artigo de Raíza Tourinho
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Quando há valores em comum, a diferença é enriquecedora. E é essa diferença que pode guiar novos modos de produção científica. Essa foi a lição principal do encontro ocorrido no final de março em Guarajuba, litoral norte da Bahia, reunindo pesquisadores e pesquisadoras que atuam ou investigam a participação social ou o engajamento público da ciência em países como África do Sul, Índia, Brasil, México e Reino Unido.
Durante três dias, pessoas de diferentes nacionalidades, culturas, formação acadêmica e experiências, se reuniram para construir uma perspectiva de futuro para a ciência a partir de um valor em comum: o entendimento de que o modelo de construção de conhecimento científico excludente, desigual e validador de opressões não cabe mais nos dias de hoje.
Pode até parecer uma utopia meio presunçosa: como se ousou achar que podemos mudar um modelo consolidado durante décadas? Mas vale lembrar que a ciência, como qualquer instituição social humana, é fruto do seu tempo e é construída e remodelada por seus agentes e seus sistemas de validação e reconhecimento.
É preciso que se desromantize o fazer científico para compreender que a produção do conhecimento deve estar pautada fortemente por uma ética social. E essa ética inclui o outro, fora dos muros da academia. Novos modos de fazer ciência, mais conectados com a sociedade e suas questões, são necessários, urgentes e já estão acontecendo. E são estes modos que os Centros de Trocas de Conhecimento visam fortalecer.
Intercâmbio de saberes
Os Centros de Trocas de Conhecimento surgem da seguinte questão: como ajudar a mudar as bases de se fazer pesquisa científica a partir do reconhecimento e valorização dos diversos tipos de saberes, de modo que a agenda científica esteja conectada com as reais necessidades da sociedade em que atua e em prol da sua transformação social? No encontro de Guarajuba, os participantes refletiram o quê e como seriam esses centros considerando um ecossistema de compartilhamento e construção de saberes decolonial que considerasse a sociedade como um agente ativo do fazer científico, e não objeto de pesquisa.
O Centro de Trocas é um projeto colaborativo de aprendizado e design para repensar a o compartilhamento de saberes na pesquisa em saúde, especialmente no Sul Global, que teve início em 2023. O projeto foi encomendado pela Equipe de Engajamento Público da Wellcome Trust, instituição filantrópica de apoio à de pesquisa com sede em Londres, no Reino Unido. E é liderado pelo Pivot Collective, organização sul-africana focada em tradução do conhecimento, juntamente com os parceiros Restless Development, Praxis, Vocal e Eh!woza.
No Brasil, o grupo que participou da primeira fase do projeto é composto por pesquisadores e pesquisadoras de Engajamento Público da Ciência do Cidacs (Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde) em parceria com o Niesp (Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Emergências em Saúde Pública), ambos da Fiocruz.
O projeto busca compreender melhor a troca de conhecimento na pesquisa em saúde; projetar rotas mais eficazes e significativas para as comunidades colaborarem na pesquisa; e, por fim, identificar o papel potencial da Wellcome Trust e de outros financiadores em apoiar e dotar de recursos essa infraestrutura, com base nos ativos e estruturas comunitárias existentes. A participação ativa da organização britânica (que enviou seis profissionais ao encontro no Brasil) é sinal de que as fundações de apoio à pesquisa internacionais estão de olho nessas novas formas de se fazer ciência — e nas contribuições enriquecedoras que podem vir de outras cosmovisões do chamado Sul Global.
A programação do encontro incluiu dinâmicas sobre coprodução do conhecimento, trocas de experiências, tanto sobre os estudos de casos quanto sobre os projetos de participação social na pesquisa conduzidos pelo diversos grupos de pesquisadores, além da participação de dois convidados que trouxeram suas experiências com o envolvimento da ciência com a sociedade: entre eles, Joanna Passos, mãe de uma criança com Síndrome Congênita de Zika e cofundadora da ong Abraço à Microcefalia, e Mateus Brito, pesquisador quilombola, que abordou sua experiência em projeto de tecnologias sociais nos territórios quilombolas.
O grupo de pesquisadoras e pesquisadores de Engajamento Público da Ciência do Cidacs/Fiocruz Bahia, do qual faço parte, também apresentou as iniciativas e estratégias de aproximação das pesquisas do Centro com a comunidade do entorno e os diversos grupos sociais interessados.
“O evento foi uma excelente oportunidade para aprender junto com nossos parceiros da Fiocruz e Cidacs no Brasil, e, também para se encontrar com profissionais que realizam um trabalho vital de intercâmbio comunitário”, avalia Haidee Bel, chefe da equipe de Engajamento Comunitário da instituição de financiamento Wellcome Trust. “Foi um privilégio passar um tempo com estes especialistas, e em contexto. É uma aprendizagem muito importante para nós, como financiadores do Norte Global, sobre como as pessoas enfrentam desafios de saúde e interagem com a investigação em saúde”, disse.
