Sibélia Zanon, Mongabay
- Desde o final de 2019 em funcionamento, o programa RenovaBio estimula produtores de biocombustíveis a produzir com menor emissão de carbono.
- Em seu primeiro ano, o programa sobreviveu à crise provocada pelo coronavírus e às oscilações dos Créditos de Descarbonização na Bolsa de Valores, mas ainda apresenta fraquezas.
- O programa não leva em consideração a dinâmica do uso do solo e o desmatamento indireto, fatos presentes no cultivo da soja, que constitui 70% do biodiesel produzido no Brasil.
- Embora o Brasil tenha apostado fortemente nos biocombustíveis como solução energética, novo relatório da Agência Internacional de Energia sugere que até 2050 metade da redução de emissões deverá vir de tecnologias experimentais, como baterias avançadas para veículos elétricos e sistemas de produção de hidrogênio.
Em vigência desde dezembro de 2019, o programa RenovaBio, do Ministério de Minas e Energia, aposta no incremento dos biocombustíveis para diminuir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). Além de estabelecer metas de descarbonização para as distribuidoras de combustíveis fósseis, conforme sua participação no mercado, o programa incentiva produtores de biocombustível a melhorar as condições e eficiência de sua cadeia produtiva.
Para conseguir fazer parte do programa, cada produtor é avaliado de acordo com a absorção e emissão de carbono nas diversas etapas de sua produção, seja de etanol, biodiesel, bioquerosene ou biogás. “A usina que produz de forma mais eficiente o etanol, por exemplo, vai ter um teor de carbono menor e será elegível a emitir mais CBios”, diz Ricardo Fujii, especialista em energia da WWF. “Isso é um estímulo para a usina produzir com a menor emissão de carbono possível”.
O Crédito de Descarbonização, ou CBio, instituído pelo programa RenovaBio, equivale a uma tonelada de emissões evitadas. Para alcançar a meta de descarbonização, cada distribuidora pode comprar CBios na Bolsa de Valores.
O primeiro ano de funcionamento do RenovaBio sobreviveu ao desafio da pandemia do coronavírus, que encolheu a demanda por combustíveis e fez com que as metas das distribuidoras precisassem ser revisadas. Outro desafio foi o valor não estipulado do CBio, sujeito ao mercado na Bolsa de Valores. No início, as aquisições ocorreram a valores muito baixos e, na medida em que o mercado foi se consolidando, o preço chegou mais próximo do valor da tonelada de carbono no mercado internacional. Mas, para além de ajustes técnicos, especialistas apontam fragilidades mais sérias que merecem ser consideradas.
Desmatamento indireto e uso do solo não entram na conta
Enquanto mundialmente o setor de energia é campeão em emissões de GEE, tendo a geração de eletricidade e os transportes como principais responsáveis, no Brasil a principal fonte de emissão está associada a mudanças do uso da terra, com destaque para o desmatamento e a agropecuária. “O RenovaBio não considera a dinâmica do uso do solo e não vê o desmatamento indireto, que gera emissões”, afirma Fujii.
Um exemplo emblemático sobre o uso do solo é a revogação do decreto que estabelecia o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar em novembro de 2019. O decreto proibia a expansão do cultivo da cana na Amazônia e no Pantanal. Sob a justificativa de desburocratizar e fomentar investimentos no setor sucroenergético, o revogamento foi apoiado por entidades como a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), que disse apostar no desmatamento zero, mas ignorou a ausência de mecanismos do RenovaBio para evitar a expansão do cultivo da monocultura para outros biomas.
“Para ser elegível no RenovaBio você tem que atender à lei, mas se, de certa forma, você enfraquece a lei, fica mais fácil enquadrar o RenovaBio em situações que não são adequadas. Isso é uma fragilidade do programa”, diz Fujii.
Efeitos indiretos são mais difíceis de quantificar, como é o caso do desmatamento indireto. O setor de cana-de-açúcar passou por uma crise na última década, em que usinas faliram, portanto a pressão por expansão de terras para o plantio da cana não é forte no momento. Não se pode dizer o mesmo a respeito da soja, que representa 70% da composição do biodiesel. Ao comprar, por exemplo, uma antiga terra de pastagem já desmatada para o plantio da soja, não há como garantir que não haverá deslocamento ou expansão da pastagem em outra região. Esse deslocamento gera emissões indiretas de carbono.
A indústria do biodiesel cresceu nos últimos anos com a elevação obrigatória da mistura no diesel. Também a alta demanda da soja para exportação aumentou a pressão por terras, principalmente na Amazônia e no Cerrado. A dificuldade em rastrear o grão é outro ponto de atenção. “Para eu gerar o CBio, eu preciso identificar a origem da soja e isso é dificultado porque a soja tem intermediário”, explica Carmen Araujo, diretora do International Council on Clean Transportation (ICCT) no Brasil. “O grão fica armazenado. Quem vai processar compra do que já foi agrupado de diversas fontes. Então você perde a rastreabilidade e esse é um ponto importante de aperfeiçoamento do mecanismo”.
Estudo do ICCT mostra que as estratégias do RenovaBio para garantir sustentabilidade não são suficientes para atenuar as pressões indiretas que a demanda por biocombustíveis pode gerar. “Se nós não olharmos para a expansão da soja que pode estar impactando o desmatamento – que representa 44% das emissões de CO2 no Brasil – acho que estaremos ignorando um problema muito sério”, afirma Carmen. O estudo recomenda que a mistura obrigatória de biodiesel não seja superior a 10%, evitando a pressão por novas terras para plantio e os problemas de compatibilidade do combustível com os veículos, que sofrem danos e aumento dos custos de manutenção.
Biocombustível é tecnologia do futuro?
Para zerar emissões de gases de efeito estufa em 2050, novo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA) propõe que o uso de combustíveis fósseis deve diminuir de quatro quintos da matriz energética global de hoje para um quinto em 2050.
O compromisso brasileiro assumido no Acordo de Paris, e confirmado pelo presidente Jair Bolsonaro recentemente na Cúpula do Clima, é de reduzir em 43% as emissões de GEE até 2030, considerando o ano de 2005 como base. Contudo, o Plano Decenal de Energia 2030, documento que indica as perspectivas da expansão do setor de energia para o período de dez anos no Brasil, continua tendo a oferta de combustíveis fortemente baseada em derivados de petróleo.
De acordo com o relatório da IEA, quase metade da redução de emissões deverá vir de tecnologias ainda não implementadas ou em fase de experimentação, como baterias avançadas para veículos elétricos e sistemas de produção de hidrogênio. “A indústria do biocombustível tem se colocado como a grande solução para o Brasil, mas a gente tem que entender que o Brasil não é uma ilha”, diz Marcel Martin, coordenador de transporte do Instituto Clima e Sociedade (ICS). “O Brasil está dentro de um mercado global, e se não houver modernização, a gente vai ficar mais para trás do que já está”.
Marcel considera importante avaliar a melhor forma de uso dos biocombustíveis, como em veículos de carga, no setor naval, no setor aéreo, além de avançar em estudos para células a combustível e outras alternativas tecnológicas. Sugere ainda evoluir para biocombustíveis de segunda e terceira geração, além de direcionar investimentos e atenção para eletrificação e hidrogênio. “O mundo está se eletrificando. Alemanha, França Inglaterra, Estados Unidos, todos eles estão direcionados para isso. Se a gente não brigar e lutar para ter uma produção local, o Brasil ficará inviabilizado no mercado global”.