No filme da vida, as cenas mais recentes são apagadas. O que a gente fez ontem? É… não lembro. Ando tão esquecida. Preciso tomar umas vitaminas. No domingo passado? Sim, essa eu não esqueço. Fomos visitar minha irmã Vandinha. Os filhos ficam ressabiados, sem saber se contam ou não que Vandinha já morreu faz alguns muitos anos. Temem a reação da mãe. Porque restam para ela exatamente as passagens mais antigas da história, fragmentos da infância, pinceladas de falas dos avós, memórias afetivas de muita gente querida que já se foi. São repetidas à exaustão. Impacientes e irritados, os filhos reclamam. Você já disse isso. Coisa mais chata. Aos poucos, até esse passado remoto some. O filme vira silêncio, torna-se mudo. No começo, os exames de imagens – tomografias, ressonâncias e outras parafernálias – revelam grandes áreas claras, tocadas por ilhas escuras. Terríveis, insaciáveis, os pontos de escuridão avançam implacavelmente sobre a claridade. O cérebro transforma-se numa imensa mancha preta, com minúsculos e dispersos pontinhos brancos. Era independente e tinha vida agitada. Trabalhou muito, doze, catorze horas por dia. Só não se permitia invadir o descanso do final de semana, dedicado ao companheiro e à família. Adorava viajar. Fazia questão de caminhar no parque perto de casa logo cedinho, todos os dias, para não perder a forma. Brincava e ria muito com os netos. Recebia os filhos para almoços regados a muita conversa aos sábados. Era ela quem preparava todos os pratos, salgados e doces. Precisa agora de ajuda para tomar banho. Para se vestir. Não consegue mais levar a colher à boca, na hora das refeições. Se não a tirarem da cama, passa o dia nela. Dias. Noites. Não reconhece os netos. Nem as netas. Não lê mais. Sentada na cadeira de balanço, na casa de repouso, tem a expressão perdida, fixa, inerte. Mira sei lá o quê. Às vezes, muito raramente, balbucia – são quase grunhidos – palavras e expressões prontas. ‘Sei’. ‘Que bom’. ‘É isso’. ‘Sim’. Do lado de cá, os filhos e netos também sofrem. Têm dúvidas. Será que ainda consegue pensar? Os neurônios ainda conversam, mesmo que timidamente, bem baixinho? Todas as tempestades cerebrais foram definitivamente interrompidas? Será que foi a conexão com o gene FOXP2 (ver crônica “O gene que não quer calar “) que foi cortada? Resta um sopro de vida. A carcaça. Sem alma. A vida que já não é mais. Dizem os manuais médicos que deve morrer encolhida, minúscula, muito magra, pele e osso, bracinhos abraçando e apertando as pernas contra o peito, como um bebê na barriga da mãe. Como chegou, vai partir. Começo e fim. Vida e morte. Saudades.
Doutor Alzheimer deverá visitar 65 milhões de idosos em todo mundo até 2030; serão 115 milhões de senhores e senhoras contemplados por esse visitante até 2050. Estima-se que, no Brasil, atualmente, um milhão e duzentos mil já vivam em companhia dessa figura temida e tão pouco estimada. É um viajante nocivo, que chega de forma sorrateira, sem pedir licença, sem ser anunciado, sem tocar a campainha. Prefere os que têm mais de sessenta anos. Progressivamente, provoca perda de memória, detona a capacidade de percepção do tempo e do espaço, afeta a linguagem e a comunicação, limita os movimentos, não permite que sejam realizadas as triviais tarefas cotidianas (andar, comer, cozinhar). Não vai embora nunca mais. Não tem cura. Ainda. Mas tem muita gente tentando encontrar maneiras de dizer ao doutor Alzheimer ‘aqui você não é bem-vindo, aqui você não vai ficar’. Em estudo publicado na “Science Translational Medicine”, pesquisadores do departamento de Neurociência da empresa farmacêutica Merck relatam como conseguiram desenvolver uma droga, ainda experimental, que tem potencial para impedir a formação exagerada da proteína beta-amilóide, a responsável por desligar e engolir os neurônios e desenhar aquela escuridão cerebral. A boa nova agora precisa ser confirmada por estudos mais amplos, com grupos maiores de voluntários (foram 32 nessa primeira etapa; a ideia é chegar a dois mil), para testar segurança, eficiência e eventuais efeitos colaterais.
No enorme saguão de entrada da casa de repouso, alheios ao entra e sai concorrido do dia de visitas, dois médicos fazem anotações no texto e discutem, cheios de esperança, o artigo que aponta, quem sabe um dia, para outros pacientes, a perspectiva de livrá-los dos males causados pelo doutor Alzheimer. Perto da janela, almofada sustentando a coluna, cadeira de balanço, mãos espalmadas no colo, ela está agitada. Não gosta da algazarra das buzinas de carros nas ruas. Nunca gostou. O lábio dela treme. Levemente. Braveza? Ou sorriso? Uma lembrança? Continua a mirar um mundo como só ela consegue ver.