“O objetivo final deste projeto é apoiar as comunidades a desempenharem um papel significativo e inclusivo nas pesquisas e garantir que essas investigações respondam melhor aos contextos e necessidades sociopolíticas locais. Isto gera benefícios mútuos e conhecimentos mais impactantes, tanto para as comunidades como para a pesquisa”, afirma Lindsey Ronalds, diretora da Pivot Collective e coordenadora da iniciativa.
Revisão
No aniversário de 200 anos do The Lancet, um dos mais prestigiados periódicos científicos de saúde do mundo, a revista publicou um artigo opinativo refletindo sobre seu passado e presente colonial, no qual privilegia um tipo de produção de conhecimento e perpetua a desigualdade científica. “Instituições para a produção e disseminação do conhecimento, incluindo revistas acadêmicas, foram centrais para sustentar o colonialismo e suas heranças atuais. Nós elucidamos as conexões entre The Lancet e o colonialismo, mostrando como a revista legitimou e continua a promover tipos específicos de especialistas, conhecimentos, perspectivas e interpretações em saúde e medicina”, afirma o artigo.
As reflexões que emergem na publicação não diferem muito dos exemplos do imbricamento entre a ciência e o poder predominante que encontramos por aí: preconceito e desvalorização de conhecimentos de povos não-europeus (quando não apropriação indevida do conhecimento mesmo); racismo, a ponto de classificar a indisposição dos escravizados com a escravidão como loucura e patologia; disseminação de ideias científicas referentes à eugenia, mesmo quando estas já eram comprovadamente infundadas; além de privilegiar certos métodos e produções de conhecimento, perpetuando noções de que alguns conhecimentos são mais válidos do que outros. Tudo isso afinal reconhecido por uma revista britânica que nunca teve um editor-chefe que não fosse branco, homem e formado por universidades europeias — mesmo perfil de 7 em cada 10 acadêmicos que participam de suas comissões, segundo o texto.
Acontece que a ciência não pode mais se isentar, reivindicando o papel de instituição produtora de conhecimentos validados sem que faça uma profunda autorreflexão sobre si mesma e, finalmente, derrubando a torre de marfim em que se isolou por tanto tempo. Se por um lado, a ciência teve excelentes frutos oriundos do período da pandemia, como valorização social e política, por outro, alguns deles foram bem amargos, como a evidente desconfiança das pessoas nas orientações científicas — e o aumento do negacionismo — muito provocada pelo descolamento entre a sociedade e seus cientistas. Se a ciência não se movimentar para derrubar a sua frágil torre de marfim e se conectar com quem vivencia o conhecimento sobre o qual produz, correrá sérios riscos de se autocondenar a irrelevância social, perder sua autonomia e ficar refém dos interesses daqueles que a financiam.
No livro Uma outra ciência é possível, a filósofa belga Isabelle Stangers defende a promoção de grupos sociais de apoio à ciência e afirma que, sem se aliar à sociedade, não será possível que os cientistas continuem a ecoar apelos para “salvar a pesquisa”: “Eles deverão ousar dizer o que é necessário para salvá-la, deverão tornar pública a maneira como são incitados ou mesmo constrangidos a se tornarem simples fornecedores de oportunidades industriais. E precisarão de uma inteligência pública capaz de ouvi-los. Seria necessário, todavia, saber merecer o apoio do qual esses cientistas precisarão, o que não acontecerá se não souberem ouvir e levar a sério os questionamentos e objeções que hoje eles frequentemente associam a opiniões de quem “nada entende de ciência’”, diz.
O pesquisador Mauricio Barreto, coordenador do Cidacs e professor emérito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), explica que, no Brasil, a relação entre ciência e sociedade se dá a partir do momento em que a ciência se torna parte das políticas públicas e é financiada pelas pessoas. “Isso torna o contribuinte comum parte imediata desse processo. Isso tem tido avanços e retrocessos, em relação a diferentes campos da ciência”, conta. Ele cita como um dos exemplos desses avanços as conferências nacionais, que têm ampla participação social. A quinta edição da de Ciência e Tecnologia ocorre em junho em Brasília, contudo, nesses meses antecedentes, estão em andamento diversas conferências estaduais e livres. “Muitos delegados não são originários do mundo da pesquisa, mas, no geral, há um certo distanciamento entre esses dois mundos”.
