de vocalizações de fêmeas têm sido ignorados ou descartados por décadas.

Classificações dos cantos

O estudo de cantos femininos enfrenta um desafio inicial com a falta de definições consistentes. Ao longo das últimas duas décadas, pesquisadores tentaram estabelecer parâmetros para a variedade de vocalizações emitidas por anuros machos e fêmeas. No entanto, essas novas categorias acabam como discrepâncias na literatura, uma vez que são variações das classificações já existentes para machos.

Em busca de contornar o problema, as autoras recorreram à análise de cerca de 3 mil artigos. “Primeiro, queríamos fazer um levantamento bibliográfico. Então exploramos palavras-chave que envolviam canto, fêmea, anuros. Foram diversas combinações e sinônimos. E foi muito difícil, porque não se encontrava muitas pesquisas específicas”, detalha Érika.

O primeiro registro de vocalizações femininas foi no livro The Frog Book, da herpetóloga americana Mary C. Dickerson, ainda no início do século 20 (foto: Dra. Johana Goyes Vallejos)

As autoras não foram a campo e, com base no material disponível, organizaram e classificaram os cantos de machos e de fêmeas. O estudo propõe seis categorias que abordam os contextos sociais em que esses cantos são produzidos e que são válidos ambos os sexos.

  • Canto de anúncio (advertisement call): vocalização espontânea usada para atrair parceiros ou competir com rivais
  • Canto de corte (courtship call): emitido de perto, antes do acasalamento; pode sinalizar prontidão ou estimular a atividade de canto
  • Canto de amplexo (amplexus call): produzido durante o abraço reprodutivo (chamado de amplexo), ainda pouco compreendido
  • Canto de soltura (release call): emitido por indivíduos não receptivos diante de tentativa de acasalamento ou toque indesejado
  • Canto de agonia ou canto agonístico (distress call): vocalização em resposta a uma ameaça imediata, geralmente predadores
  • Canto agressivo (aggressive call): usado em disputas territoriais, podendo anteceder confrontos físicos

O levantamento também considerou os contextos de emissão e a possibilidade de manipulação experimental. “Tem alguns cantos que dá para o pesquisador estimular. Por exemplo, o canto agonístico, que é um canto que o animal faz quando está assustado. A gente acha que ele ocorre em resposta a um risco, como um predador. Se o predador morde, ele canta pra soltar. Essa é uma das hipóteses.”

Para a pesquisadora, um dos principais achados é que cerca de um terço dessas vocalizações está ligado à aquisição de parceiros, o que desafia a percepção das fêmeas como “escolhedoras silenciosas”.

“Às vezes nem citam o sexo na descrição do canto de anuros. O que é isso? Pressupõe-se que é do macho” – Érika Santana

Futuro

Érika acredita que ainda há muito a ser explorado no campo da bioacústica dos anuros. Apesar dos primeiros registros de fêmeas cantando serem de 1906, a pesquisadora lembra que o interesse pelas vocalizações femininas voltou a crescer somente nas últimas décadas. “Quando fomos fazer essa revisão, a gente nunca esperou achar 112 espécies. Nunca. Por mais que seja um número pequeno dentro das 8 mil, quase 9 mil espécies de anuros descritas, a gente nunca esperou que seria tanto”, diz.

O desafio agora é compreender o que esse lapso de registros significa: se de fato as fêmeas da maioria das espécies não cantam ou se a biologia não as catalogou. Na visão de Érika, não é improvável que muitos cantos tenham sido atribuídos a machos quando, na verdade, eram de fêmeas. “E, claro, a gente precisa – e é isso que a gente propõe no trabalho – que os pesquisadores não partam do pressuposto que, se está cantando, é macho. Que eles sempre testem, chequem a morfologia e as características dos indivíduos, mesmo nem sempre sendo fácil”, aponta.

O artigo The ‘silent’ half: diversity, function and the critical knowledge gap on female frog vocalizations pode ser acessado neste link.

Mais informações: erika.ms@gmail.com, com Érika M. Santana, ou https://erikamsantana.weebly.com/

*Estagiária sob orientação de Tabita Said

 

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