Para superar os abismos ainda existentes, a ponte entre ciência e sociedade não existirá de forma sólida e estrutural no fazer científico sem que se enfrente alguns desafios e limitações. É o caso, por exemplo, da natureza da ciência produzida ou ainda da resistência de comunidades de pesquisa com a abertura do seu fazer científico para grupos não-especializados. Um caminho possível é prestar atenção nos campos em que esses desafios já foram superados, como o das mudanças climáticas. “Tem me chamado atenção que os pesquisadores do clima, sejam eles de pesquisas fundamentais ou populacionais, estão buscando uma maior interação com a sociedade como parte do fazer científico”, afirma Barreto, e completa: “Esse é um momento crucial do fazer científico, no qual ideias como coprodução e a participação da sociedade no processo de definição das estratégias científicas podem ser amplificados. No final, o que essas ciências buscam são soluções para os problemas humanos. Então, as pessoas têm direito a participar dessas soluções”.
Refletindo a prática
Durante a primeira fase do projeto do Centro de Trocas, que culminou no encontro de Guarajuba, o grupo de pesquisadores fez revisão da literatura existente sobre o tema, fez circular em alguns países um questionário e, por fim, se aprofundou em estudos de casos específicos de iniciativas de intercâmbio já existentes no Sul Global (spoiler: na América Latina encontramos a prática de construção de relacionamento entre ciência e sociedade sob diferentes nomes e níveis — da mera coleta de depoimentos até a “consultoria” científica para que as próprias comunidades construíssem o fazer científico que mais lhes interessavam).
No Brasil, por exemplo, essa conexão se deu bastante no âmbito do que se denominou “participação social” e tem raízes profundas na participação política dos pesquisadores em saúde na construção democrática do Sistema Único de Saúde (saiba mais sobre nossos achados preliminares). O que não significa que estamos alinhados com essa perspectiva de inclusão social, pelo contrário: os grupos que trabalham nessa linha enfrentam desafios profundos, desde as tensões inerentes ao próprio processo de colaboração com comunidades e os interesses diversos até a falta de investimento e menosprezo da comunidade acadêmica que adota uma abordagem mais tradicional.
“Não é uma tarefa fácil adotar uma abordagem decolonial na produção científica para aqueles que foram treinados em um modelo influenciado pelo colonialismo e pela visão positivista que busca excluir subjetividades, e consequentemente, a experiência de grupos historicamente vulneráveis e silenciados. Nesta abordagem científica tradicional, os pesquisadores são chamados a ser objetivos e a se distanciar dos fenômenos que analisam, confiando em dados e na literatura acadêmica formal. A participação social é assim restrita a dar consentimento informado, responder questionários, entrevistas e testes clínicos, ou seja, como sendo um informante. A pesquisa-ação produzida pelo pesquisador ativista busca transcender as fronteiras tradicionais entre pesquisadores e os pesquisados, visando a uma abordagem mais colaborativa, participativa, politicamente comprometida e capaz de provocar mudanças sociais em seu entorno”, afirma a publicação que aborda os achados da pesquisa latino-americana.
Na prática, além dos casos que foram estudados, podemos exemplificar as iniciativas postas em ação na Fiocruz pelo Cidacs, que adota atualmente a abordagem do Engajamento Público da Ciência em seis projetos, cada um com estratégias diferentes. O centro tem um comitê consultivo num deles, cujo projeto piloto sobre índice de desigualdades na pandemia, produzido em articulação com gestores públicos e grupos de mulheres negras, rendeu um documentário. Outro projeto, coordenado pelo Niesp, responsável pela Rede Zika de Ciências Sociais, tomou as famílias da crianças com a síndrome congênita como protagonistas da pesquisa
“A ciência ainda resiste a aprender com a sociedade, como se fosse mais uma variável a ser controlada e não como um ator fundamental na construção do conhecimento. Nós aprendemos muito com as famílias”, contou o pesquisador do Cidacs e Niesp/Fiocruz, Gustavo Matta, líder do projeto sobre Centro de Trocas na América Latina, sobre o período em que atuou na pesquisa com as famílias das crianças afetadas pela Síndrome Congênita da Zika. “A busca por abordagens participativas e colaborativas na pesquisa não apenas reconhece, mas também valoriza o conhecimento e as perspectivas locais, promovendo uma narrativa mais equitativa e justa na produção de conhecimento”, diz.
O texto traz depoimentos de alguns desses pesquisadores-ativistas. Um deles afirma: “É sem sentido publicar nos melhores jornais científicos, em uma linguagem que a sociedade não entende. É necessário alinhar nossos interesses acadêmicos com os interesses do território”. Em outro trecho, um pesquisador entrevistado reflete que esse alinhamento é muito mais do que uma simples troca de interesses, é também abrir mão do poder investido na figura do/a cientista: “Hoje em dia, precisamos de um pesquisador engajado, que compartilhe conhecimento e ‘fique de cócoras’ para ouvir os outros”.